A quem você pertence?

A quem pertence uma pessoa? Quem
pode dizer que é “dono” de si? Pode uma pessoa estabelecer relação de
propriedade sobre outra? Você pertence a si mesmo?

Estas podem parecer perguntas de
reposta intuitiva: “ora, cada um de nós pertence a si mesmo”, temos a tendência
natural de responder. E, de fato, tão natural é esta tendência que este
pressuposto – “uma pessoa pertence a si mesma” – é a base de importantes sistemas
filosóficos, que enxergam em tal proposição terreno sólido o bastante para
alicerçar o desenvolvimento de suas argumentações.

Mas quantas vezes paramos para
analisar a validade ou os princípios por trás de uma proposição que parece
tão elementar? Deveria ser assim – de um ponto de vista ético, “deveríamos” ter
a propriedade de nós mesmos? Muitas vezes, na história da humanidade – na maior
parte da história da cultura humana, para falar a verdade – indivíduos alegaram
ser titulares de uma relação de propriedade sobre outros indivíduos. E, segundo
argumentavam, “era melhor que assim fosse”. Por isso, não se trata de uma
simples questão de aceitar a obviedade da questão – pois ela não é óbvia –, devemos investigar
um pouco mais a fundo o problema: Você pertence, ou deveria pertencer em
decorrência de um imperativo ético, a si mesmo?
Como veremos, mais
importante do que responder satisfatoriamente esta questão, a própria
investigação dos princípios por trás deste assunto nos traz a percepção de uma série de
consequências, que nos forçam a repensar decisões às quais já estamos
acostumados e reavaliar nossas relações com os demais indivíduos.

Quem é uma pessoa?


Em primeiro lugar, vamos
delimitar corretamente os termos a ser utilizados, para não incorrer no erro de
argumentar sobre pressupostos e conceitos vagos. Se estamos investigando se uma
pessoa deve ser proprietária de si mesma (ou seja, delimitando o problema a uma
categoria específica de afetados – as “pessoas”) é natural que nosso primeiro obstáculo
seja definir o universo dos afetados por esta categorização, e porque este critério
de categoria, e não outro qualquer, é o relevante. Quem é, afinal, “uma pessoa”?

A linguagem comum costuma
associar o termo “pessoa”, a “um hominídeo da espécie humana”. A denominação da
espécie, família ou ordem, no entanto, embora possa ter utilidade para fins
taxonômicos, para fins de apreciação ética é completamente irrelevante. Uma
“pessoa”, e o fato de “ser pessoa”, devem ser definidos por critérios
objetivos: se o hominídeo humano é “uma pessoa”, ele é em razão de algo mais forte que um mero rótulo dado a uma espécie animal específica em função de uma particular condição genética.
Um critério frequentemente
invocado para dizer que um hominídeo da espécie humana é uma pessoa é o de
que a própria definição de “pessoa” gira em torno da semelhança que temos uns com
os outros. Estendemos o mesmo status status de pessoa – a todos os nossos
semelhantes, de modo que reforçamos, pela mútua proteção, um tratamento que
julgamos desejável a nós mesmos. Embora tal prática seja realmente útil, é um critério
bastante fraco: afinal, quem é nosso semelhante? E por que justamente “nosso” semelhante? Parece um tanto conveniente. O argumento não possui uma base universal, mas depende que o avaliador seja um
hominídeo humano, apenas uma das cerca de 9 milhões de espécies de seres vivos
do nosso planeta. Logo, é um argumento de posição privilegiada, não um
argumento ético baseado em princípios gerais: embora sirva aos propósitos de
assegurar certo status ao conjunto dos animais humanos, não possui valor universal. Uma demonstração da fragilidade de tais tipos de posicionamento baseado na conveniência para o proponente é o fato de que em um passado  bastante recente, por exemplo, os próprios humanos eram classificados em “humanos-pessoa
(quando a fronteira da classificação orbitava os humanos europeus, a quem era conveniente a mútua proteção proporcionada pelo status) e “humanos
não-pessoa
”. Ainda hoje o problema da definição por semelhança à posição
privilegiada persiste e exclui, ainda, os próprios humanos: no Oriente Médio, gays,embora sejam animais humanos, não são considerados “pessoas reais”, por não
compartilharem de certa característica arbitrariamente escolhida que os tornaria
“semelhantes” aos demais. Um recente e polêmico estudo médico, também se
firmando sobre um critério de semelhança com a posição privilegiada, argumentou
que bebês humanos recém-nascidos, embora certamente humanos, são diferentes dos demais humanos a ponto de não serem considerados “pessoas reais”, mas pessoas “em
potencial”, logo, não teriam direito moral à vida.
Abandonando argumentos de posição
privilegiada, racistas ou especistas, e correndo o risco de beirar a tautologia, parece
razoável afirmar que “uma pessoa” é “um ser dotado de personalidade”, de modo
independente de outras categorizações. Isso não é mero jogo de palavras: “personalidade”,
em uma primeira análise, é algo que “se possui”, em vez de algo que “se é” – logo,
um objeto, o que implica em ser algo identificável, observável e, por
consequência, delimitável, ao invés de um status subjetiva e arbitrariamente
atribuído – o que torna a tarefa de responder a questão inicial substancialmente
mais simples. E, se é algo que “se possui”, transmite ao seu possuidor o status
de “pessoa”, independente de quem o possua.
Mas qual objeto é esse, “personalidade”?
– afastando-se, novamente, do sentido que o senso e a linguagem comum dão a
esse termo (onde significa o “padrão de comportamento típico” de alguém), e
servindo-se de uma noção da psicologia – podemos dizer que a “personalidade” é
a “organização interna e dinâmica dos sistemas psicofísicos que criam os
padrões de comportar-se, de pensar e de sentir”, ou seja, é uma forma de
organização do ente que o habilita a perceber-se como porção delimitada do
universo, estabelecer a distinção entre “o eu” e “o mundo exterior” e conduzir
seu comportamento e relações do seu eu interno com o mundo exterior de acordo
com esta individualização. É um conceito que muito se aproxima da ideia de
individualidade – perceber-se e comportar-se enquanto indivíduo – e de
consciência – ter consciência própria, de si mesmo e de uma separação clara entre
si e o mundo exterior.
Assim, quando nos referimos aqui
a “pessoa”, o fazemos no sentido de “um indivíduo consciente” ou, ainda melhor,
no sentido de “uma consciência individual”. Vamos, então, resumir a definição de
pessoa como à “vontade consciente individual”, ou, como só o indivíduo pode ser
consciente, simplesmente como “vontade consciente”. Isso amplia nosso conceito
de “pessoa” para muito além do universo amostral dos hominídeos humanos, uma
vez que a larga maioria dos animais, independente da ordem, compartilha destes mesmos
atributos. Inclusive – e isso é profundamente interessante -, também alarga o
conceito para muito além do que consideramos “seres vivos”, já que o critério
vida” (outro conceito extremamente escorregadio) também passa a ser
irrelevante. Se uma hipotética máquina “não-viva” for suficientemente complexa a ponto de apresentar
tais características, consequentemente deve ser considerada como uma pessoa. Talvez este problema específico atinja uma relevância maior no futuro, e, hoje, seja rapidamente classificado como “irrelevante para efeitos práticos“: mesmo assim, um conjunto universal de princípios deve englobar situações presentes e futuras, mesmo que sejam imaginárias, e deve ser coerente e manter a integridade mesmo em tais demonstrações hipotéticas.

Uma pessoa pode pertencer a
alguém?




Uma vez que tenhamos um conceito
delimitado de pessoa, podemos avançar e nos dedicar à próxima questão: é
possível que uma pessoa pertença a outra? Para responder esta pergunta,
precisamos lançar luz sobre dois aspectos: o que define o pertencer (a relação
de propriedade) e, após, o que define quais entes podem ser ligados entre si
por relações de propriedade.
“Propriedade” é um conjunto de
direitos (“bundle of rights”) que uma pessoa tem em relação a um objeto. É um
conjunto de direitos complexo, divididos em dois subcampos: um conjunto de
direitos “positivos” (que permitem ao titular definir, de acordo com a própria
vontade, o uso que é dado a tal objeto) e,talvez o mais importante, um conjunto
de direitos “negativos” (que permitem negar a outros, que não o titular, o
direito de fazer o mesmo). É uma relação abstrata (ela não se baseia em um fato
físico da natureza), constituída de modo independente do fenômeno da posse (o
qual se refere ao ato e ao poder concreto, físico, de impor sua vontade sobre o
uso de um objeto). Uma pessoa pode ter a propriedade de algo sem, de fato,
possuí-lo, e vice-versa: um sequestrador ou um escravista podem, por exemplo,
ter a posse de uma pessoa (impor uso de fato sobre seu corpo), mas isso não
implica que ele possa sobre ela invocar relação válida de propriedade (a pessoa não
passa a “ser dele”), ou então alguém pode ter propriedade sobre algo (no caso do sequestrado, que mesmo cativo ainda tem propriedade sobre si mesmo) sem ter a efetiva posse.
Duas grandes correntes
jurídico-filosóficas invocam explicações diferentes sobre a relação de
propriedade. Uma delas, a positivista, explica que “direitos” constituem-se unicamente
como relações criadas, definidas e sustentadas por lei: logo, a propriedade é o
que uma determinada cultura, por meio de leis emanadas de uma autoridade, impõe
e aceita como relação válida. Assim, se a lei permite que uma pessoa tenha
propriedade sobre outra, se assim foi socialmente decidido e legislado, de
forma válida e legítima por seja qual for o sistema político e jurídico daquele
grupo de pessoas, está constituída tal relação, a qual deve ser observada pelos
demais componentes da sociedade por dever de obediência às normas emanadas da
coletividade. O positivismo jurídico ganhou força com o movimento de expansão
do poder estatal que caracterizou a era napoleônica, e reinou soberano até as
grandes guerras mundiais.
Uma segunda corrente é o
jusnaturalismo, que perdeu força durante a ascensão do positivismo (quando
então sustentava uma bastante frágil posição derivada de ideias religiosas,
bastante criticadas já no século XVII), e que, após uma revisão crítica dos
princípios positivistas à luz das tragédias das grandes guerras, em especial ao
pressuposto que a lei legitima plenamente a si mesma, voltou a ocupar a atenção
dos filósofos do Direito. Esta posição invoca uma base principiológica subjacente
para as questões legais: para cada questão, há, em tese, um posicionamento
legal ideal, que se aproxima do ideal abstrato de justiça (derivado da razão,
da ética, ou, como antes pregava, da própria vontade dos deuses – de qualquer forma, cogniscível) e a lei deve
refletir tal ideal, tal conjunto de princípios, sob pena de ser uma lei injusta
(o positivismo jurídico não considera a ideia de “lei injusta”, pois a lei,
posta pela autoridade, é o próprio critério de justiça). Logo, para o
jusnaturalista, a propriedade deve ser “o que é justo que seja a propriedade”,
independente do disposto em leis.
A questão jus-filosófica é certamente
bem mais complexa que o resumido acima, mas, como estamos tratando de ética –
ou seja, do dever-ser, o ato de escolher determinada ação em detrimento de
outra porque apresenta conteúdos valorativos diferente, mais elevado –
evidentemente devemos optar por uma abordagem mais voltada à concepção
jusnaturalista de propriedade. O que é, então, “justo que seja da propriedade”?

A propriedade de si mesmo é eticamente justificável?




Como vimos, ao atribuir
propriedade de algo a si mesma, na verdade uma pessoa passa a atribuir a si (ou
seja, à própria vontade consciente) o status de titular de um
conjunto de direitos sobre aquilo que definiu como propriedade. Mas fazê-lo sobre
si mesmo é justificável de acordo com um princípio ético? Tornaria tal pretensão
preferencial em relação, por exemplo, à pretensão de outro, lançada sobre também sobre ele?

Vamos buscar uma raiz consequencialista
para a resolução deste problema. Assumindo que uma situação que traga um maior
arranjo de utilidade
, simultaneamente, a todos os envolvidos, é universalmente
preferível em relação a um arranjo que traga menos utilidade (logo, é
objetivamente melhor, independente da
posição do avaliador), temos que a busca de tal arranjo (arranjo ótimo) é um
princípio de dever. Se admitirmos, então, que o princípio da autopropriedade
(ou seja, de que uma pessoa pertence, por relação de propriedade, a ela mesma)
proporciona tal arranjo, concluímos que observá-lo, independente da prescrição
legal acerca do tema da propriedade, é um dever ético.

Vamos também partir do fato, observável,
de que as pessoas, dotadas de vontades individuais diversas, concorrentes e por
vezes opostas, diferem acerca do que é o melhor uso de cada uma de si mesmas, e
que, por diferenças de gostos e preferências, possuem percepções diferentes de
utilidade acerca das mesmas situações. Imaginemos, a partir daí, três
situações: uma onde as pessoas exercem direitos de propriedade exclusivos sobre
si mesmas, uma situação onde um elemento externo – outra pessoa, ou a própria
coletividade – possui as pessoas, e outra situação que simplesmente não admite
a fixação de direitos de propriedade, nem favorecendo elas mesmas nem outros,
sobre os indivíduos.
Na primeira situação – pessoas
são “donas” de si mesmas
– um indivíduo faz uso de si livremente, de acordo com
os próprios critérios de percepção de utilidade. Adicionalmente, o fato de que
a propriedade exclui outros de definirem qual será o uso de sua própria vida impede
que ele perceba utilidade negativa por ser forçado a fazer o que não deseja. Não
há, em tese, geração de utilidade negativa quanto ao fato isolado da fixação de
autopropriedade, pois, desfrutando do status de autoproprietário, alguém protege-se de uso próprio
contrário à sua vontade (o que não impede, claro, que as pessoas se frustrem com o uso que
os demais fazem da própria autopropriedade – mas ali elas são plenamente ilegítimas para
reclamar direitos).
A segunda situação – outros,
inclusive a coletividade, podem estabelecer propriedade sobre as pessoas

implica que a aquisição de propriedade sobre alguém é possível, mas não é
garantido que uma própria pessoa seja dela mesma: isso até pode ocorrer, mas
não é automático. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que, em uma primeira aproximação teórica, não parece ser uma
situação obrigatoriamente ruim: certamente o arranjo mais eficiente, definido
racional e metodicamente por esta entidade capaz de possuir os outros de
acordo com a sua vontade, pode alocar cada pessoa no local onde mais traz
benefício ao grande grupo de pessoas, o que inclui a si mesma – o que seria, de um ponto de vista consequencialista, “ético”. Mas será assim?
Esta proposição ignora alguns
fatos. O primeiro é que as pessoas possuem percepções variadas de utilidade,
por vezes concorrentes e opostas. Qual o critério utilizado para alocar quem em qual uso? O proprietário
tende a definir o uso do que possui com base nos próprios critérios. Uma
religião, por exemplo, que estabeleça que todos os indivíduos são propriedades
de um deus, leva apenas a consideração a vontade de tal deus (mais
frequentemente, a vontade de seus autoproclamados representantes), sem levar em consideração os desejos, gostos, preferências e aspirações das próprias pessoas. Uma raça ou espécie que estabeleça ser
proprietária de outra certamente tende a levar seus gostos e preferências mais
em consideração que os da raça ou espécie possuída.
É em teoria possível, no entanto, que este
arranjo maximize os interesses de ambas as raças, ou seja, atinja um ponto de
equilíbrio máximo onde é impossível aumentar a percepção de utilidade de
qualquer dos envolvidos sem diminuir a percepção de pelo menos um dos demais
(em outras palavras, atingir a Eficiência de Pareto, nome dado a tal situação em
homenagem ao engenheiro e economista italiano Vilfredo Pareto, que a teorizou)?
Certamente, embora extremante improvável, já que dependeria de uma capacidade infinita de pesar, levar em consideração e concliliar interesses adversos, conflitantes, perpetuamente em mudança e
teoricamente em número infinito. Mas é curioso observar que tal ponto, se de fato existe, por
respeitar a percepção de utilidade negativa dos envolvidos, é o EXATO ponto em
que, no livre exercício da autopropriedade, os diferentes envolvidos potencialmente chegariam
ao explorar progressivamente “zonas de não-autopropriedade” e maximizar as possibilidades de benefício não-invasivo, ou seja, o
uso de si mesmo que não invade, contra a vontade alheia, as esferas de
autopropriedade das demais pessoas – com o benefício adicional de que, neste
segundo caso, o risco de ser forçado a perceber utilidade negativa por uso
compulsório e indesejado de si mesmo não existe.
Isso nos leva a um terceiro problema: embora seja
possível que a propriedade de outros proporcione também aos objetos de
propriedade níveis adequados de satisfação, não há obrigação alguma do titular
da propriedade observar isso. Ele não está limitado pelo desejo de satisfação
das vontades das quais é dono, pois, se estivesse limitado, significa que não
possui de fato propriedade: elas resguardam pelo menos alguma fração dos direitos negativos que a autopropriedade lhes confere, que é o de afastar de si usos indesejados. A vontade consciente proprietária é, em princípio, soberana sobre sua propriedade; ou isso, ou não é proprietária, mas possuidora.
Um quarto problema é um paradoxo.
Se a coletividade pode estabelecer propriedade sobre outra pessoa, com a
justificativa de que o faz em nome de um bem maior, segue-se que este bem não
deve ser setorial, de acordo com o proposto acima (pois, se for minimamente
setorial, e não global, exclui pelo menos uma parcela da fruição dos benefícios). Ou seja, deve haver
uma tendência à unidade: não só você pertenceria à sua própria comunidade, mas
à nação, pois as diferentes comunidades de uma nação podem ter interesses
médios diversos. Logo, não só a nação, mas à humanidade como um todo; logo, não
só à humanidade, como ao planeta, e assim sucessivamente. Isso acaba no ponto
onde alguém pertence a tudo, e tudo, em uma pequena parte, pertence a esta
pessoa, com uma notável exceção: a própria pessoa é a única sobre quem não pode invocar
propriedade, pois não pertence de modo algum a si mesma. É uma inversão
completa do princípio original, e uma formulação bastante estranha.
O terceiro caso – onde
simplesmente não há direitos de propriedade sobre indivíduos, o que inclui a
autopropriedade
– traz uma situação onde não há base principiológica para impor
sua vontade sobre os outros, mas também impede que você ou qualquer um afaste, invocando direitos
negativos (o direito de “não” ser usado por outros), uso indesejado dos outros
sobre você mesmo, já que esta faculdade é uma expressão direta da
autopropriedade. Observaríamos que nada, então, impediria o relacionamento pelo
meio da mera relação de posse, se a força para fazê-lo assim o bastasse.
Por isso, podemos perceber que
há, sim, justificativa ética em atribuir propriedade de uma pessoa a si mesma e
aceitar o princípio da autopropriedade, o que equivale dizer: uma pessoa deve
ser a única capaz de definir o uso que fará da sua própria vida,
e, mais
importante, deve ser respeitada a vontade de uma pessoa, como imperativo ético,
de negar-se a permitir o uso de si mesmo contrário à sua vontade
.

Implicações Imediatas

Aceitar como ético o princípio da autopropriedade é aceitar que é melhor que cada um tenha o poder de determinar o próprio destino, e implica em uma série de conclusões que, sob pena de viver em contradição, devemos incorporar em nosso comportamento e relacionamentos com o mundo.




Você pertence a si mesmo, não a qualquer outra pessoa ou à coletividade. Ninguém a não ser você deve estabelecer o uso que você faz de si mesmo, mesmo
que essa pessoa seja alguém fisicamente mais forte, ou que seja do sexo ou etnia tradicionalmente tido como dominante; nem que seja um grupo  representante de uma maioria ou um consenso, ou que alegue falar em nome de uma corrente filosófica ou
religiosa majoritária ou oficial, ou o que quer que seja. Você é absolutamente seu. Isso inclui o uso do seu corpo e o uso da sua mente, seus atos, hábitos, ideias, preferências e consciência. Tudo isto é parte intrínseca de você, logo, única e exclusivamente seu. Do mesmo modo, mesmo que seja mais forte, ou mais inteligente, ou de um sexo ou etnia que a sociedade aceita como tradicionalmente dominante, mesmo que represente uma
maioria ou um consenso, você não pode impor aos outros usos de suas vidas que estejam em
desacordo com as suas vontades. Viver de modo coerente com isso é viver respeitando a vida, as preferências e opções dos demais, e viver de modo a, a cada atitude, preferir aquela que não impõe sofrimento aos outros.
Você não pode decidir pelo sacrifício de uma minoria em nome de um bem maior. Muitas vezes, os proponentes de uma ética consequencialista são criticados por “permitirem sacrifícios” em nome de um arranjo que traga maior valor agregado de utilidade. Embora esta crítica possa se aplicar a a alguns autores clássicos e formas primitivas de pensamento consequencialista, isto não é verdade no consequencialismo como um todo. O consequencialista define com base em sua filosofia de maximização de utilidade as melhores ações e opções éticas, mas o faz dentro de uma esfera de decisão protegida pela autopropriedade e limitada pela autopropriedade dos demais. Decidir o uso da vida dos outros é usurpar a vida alheia. E, ao usurpar a vida alheia, uma pessoa ajuda a destituir o próprio princípio da autopropriedade, reforçando, em seu lugar, a ideia de relacionamento pela força. Mesmo legislar sobre as opções que alguém deve ter – opções de comportamento, de gostos, de vida sexual – é uma forma de usurpar a vida dos outros.
Um pessoa, seja um animal humano ou animal não-humano,
em tese, é a única titular de direitos morais de propriedade sobre si mesmo
.
Esta é uma consequência intuitiva dos princípios acima, mas é necessário um
adendo, que justifica o “em tese”: estamos pressupondo com isso que todos os
animais são dotados de vontade consciente, o que talvez não seja o caso. Algum
animal bastante primitivo, ou desenvolvido de modo planejado para tanto, pode não
apresentar traços de consciência. Da mesma forma, células animais, humanas ou
não, em estágio inicial de desenvolvimento também estão excluídas da
autopropriedade, por não apresentarem seu atributo justificador, a vontade consciente. À medida em
que estas se desenvolvem, destacam-se, com o aparecimento de vontade
própria, da esfera de autopropriedade do ser que o gerou para desenvolver sua
própria esfera de autopropriedade.
Algo que não seja uma pessoa não
pode ter propriedade sobre si mesma, uma vez que não possui vontade consciente, mas uma pessoa deve possuir autopropriedade
. Como não há vontade consciente em um ser
não-consciente, não há interesse positivo de fazer uso de sua própria vida de
determinado modo, nem interesse de impedir que outros façam uso dele mesmo. Um
ser vivo que não possua consciência não possui, logo, autopropriedade, mesmo
que seja geneticamente um hominídeo humano. Isso não implica que seja automaticamente propriedade de outra pessoa.
Não só um animal, mas um artefato
pode, eventualmente, ser proprietário de si mesmo.
Assim que uma máquina passa a perceber-se como uma vontade consciente, adquire propriedade de si mesma.
Quaisquer diferenças com o avaliador da questão, invocadas para negar seu
status de autoproprietário, são argumentos de posição privilegiada. Certamente, a dimensão desta implicação será muito maior no futuro, supondo uma manutenção na acelerada taxa de aumento de capacidade das máquinas que, hoje, já observamos.
Não é possível abrir mão da autopropriedade. Você não pode perder voluntariamente seu status de autoproprietário, pois este emana da sua vontade consciente, que é intransferível. Você pode compartilhar com outra pessoa o domínio sobre si mesmo, mas este compartilhamento é uma simulação de propriedade: você na verdade exercita sua autopropriedade, e não a transfere, ao permitir que os desígnios de outrem influenciem o uso que você faz de si mesmo. Sempre que desejar, pode reclamar o controle sobre si mesmo, com total e pleno direito.

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