Estupro é coisa séria

  1. O puro horror

            Você é uma garota adolescente. Como tantas garotas, é fã de uma boy band, com rapazes bonitos cantando músicas que você adora. Lá no sertão, no interior da Bahia, as garotas adolescentes são diferentes das das cidades grandes só quanto ao estilo musical. Se a sua sobrinha gosta de Justin Bieber e anseia, com perspectivas reais, que o seu ídolo mundial venha para o Brasil, a garota do interior da Bahia ficará toda feliz quando a banda de pagode de que gosta for para a sua cidadezinha. E se os músicos a convidarem para o seu ônibus, quão feliz ela não ficará? Imagine a sua sobrinha sendo convidada por Justin Bieber para conhecer o estúdio, ou o seu sobrinho chamado por Cristiano Ronaldo para conhecer o clube. Não caberiam em si de felicidade.

            As duas garotas fãs da banda de pagode New Hit saíram logo dessa alegria tipicamente adolescente para o puro horror digno das guerras mais bárbaras. Dentro do ônibus, esperavam-nas não ídolos, senão lobos. Toda uma banda de rapazes bonitos da capital agiu como uma matilha, e fez daquelas garotas sertanejas uma carne barata, para dilacerar à vontade. Por todos os orifícios. Os homens se revezaram, de dois em dois. Uma delas era virgem. O estado da outra chocou o da PM que as atendeu.

  1. O direito à liberdade de à segurança pessoal

            Isso aconteceu em 2012. Só agora, após cinco anos, e com muita pressão, oito dos dez acusados foram condenados em segunda instância. Nos últimos cinco anos, vêm mostrando à sociedade que basta recorrer para ficar em liberdade. Já as garotas aprenderam cedo que a igualdade do sexo não implica qualquer coleguismo e tiveram que se mudar, pois outras fãs da banda não gostaram da exposição dos seus ídolos e faziam-lhes ameaças.

            Nos últimos cinco anos, o Estado brasileiro vem deixando à solta estupradores. Todo ser humano tem o direito de não ser estuprado, a ser livre para dispor do próprio corpo sem ser subjugado pela força bruta de outrem. Mas, no que depender do Estado brasileiro, aqueles que têm bons advogados, independentemente do quão material sejam as provas do seu crime, têm anos de liberdade para estuprar.

            A pena que pegaram é de 10 anos. Tratando-se de crime hediondo, cumprirão dois quintos da pena em regime fechado, ou seja: 4 anos efetivamente atrás das grades. Após esse período, cumprirão a pena em regime semiaberto.

            Mas isso se forem mesmo presos. Mesmo condenados em segunda instância, seguem em liberdade, com planos de apelar no Supremo Tribunal Federal.[1]

  1. Torturando definições

            O estupro é coisa tão horrenda, que até quem a queira praticar não ousará dizê-lo em público. É o crime que associações de criminosos escolhe punir em suas cadeias. É o crime que, quando descoberto, suscita linchamentos. Todo ser humano que tenha um mínimo de humanidade ou preze pela própria reputação irá repudiar veementemente o estupro. Por isso, quem tiver alcance em mídias e alegar ter sido estuprada encontrará pronta recepção na imprensa.

            O problema é se o suposto ocorrido não tiver sido um estupro. Segundo o senso comum, estupro é a penetração contrária à vontade. A legislação brasileira é um pouco mais abrangente, e inclui também qualquer ato voltado à satisfação dos desejos sexuais do agressor, desde que cometidos através de violência e grave ameaça contra a vítima, ou, quando sem violência, ocorrem com menores de 14 anos, ou com o agressor aproveitando-se da incapacidade de resistir da vítima, não importando sua idade. Embora seja abuso sexual, enfiar o dedo em partes íntimas sem consentimento e enquanto a vítima pode oferecer resistência não é estupro. Criminalmente, apesar de a legislação pátria ter reunido diversos atos sexuais sob a rubrica de estupro, existe uma gradação de relevância entre eles, todos tendo como norte a dignidade sexual da vítima. O caso de Clara Averbuck, pelas poucas – e desencontradas – informações passadas por ela, não poderia ser descrito como algo mais que de violação sexual mediante fraude, onde o motorista, com a desculpa de ajudá-la, a teria empurrado bêbada na rua e inserido um dedo em sua vagina. É claro que a situação é revoltante, mas muito menos agressiva do que a do estupro.

            Chamar o caso de Clara Averbuck e o das garotas sertanejas pelo mesmo nome choca o senso comum e é contrário à legislação brasileira.

  1. A importância do registro

            A denúncia formal não realizada acarreta diferentes consequências. Uma é a dificuldade da aquisição de dados relativos aos diferentes crimes de natureza sexual. Uma vez que o Boletim de Ocorrência é a maneira em que o Estado é noticiado sobre a ocorrência de um determinado crime, sem esta formalização a quantidade de crimes acaba sendo subestimada. Este problema de notificação menor que a quantidade de ocorrências pode se dar dentre os mais diferentes crimes, mas, quanto maior o desconhecimento sobre o valor real, pior é a capacidade do Estado – e qualquer outra entidade – de fazer melhor diagnóstico do problema e propor soluções. É verdade que estimativas sobre a subnotificação de casos de estupro são realizadas, mas podem variar entre 10%[2] e 35%[3].

            A não notificação também impede a adequada investigação de um determinado crime. Talvez você já tenha lido, em alguma reportagem, que a média de resolução de crimes é baixa no Brasil (a média nacional de resolução de crimes de homicídio é estimada entre 5% e 8%, apenas). Porém, a baixa notificação pode agravar este problema, afinal faz com que o Estado se enxergue em uma situação mais confortável do que a real.

            A ausência de investigação adequada também dificulta a aquisição de provas contra um agressor, para que ele possa ser processado e julgado. Ao realizar o registro, a vítima deverá ser orientada para a realização de exames específicos. Dentre estes exames, o médico legista verificará se a vítima possui lesões, os tipos de lesões, se fluidos corporais (por exemplo, esperma) podem ser coletados. Em alguns locais, tenta-se extrair o material genético deste agressor, deste fluido, o qual fica registrado em um banco de dados. Também são feitos exames específicos para verificar se a vítima possui lesões que possam levar à conclusão de que estupro foi cometido. Pode ser que, para algumas vítimas, estes exames sejam inconclusivos. Porém, quanto menos a notificações e exames realizados, menores são as chances de obter resultados positivos.

  1. A narrativa na imprensa

            Como dizíamos, o estupro para os brasileiros é um crime horrendo; assim, qualquer pessoa relativamente famosa que alegue ter sido estuprada encontrará crédito e apoio na imprensa. Se a pessoa for uma militante feminista, é até possível que a imprensa a trate como autoridade no assunto. Tal foi o caso de Clara Averbuck: prontamente noticiou-se que fora estuprada, e espalhou-se que vivemos em uma sociedade terrível para mulheres, onde o estupro é perfeitamente normal.

            A imprensa cometeu, então, uma contradição performática: aprendemos que o mundo é um lugar horrível para mulheres, com estupradores por toda parte e ninguém disposto a acreditar nelas quando vitimadas, ao passo que, sem qualquer escrutínio, um possível inocente foi condenado e um falso estupro foi unanimemente noticiado. Ou seja, a imprensa diz que as mulheres não têm voz ao tempo que trata a voz de uma militante feminista como verdade incontestável.

            Ora, se a sociedade civil entender que os estupros denunciados não são bem estupros (como o recente caso do ônibus mostra), os seus ouvidos serão tornados insensíveis às denúncias; se não entender, fomentar-se-á pânico, e as mulheres terão razão para acreditar que não podem usufruir de suas liberdades, pois um há estuprador em cada esquina.

            Esta última é claramente incentivada por lideranças feministas. Para piorar, após o suposto estupro não denunciado à polícia, Clara Averbuck afirmou que não o fez porque não se pode confiar no sistema. Nesse ritmo, as mulheres deveriam aprender que há um estuprador em cada esquina, e que sequer podem recorrer à justiça. Na verdade, se recorrerem, serão antes “punitivistas”, que incompreendem a realidade dos males da mulher, pois segundo “O problema não é apenas este indivíduo e o que ele fez, é toda a estrutura da sociedade que ainda trata a mulher feito um objeto, e, caso ela saia dessa posição e resolva falar e ser sujeito, passa a ser perseguida.”[4] Negrito da autora.

            Sequer tocaremos no assunto da individualidade negada aos homens. Limitemo-nos a concluir que, em vez de recorrer a meios legais e exigir justiça, o que mulheres empoderadas supostamente devem fazer é aceitar a realidade brasileira é horrenda e reclamar na internet. Se tomar medidas legais cabíveis, é uma punitivista incapaz de compreender que a estrutura da sociedade é assim mesmo.

  1. O verdadeiro punitivismo

A atitude da imprensa faz surgir uma espécie de pânico social, onde se veem atos de gravidades diferentes como iguais, ou pensa-se que a lei não preveja punição nenhuma para atos de menor gravidade. Assim, ainda que haja punições, estimula-se a proposta de novas leis movidas por uma sensação fabricada de urgência social. Fabricada, pois a realidade é que já existem leis coibindo e penalizando essas práticas; o fato de não receberem a rubrica de estupro é irrelevante; importante é que sejam coibidas pela lei.

Ademais, muito dessa sensação de impunidade recai somente na falta de entendimento acerca das leis penais e processuais brasileiras. É comum as pessoas pensarem que, ao não reconhecer a existência de um determinado crime, o Judiciário esteja negando a existência de qualquer crime. Ocorre o contrário: muitas vezes magistrados não reconhecem a ocorrência de um crime específico mas entendem que a situação se encaixa em outro, de nomenclatura diversa. Outras vezes o que ocorre é desconhecimento do procedimento legal para se lidar com investigados e acusados, onde as pessoas entendem que se alguém é apontado como autor de um crime, e não é imediatamente preso, está sendo beneficiado pelo descaso do Judiciário – e fazem disso uma bravata contra o sexismo, quando se trata de mero procedimento penal, cujo objetivo é preservar interesses perfeitamente válidos, como a presunção de inocência, o devido processo legal, entre outros.

O caso de Clara Averbuck parece de fato ter incentivado a confusão acerca do que seja estupro, pois logo em seguida tomou a imprensa o “estupro” no ônibus, retratado como a coisa mais corriqueira do mundo. Vejamos o caso da uma jovem que recebeu um jato de esperma de um desconhecido em uma linha de ônibus em São Paulo: o agressor já possuía contra si diversas ocorrências registradas pela polícia, todas pelo mesmo tipo de agressão. Imediatamente as pessoas passaram a classificar o caso como estupro e se chocaram com a ordem judicial de revogação da prisão do agressor, tendo o magistrado reconhecido que não se tratou de estupro e sim de importunação ofensiva ao pudor – uma contravenção penal punida de forma muito menos branda pelo nosso sistema legal.

            Do jeito como o debate está atualmente pautado, é necessário que delinquentes que cometam atos menos graves que estupro paguem por estupro. Em outras palavras, clama-se para que a proporcionalidade da pena seja defenestrada.

            Ademais, com se pretender denunciar pela internet – ao tempo que se vilipendia qualquer hesitação e se reivindica crença automática –, não é de admirar linchamentos e represálias se sigam.

            Temos nada menos que violações aos direitos humanos sendo estimuladas aqui: a pena proporcional e o devido processo legal.

  1. O real problema

No caso do molestador de passageiras, alguém poderia argumentar que os registros foram feitos e, apenas após inúmeros atos, o agressor foi levado à justiça. A esse respeito é importante lembrar que delitos de natureza sexual que não são cometidos contra menores de idade ou pessoas vulneráveis (aquelas que possuam alguma enfermidade ou deficiência mental) são de ação penal pública condicionada à representação da vítima. Isso significa que o Ministério Público não pode mover a ação penal levando o caso ao Judiciário sem que a vítima requeira a persecução penal, no prazo de seis meses após a identificação do autor do crime. Não sabemos se as outras vítimas tomaram essa iniciativa ou se houve negligência das autoridades responsáveis. A notificação do crime sem a devida persecução penal no judiciária acaba por inflar as estatísticas de crimes não resolvidos resultando na sensação de impunidade por descaso das autoridades quando, na verdade, há outros fatores que contribuem para essa impunidade.

Ademais, em virtude da distorção de termos, as pessoas ficaram indignadas, acusando o juiz de machismo e descaso quando, na realidade, ele aplicou a lei exatamente correspondente ao ato praticado, como manda o direito. Aos juízes não compete aplicar a punição que melhor lhes pareça; compete-lhes somente aplicar a punição prevista na lei. Indignar-se contra o judiciário nesse caso é ilógico: trata-se de questão legislativa de competência de nossos deputados e senadores, não dos juízes.

Igualmente, o tempo de prisão nos casos de estupro e a possível progressão de regime em tempo irrisório possui raízes não no descaso do poder judiciário, mas na lei, que determina prazos máximos de cumprimento de pena aparentemente pequenos para uma reparação justa, e na falência do Estado com relação a execução da pena. A superlotação de presídios leva a condenações cada vez menores, de forma a desafogar o sistema prisional. A falta de estabelecimentos específicos faz com que a pena seja cumprida em locais não previstos expressamente em lei. Estas situações ocorrem não somente nos crimes de natureza sexual, ocorrem com todos os crimes e, portanto, cria-se uma sensação de impunidade em geral. Atribuir a uma estrutura incorpórea – o patriarcado – ou ao sexismo as situações de punição ínfima em casos de crime de natureza sexual desconsidera esse fato e não acrescenta uma solução real para os problemas.

            Qual seria, então, a solução real? Reivindicar mudanças nas penas (sem perder de vista a proporcionalidade), uma melhoria no sistema prisional (que não deixe à solta por causa da superlotação) e prestar um atendimento decente nas delegacias, equilibrando na balança tanto a fragilidade psicológica das vítimas quanto as necessidades específicas para a investigação desses crimes, evitando afugentá-las e inflar as estatísticas de crimes sem solução.

            O comum da sociedade está de acordo que não é correto estupradores como os da banda New Hit poderem ficar à solta por cinco anos, aguardar o Supremo julgar o seu caso, e poder passar apenas quatro anos na cadeia. Pior, só se eles não fossem denunciados formalmente e tivessem contra si mero desabafo online. Que bom que a sociedade brasileira, diferente de tantas orientais, é contrária ao estupro, e simpática à ideia de aprisionar estupradores e molestadores. Aproveitemos isto, mobilizando-a numa direção saudável, e não cometamos o erro grave de insensibilizá-la com falsas denúncias de estupro.

[1]      Detalhes aqui: http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1890293-exintegrantes-da-banda-new-hit-sao-condenados-a-10-anos-de-prisao

[2]      http://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf

[3]      http://www.forumseguranca.org.br/storage/9_anuario_2015.retificado_.pdf

[4]      http://revistadonna.clicrbs.com.br/coluna/clara-averbuck-sobre-acusacoes-mentiras-punitivismos-e-boletins-de-ocorrencia/

Evergreen e a Batalha pela Modernidade, Parte 2: Verdadeiros Crentes, “Em cima do muro”, e Conformidade de Grupo

 Mais de um mês se passou desde o fiasco da Universidade Estadual de Evergreen, o qual chamou atenção nacional e, desde então, parece que a faculdade só duplicou a insanidade. De acordo com um relatório, após a aparição do professor Bret Weinstein no programa de Tucker Carlson na Fox, muitos de seus colegas exigiram sua demissão por colocar sua comunidade “em risco”. Vou poupar todos os detalhes, pois eles podem ser encontrados em toda internet, mas para uma visão geral rápida, sinta-se livre para recapitular a parte 1.

Em vez disso, este ensaio tenta responder a uma das maiores questões que surgiram do artigo anterior — como poderia ser possível que tantas pessoas, grandes grupos de estudantes e, de fato, disciplinas acadêmicas inteiras sejam tão engambeladas para acreditar na retórica pós-moderna, incluindo que a ciência é um símbolo do patriarcado, e o conceito de saúde é apenas mais uma ferramenta da opressão colonial ocidental? Neste ensaio, vou usar princípios psicológicos sólidos e pesquisa revisada por pares para chegar a algumas conclusões inquietantes, mas que esperançosamente fornecerão uma espécie de roteiro para lidar com ideologias virulentas e patogênicas que roubam das pessoas a sua razão e o seu senso comum.

O cético conhecido Michael Shermer, em seu livro Por que pessoas acreditam em coisas estranhas, identificou dois fenômenos psicológicos: o viés de atribuição (que é a tendência de acreditar que o raciocínio de uma pessoa em especial é melhor do que dos outros) e o viés de confirmação (que é a tendência de escolher evidências que só confirmam a opinião já existente), os quais reforçam um pensamento deficiente. Mas isso não explica o porquê da multidão da Faculdade Estadual de Evergreen ter agido como uma unidade, ou por que, de acordo com a Heterodox Academy, 89% dos acadêmicos parecem ter opiniões políticas semelhantes (de centro-esquerda). Por que tantas pessoas compartilham exatamente as mesmas crenças, por mais estranhas que sejam?

Perguntado de forma diferente, por que muitas pessoas se conformam com as mesmas ideias estranhas?

Para responder a esta pergunta, o psicólogo Solomon Asch na década de 1950 realizou uma série de experimentos para testar os níveis de conformidade de seus indivíduos. Esses indivíduos entrariam em uma sala e ficariam sentados com outros participantes, os quais (sem os primeiros saberem) faziam parte do experimento — chamados de “confederados”. Seria mostrado, então, a esses indivíduos um segmento de linha e pedido para que identificassem uma linha correspondente de um grupo de três outros segmentos de diferentes comprimentos. Cada participante anunciaria oralmente o segmento de linha correspondente.

Aqui é onde as coisas ficaram interessantes. Numa série de ensaios, os confederados foram informados pelo pesquisador para fornecer propositadamente a resposta errada para ver como o participante responderia, mesmo quando apresentado com informações descaradamente falsas. Surpreendentemente, 75% dos participantes também escolheram a resposta errada, pelo menos uma vez, para coincidir com os outros entrevistados (confederados). Quando solicitados em particular para fornecer a resposta, os participantes estavam corretos 98% das vezes, indicando que eles escolheram a resposta errada na configuração de grupo, mesmo quando eles sabiam que a resposta estava obviamente errada.

75% é um número bastante grande, tornando fácil descartar os resultados das Experiências de Conformidade do psicólogo Asch como um acaso. Exceto que esses resultados foram replicados em circunstâncias ainda mais escandalosas. Na infame experiência Smoke Filled Room [Quarto Cheio de Fumaça], do final da década de 1960, os participantes foram colocados em uma pequena sala que lentamente começou a se encher de uma fumaça misteriosa. Quando sozinhos, os participantes invariavelmente se levantavam e abriam a porta para sair e investigar. No entanto, quando colocados na sala com 2 ou 3 outras pessoas que estavam no experimento e disseram para reagir como se não notassem a fumaça, 90% dos entrevistados optaram por permanecer em seus assentos, tossindo, esfregando os olhos, abanando a fumaça e abrindo as janelas, mas não deixando a sala para relatar a fumaça.

Outros experimentos clássicos de psicologia (de uma era anterior a comitês de ética independentes) mostram claramente que a conformidade é um aspecto poderoso de como grupos funcionam e se formam. Alguns desses estudos incluem o experimento de Robber Cave, o experimento da obediência de Milgram — que descobriu que 65% dos indivíduos administraram o que achavam que eram choques de nível máximo em outro participante, quando dirigidos por uma figura de autoridade — até o experimento da prisão de Stanford, os quais demonstraram o quão longe as pessoas iriam de acordo com sua necessidade de conformidade. Embora as metodologias desses estudos (e os padrões éticos) não se sustentem hoje, eles ainda fornecem uma visão sobre o porquê de grandes grupos frequentemente compartilharem pontos de vista totalmente unilaterais e às vezes bizarros.

Certamente o ambiente da cidade universitária deve sentir-se como uma panela de pressão intensa para aqueles que optam por abster-se do pensamento conformista. À medida que mais e mais indivíduos se conformam ao ponto de vista dominante, o grupo de abstêmios continua a encolher, exercendo ainda mais pressão sobre a minoria em declínio para se conformar ou arriscar-se inteiramente ao banimento do grupo. Desta forma, as pequenas cidades e comunidades em que a maioria das faculdades estão localizadas invariavelmente servem como experimentos de conformidade autônomos em ação.

Em seu livro seminal The True Believer: Thoughts on the Nature of Mass Movements [O Verdadeiro Crente: Pensamentos sobre a natureza dos movimentos de massas], Eric Hoffer descreve o “verdadeiro crente” como uma pessoa descontente que busca colocar seu controle fora de si e direcionado a um forte líder ou ideologia. Desta forma, eles buscam “auto-renúncia”, submetendo suas próprias crenças e ideias pessoais a um coletivo maior. Mais importante ainda, o verdadeiro crente se identifica com o movimento tão fortemente, que não precisa do movimento para cumprir algum requisito psicológico, que, mesmo quando apresentado com evidências contrárias, o verdadeiro crente não vê solução, exceto intensificar ainda mais a crença.

Isso é exatamente o que aconteceu com os Seekers, um culto com sede em Chicago que previu um cataclismo alienígena que ocorreria em 21 de dezembro de 1954. Os discípulos venderam todas as suas propriedades em antecipação ao apocalipse, mas quando o evento não ocorreu, em vez de se recuar para refletir sobre onde tinham errado, eles cortejaram a imprensa para atrair mais consciência e mais convertidos para sua causa. O psicólogo de Stanford, Leon Festinger, que estudou este caso, resumiu da seguinte maneira: “Um homem de convicção é um homem difícil de mudar. Diga-lhe que você não concorda e ele se afasta. Mostre-lhe fatos ou números e ele questiona suas fontes. Apele à lógica e ele não consegue ver o seu ponto de vista.”

Este caso parece indicar que tentar convencer o verdadeiro crente é uma causa perdida. Mas os grandes movimentos não são compostos apenas por verdadeiros crentes. Na verdade, eu argumentaria que os verdadeiros crentes (juntamente com as pessoas no topo, que são muitas vezes charlatões, mas eu divago) compõem apenas uma pequena porcentagem de qualquer movimento. Pode-se passar por cada um dos momentos mais vis da história, como o período nazista, por exemplo, e encontrar um padrão semelhante, no qual uma certa ideologia pode ter mantido suporte flexível em grande escala, mas que apenas uma pequena fração foi diretamente responsável pelas ações do movimento.

É esta vulnerabilidade flexível que é digna de uma maior consideração e é mais diretamente relevante para a pesquisa anterior sobre conformidade. Eu chamo esse grupo de “em cima do muro”, pois eles podem estar operando sob crenças que não sofreram escrutínio, mas, como os indivíduos nos estudos Asch e no Quarto Cheio de Fumaça, apenas querem se adequar aos padrões do grupo. Como resultado, eles podem ser muito mais propensos a mudar suas opiniões quando expostos a normas alternativas de grupo. De fato, uma das maiores realizações do Asch em sua série de experiências foi que os níveis de conformidade foram baseados no tamanho do grupo. A conformidade aumentou com o tamanho do grupo, mas se estabilizou uma vez que o tamanho atingiu quatro ou cinco pessoas. Além disso, a conformidade também aumentou quando outros membros do grupo foram vistos como tendo maior status social.

Levando em consideração essas conclusões, a configuração universidade/faculdade é o sonho do conformista. Desde o primeiro dia, os calouros estão expostos a ideias e a crenças das figuras de autoridade (professores) e aos pares mais antigos (veteranos) e muitas vezes encontram essas mesmas ideias em sessões de pequenas e grandes classes. Neste ambiente, a maioria dos jovens são impressionáveis e impotentes para combater ou contrariar qualquer ideia jogada no seu caminho, não importa o quão sem sentido sejam. Usando este cenário perfeito como imagem, alguém poderia converter um conjunto inteiro de mentes jovens em acreditar que qualquer coisa, da terra é plana para o sexo biológico é uma construção social (oh, espere!). As ideias em si não importam, são meramente softwares intercambiáveis; é a configuração, o próprio hardware, que atua como uma poderosa máquina geradora de meme, e isso deve ser alterado antes que ele se separe do design humano e assuma vida própria, como é feito em Evergreen.

Mas apenas porque as pessoas afirmam acreditar em uma ideia não significa que elas acreditem internamente. Os psicólogos identificaram diversos tipos de conformidade. Por exemplo, a conformidade normativa refere-se à mudança de comportamento para atender às normas do grupo, enquanto a conformidade informacional é quando uma pessoa procura o grupo para decidir o que pensar ou acreditar. Eu identificaria como conformidade informacional aqueles indivíduos descritos acima como “em cima do muro”. Eles podem não ter crenças fortes ou possuir algumas crenças que contradizem as atitudes prevalecentes, mas decidem se conformar ao pensamento coletivo apenas para se conformar. Este grupo pode ser muito grande e pode explicar alguns dos fenômenos sociais mais interessantes das últimas décadas.

O cientista social Timur Kuran, em seu livro Private Truths, Public Lies [Verdades Privadas, Mentiras Públicas] identifica um conceito que ele chama de “falsificação de preferências”, no qual os indivíduos articulam preferências socialmente apropriadas, mas que não refletem o que realmente acreditam. Isso explica por que vários movimentos sociais, como as revoluções russa e iraniana, pegaram completamente os observadores de surpresa. Mais recentemente, os Estados Unidos ficaram atônitos quando Donald Trump desafiou virtualmente todas as maiores pesquisas e ganhou as eleições presidenciais. A teoria da falsificação de preferência sugere que as grandes curvas de sentimento existem além da consciência social e só precisam ser aproveitadas para que as comportas se abram e que mudanças de grande escala ocorram.

Vamos agora levar todas essas ideias para suas conclusões naturais, a fim de obter uma compreensão de como os modernistas podem combater sistemas de crenças perigosamente ridículas, dentro e fora da academia:

1) O ambiente do campus é um ambiente ideal para o movimento da conformidade, a partir de professores e, em seguida, escalando rapidamente para o corpo estudantil.

2) Uma porcentagem elevada de indivíduos indicará publicamente coisas que eles sabem que são evidentemente erradas para se adequar.

3) Com base no precedente histórico, eles provavelmente incorporam uma porcentagem muito maior de qualquer movimento do que os verdadeiros crentes.

4) Estes “em cima do muro” podem mudar rapidamente sua opinião em massa se sentirem apoio social suficiente para desafiar a conformidade do status quo.

5) Uma vez que a conformidade é maior quando os indivíduos estão expostos a pontos de vista de grupos de pelo menos quatro ou cinco indivíduos, é imperativo que aqueles “em cima do muro” sejam expostos a numerosos exemplos de evidências contraditórias.

Então, quais são as amplas implicações? Eu posso explorar isso mais adiante em uma Parte 3 se houver interesse suficiente, mas em breve, os oponentes do pós-modernismo devem continuar a articular seus pontos de vista com a maior clareza e frequência possível. Todos os artigos, comentários e ensaios se somam. As pessoas precisam ver que há um grande movimento de indivíduos que não concorda com anti-ciência, de modo que torna-se mais seguro se alinhar com eles. Além disso, as universidades devem adicionar requisitos para que todos os estudantes de humanas tomem pelo menos uma ou duas classes nas ciências duras, a fim expô-los a pontos de vista alternativos — como vocês sabem, ciência. Tenho certeza de que outros leitores e comentadores terão suas próprias ideias para adicionar, mas espero que este ensaio forneça uma estrutura áspera e justificativas claras para criar uma oposição modernista clara e organizada à pseudociência. As apostas nunca foram maiores.

 

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Escrito por Michael Aaron para Quillette
Traduzido por Douglas Ramos e uma tradutora anônima para a LiHS

Acadêmicos que acreditam que a criação supera a natureza também tendem a duvidar do método científico

Até que ponto o pensamento evolutivo permeou a academia? Uma pesquisa com mais de 600 acadêmicos de 22 disciplinas, desde psicologia e economia até estudos de gênero, sociologia e humanidades, descobriu que existem duas culturas distintas na academia, pelo menos em relação às principais causas do comportamento humano e da cultura humana.

Um grupo formado por psicólogos, economistas, filósofos e cientistas políticos acredita mais fortemente nas influências genéticas no comportamento, nas crenças e na cultura. O outro grupo, que consiste em sociólogos, antropólogos não-evolutivos, acadêmicos de estudos de gênero e todos os acadêmicos de humanidades (exceto filosofia), acredita na primazia das influências ambientais.  Além disso, os acadêmicos que favorecem as influências ambientais também tendem a ser céticos quanto ao método científico. Os resultados foram publicados com acesso livre no recém lançado jornal “Evolutionary Studies in Imaginative Culture”.

Joseph Carroll na Universidade de Missouri em St. Louis e seus colegas, incluindo Mathias Clasen da Universidade de Aarhus, identificaram acadêmicos influentes de diferentes disciplinas com base nos artigos dos principais jornais de cada área. Cada participante avaliou sua concordância com 24 declarações relativas ao debate sobre a natureza/criação e as interações genético-ambientais. O campo favorecendo explicações genéticas tende a concordar mais fortemente com afirmações como “O comportamento humano é produzido predominantemente ou exclusivamente por características geneticamente transmitidas”. O outro campo avaliou mais fortemente itens como “O comportamento humano é produzido predominantemente ou exclusivamente por condições ambientais, incluindo convenções culturais”.

Um vislumbre de esperança para um futuro consenso foi encontrado no fato de que ambos os campos tendiam a responder afirmativamente aos itens pertencentes a interações genético-ambientais, tais como “Os valores, crenças e sentimentos humanos são produzidos por uma interação entre adaptações moldadas pela seleção e por condições ambientais, incluindo convenções culturais”.

No entanto, os sinais de consenso foram um pouco prejudicados pelos comentários abertos dos participantes, que mostraram que os dois campos tinham uma perspectiva diferente sobre o que as interações do ambiente gênico significam. Por exemplo, sobre o tema da identidade de gênero, um acadêmico evolutivo das ciências sociais disse: “Eu acredito que a identidade de gênero reflete uma mistura de insumos genéticos e culturais, sendo o genético um pouco mais importante”, enquanto um estudante de estudos literários disse: “Eu concordo que as características biológicas desempenham um papel na formação da identidade de gênero, mas eu absolutamente discordo de que elas o façam ‘predominantemente'”.

Talvez o mais preocupante, no sentido de minar as esperanças de qualquer consenso futuro sobre a compreensão do comportamento humano e da cultura, é que os acadêmicos que favoreceram as explicações ambientais e culturais de comportamento também tendiam a duvidar do método científico:

“O comportamento humano não está sujeito a leis imutáveis, e, portanto, não pode ser estudado cientificamente”, disse um acadêmico de estudos religiosos. “O conhecimento científico tem algo a nos dizer sobre artefatos materiais e sua produção, mas ‘natureza humana’, ‘experiência humana’ e ‘comportamento humano’ não são empiricamente estáveis”, disse um acadêmico de estudos literários.

Em contrapartida, os acadêmicos que favorecem causas genéticas e evolutivas do comportamento expressaram fé na ciência.

Carroll e seus colegas disseram que sua pesquisa forneceu uma “fotografia estatística… de uma paisagem em constante mudança” das opiniões divergentes sobre a natureza humana e a cultura mantidas pelas ciências sociais e humanas. Seu próprio sentimento otimista é que essa opinião está se movendo “inequivocamente para uma visão biocultural integrada do comportamento humano”.

Então, alguma vez será construída uma ponte entre essas duas culturas? O maior obstáculo, acreditam os pesquisadores, são os acadêmicos que declaram que o comportamento humano não pode ser estudado cientificamente (considere os pontos de vista de outro acadêmico de estudos étnicos: “Eu não acredito na evolução genética das espécies” — escreveram — “Há uma marca de divindade em cada pessoa que garante nossos pontos comuns”). Carroll e seus colegas disseram: “A maioria dos pesquisadores que consideram o comportamento humano fora do alcance da ciência ou que negam que a ciência possui reivindicações especiais sobre a produção do conhecimento, tem mais respeitabilidade acadêmica que os criacionistas, mas são semelhantes a eles, na medida em que eles pisam de bom grado fora do círculo do conhecimento suscetível à falsificação empírica”.

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Por Christian Jarrett, na Research Digest, traduzido por Douglas Ramos para a LiHS.

15 anos depois: por que ainda acreditamos na Tábula Rasa?

por Malhar Mali, na Aero Magazine.

Uma vez vi no Twitter um antropólogo cultural se referir ao “embuste” de Steven Pinker ao abordar um psicólogo evolutivo que o irritara. Algum tempo depois, em outra visita à rede social, vi uma socióloga e teórica de estudos de gênero/masculinidade/pós-colonialismo dizer muito polidamente a outra professora: “oi Diana, lembro-me de apresentar minha visão de que psicologia evolutiva é mais uma seita do que um campo de estudos sérios. Fui muito generosa“.

Achando essas discussões muito engraçadas, comecei a ponderar por que tantas disciplinas têm esse desprezo e repugnância por novas ciências e seus praticantes. Seria preocupação acerca da inclusão das linhas condutoras do racismo e do machismo da academia em nossa cultura, preocupações certamente nobres, ou seria outra coisa? Aconteceu de eu estar em meio à leitura de Tábula Rasa, de Steven Pinker, quando encontrei essas batalhas no Twitter. Nem é preciso dizer que, para quem leu o livro, aquelas discussões apresentavam padrões familiares.

Sei que estou atrasado, o livro de Pinker foi lançado há 15 anos e provavelmente foi usurpado por muitos outros trabalhos que abordaram as mesmas áreas. Esta não é uma resenha comum, já que há muitas desde que o livro foi lançado. É apenas uma pequena recapitulação de algumas poucas ideias apresentadas por Pinker e como elas permanecem relevantes.

O livro é, depois de cerca de 60 tediosas páginas de teor mais biológico e neurológico explicando as razões de humanos terem características inatas — denotando-as como probabilísticas, o que é importante, e não como determinísticas — um ataque a muitas ideias que as pessoas ainda mantêm neste mundo: a tábula rasa (“a mente não tem características inatas”), o bom selvagem (“a sociedade corrompe as pessoas; nascemos puros, sem egoísmo”) e o fantasma na máquina (“uma alma que existe independentemente de nossa biologia”). Após mostrar que tais crenças não são verdadeiras, Pinker apresenta meticulosamente por que elas são promulgadas na academia e se infiltraram na mentalidade popular, e por que tantos aderem a elas, mesmo quando a maioria das evidências aponta para o contrário.

Sei da omissão das razões biológicas do comportamento humano em algumas partes das humanidades e ciências sociais, mas muito da minha surpresa com esse livro está na descoberta de como cientistas de boa fé (“cientistas radicais“, como Pinker os chama) são responsáveis por ignorar e ofuscar os resultados das novas ciências e maltratar seus praticantes. Por exemplo, Stephen Jay Gold, a quem eu considero um confiável divulgador da ciência, participou de uma campanha com Richard Lewontin para desacreditar a Sociobiologia de E.O. Wilson, amontoando-o aos eugenistas e darwinistas sociais. Pinker também nos conta da antropóloga Margaret Mead — a mesma pessoa que disse algo tão inspirador quanto “nunca duvide que um grupo pequeno de pessoas pensantes e comprometidas possa mudar o mundo; de fato, esta é a única forma de fazê-lo” — conscientemente negando os efeitos dos genes no comportamento humano e denegrindo os proponentes das novas ciências, mas dizendo à sua filha em privado que ela creditava seus próprios talentos intelectuais aos seus genes. Os protestos, calúnias e difamações que Pinker nos relata, perpetrados por ativistas e acadêmicos e direcionados a indivíduos que ousaram explorar as raízes da natureza humana, são, quando lidos uma década e meia após o lançamento de seu livro, tão perturbadores quanto proféticos.

Qual foi o ímpeto dessas ações vindas de pessoas que, de outra maneira, são indivíduos educados e cientistas (de boa fé)? Pode-se especular. Um entendimento caridoso seria que eles temem perpetuar desigualdades (e seus discípulos persistem no temor). Sobre isso, Pinker escreveu:

“Reconhecer a natureza humana, muitos pensam, é endossar racismo, machismo, guerra, ganância, genocídio, niilismo, políticas reacionárias, e negligência contra crianças e os menos favorecidos.”

E porque, como Pinker diz após informar os leitores que as novas ciências escolheram a pior década pra se concretizarem:

“Ao invés de desvincular as doutrinas morais das científicas, o que garantiria que o relógio não retrocederia, não importando o que saísse do laboratório e do campo, muitos intelectuais — incluindo alguns dos cientistas mais famosos — promoveram o maior esforço para conectar as duas.”

Essa é uma área traiçoeira e estou francamente surpreso que Pinker se manteve ileso após a publicação de suas ideias. Reconhecer a natureza humana hoje, as diferenças sexuais, violência, acasalamento, potencial humano e genocídio parece uma maneira segura de ser academicamente insultado como “racista/machista” e de fundamentar a crença alheia de que se está tentando justificar desigualdades. Mas suponho que sua reputação seja reflexo do quanto ele é cuidadoso ao refutar cada falácia e reação visceral que se pode ter ao aceitar a natureza humana — e nos mostrando que rejeitá-la pode levar a políticas e concepções que promovem o sofrimento.

Eu também compartilhei de algumas preocupações dos “cientistas radicais”: se o ambiente não é tão responsável pelo comportamento humano quanto as pessoas pensam, isso não nos deixaria com uma visão determinística da sociedade (onde aceitamos violência e belicosidade como intrínsecas à humanidade)? As pessoas merecem mesmo ser exatamente da forma como terminaram? E isso não nos levaria a nefastas e doentias pseudo-justificações de superioridades e perigosos declives escorregadios?

Mas Pinker lida com essas reações automáticas demonstrando que atrocidades em escala industrial também decorrem da crença em sermos Tábula Rasa. Elas não são domínio de uma única ideologia; como Pinker nota, “tanto a ideologia Nazista quanto a Marxista levaram à mortandade em escala industrial, embora suas teorias psicológicas e biológicas fossem opostas”.

Tomemos os Nazistas: um líder ganha poder e implementa um plano de dizimar toda uma população, a qual ele crê estar conspirando contra seu povo, e porque ele considera sua “raça” geneticamente superior. Pode-se parar aqui, talvez como o “cientista radical” e seus seguidores, e perguntar: “bem, não é melhor acreditar e assegurar que somos todos iguais, para impedir que essas coisas aconteçam de novo?“. Então Pinker oferece sua réplica: Mao e o Khmer Vermelho de Pol Pot, que exterminaram muito mais gente do que Hitler, explicitamente promoveram a visão de Tábula Rasa da humanidade. Acreditar que todos os seres humanos nascem iguais em tendências, características e talentos leva seus aderentes a se perguntar por que alguns se saem melhor que outros. Classe, riqueza oculta, conspirações, etc, são todas respostas oferecidas para essa questão. Aqueles que foram considerados burgueses carregavam um estigma permanente em regimes pós-revolucionários, sendo perseguidos como “camponeses ricos” e privilegiados.

É por isso que intelectuais que não são comunistas, as classes educadas e os burgueses foram tão severamente perseguidos — e frequentemente enviados aos Campos de Extermínio. Por causa da crença de que estavam colhendo privilégios não permitidos aos seus conterrâneos. De acordo com o historiador Paul Johnson, escrevendo sobre o Khmer Vermelho em seu livro “Tempos Modernos: uma história do mundo de 1920 ao ano 2000“:

“Tinha de ser ‘revolução social total’. Tudo sobre o passado era ‘atavismo e deveria ser destruído’. Era necessário ‘reconstruir psicologicamente membros individuais da sociedade’. Implicava em ‘cortar fora, através do terror e de outros meios, as bases tradicionais, estruturas e forças que moldaram e guiaram as vidas individuais’ e então remodelá-las de acordo com as doutrinas do partido, impondo um novo conjunto de valores.”

Para Pol Pot e o sistema de seu Khmer Vermelho, a sociedade foi corrompida e precisava ser reconstruída. Considere seu bordão implicando que a cultura aprendida havia nos infectado — e que nascemos puros (o [mito do] Bom Selvagem):

“apenas os recém-nascidos são imaculados”

Dado tudo isso, eu esperaria que a questão “por que este livro permanece relevante?” começasse a se responder sozinha. Idéias relacionadas à Tábula Rasa continuam sendo promovidas em nossa cultura popular, mídia e mesmo nas políticas públicas. Da criação dos filhos aos resultados das diferenças entre os sexos e violência, Pinker aponta que muitas noções consideradas verdadeiras são contrastadas por descobertas em campos como a genética comportamental. De seu prefácio:

“A ideia de escrever este livro veio quando comecei a colecionar estonteantes afirmações de especialistas e críticos sociais acerca da maleabilidade da psiquê humana: que garotinhos discutem e brigam porque são encorajados a fazê-lo; que crianças gostam de doces porque seus pais os usam como barganha para comer vegetais; que adolescentes competem em aparência e moda por causa de ditados e prêmios escolares; que homens pensam que o objetivo do sexo é o orgasmo por causa da maneira como foram socializados. O problema não é apenas que essas afirmações são ridiculamente absurdas, mas que seus locutores não percebiam que diziam coisas que o senso comum questionaria. Esta é a mentalidade de uma seita, na qual crenças delirantes eram exibidas como provas da piedade de alguém.”

Se hoje alguém olha ao redor, crenças similares que revogam nossa natureza humana compartilhada e atribui nossas ações à cultura, socialização e sociedade são muito comuns. A crença de que apenas representando homens e mulheres em proporções iguais em todos os lugares poderemos eliminar o machismo. A crença de que é a sociedade que molda o que consideramos atraente. A crença de que boa educação pode controlar praticamente todas as facetas de como uma criança se tornará. A crença de que violência é aprendida. A crença de que representações de imagem e mídia constroem nossa realidade (e que a única forma de lutar contra esse controle é através de mais representação).

O capítulo intitulado “As Artes” é particularmente refrescante. Visitei ambos os museus, o de Arte Moderna em NY e o do Louvre, em Paris. Apenas um deles me fez questionar se eu não podia perceber o mérito das exibições, ou se eu simplesmente não era suficientemente apreciador da teoria e intenção artísticas por trás das obras.

Menciono minhas visitas não para me gabar, mas porque queria ter lido as palavras de Pinker antes de visitar o Museu de Artes Modernas: “a equalização pós-moderna de imagem e pensamento não só transformou diversas disciplinas acadêmicas em tralha como trouxe lixo ao mundo da arte contemporânea”. Alguns movimentos artísticos acham que se trocarmos as imagens e o que nelas é representado, mudamos os pensamentos. Como contraste, Pinker nos oferece seu pensamento:

“Uma vez que reconhecemos o que o modernismo e o pós-modernismo fizeram às humanidades e às artes, as razões de seu declínio e queda ficam demasiado óbvias. Tais movimentos são baseados numa falsa concepção da psicologia humana, a Tábula Rasa. Falharam em aplicar a mais alardeada de suas habilidades — descartar as pretensões — a si próprios. E tiraram a diversão da arte!”

Já posso ouvir a repulsa dos doutos. Mas o que Pinker aponta é que seres humanos têm preferências limitadas, específicas (e não apenas culturalmente moldadas) acerca do que consideramos admirável. Nenhuma quantidade de teoria explicando por que e como estruturas hegemônicas de poder controlam o que a sociedade considera “belo” são capazes de explicar por que eu e tantos outros consideramos a arte moderna… insípida.

Parece a mim um problema que haja entre nós aqueles que ainda querem acreditar que são majoritariamente a cultura e a sociedade que moldam os indivíduos — e que, portanto, apenas fixados em consertar nossos sistemas nós podemos amenizar o sofrimento humano. Ao contrário, nós precisamos de um entendimento pleno da natureza humana em todos os seus detalhes. O mais preocupante é que esse livro veio a público há 15 anos e ainda estamos atolados em discussões nas quais Pinker despendeu muito tempo refutando (a versão de bolso tem 430 páginas).

Apesar de longo (e velho), Tábula Rasa é uma leitura importante a todo aquele que não quer viver num mundo de fantasia. Um mundo no qual o único motor do comportamento humano é a sociedade, enquanto milhões de anos de evolução são descartados por oferecerem, às vezes, algumas verdades que, quando mal formuladas, são consideradas inconvenientes. A natureza humana e nosso comportamento são assuntos fascinantes e maravilhosos, e não podemos chegar a seu âmago se rejeitarmos um enorme número de descobertas replicáveis acerca de suas componentes genéticas e evolutivas.