Ciência na era da pós-verdade: disputa entre esquerda e direita

De acordo com o Dicionário Oxford Online, pós-verdade refere-se às circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal.

As circunstâncias nas quais isso ocorre são rotineiras, tão rotineiras que já passam desapercebidas. Para o grande público, a prática não é novidade, é recorrente.
Quem nunca se deparou com a a afirmação “…é a minha opinião, respeite-a…’?

Interlocutores frequentemente confundem o direito de livre manifestação com o valor de uma opinião substanciosa, gerando debates ruins e longe de qualquer consenso.

Mas nosso zeitgeist atual não se refere a debates ruins e acalorados em ambientes informais. De uma maneira curiosa e assustadora, as instituições, governos, universidades e empresas passaram a tomar a linha de frente do exercício do irracionalismo.

No livro “Enlightment 2.0: Restoring sanity to our politics, our economy, and our lives“, Joseph Heath narra as características do que ele chama de “conservadorismo de senso comum”. Um conservadorismo sem bases teóricas, apoiado em experiências pessoais e muito difundido entre pessoas de baixa escolaridade. Dentre alguns pontos desse tipo de conservadorismo, está o desprezo pela erudição, como se o exercício da intelectualidade fosse a causa de todos os males modernos.

O que podemos observar na era da pós-verdade é o modus operandi deste conservadorismo, só que disseminado entre diferentes grupos políticos. Embora os objetivos sejam distintos, muitos conceitos comumente encontrados entre grupos de estudantes universitários funcionam de maneira muito semelhante ao conservadorismo de senso comum.

Conceitos como “lugar de fala” e “vivência” tomam o centro de debates e tomadas de decisões em detrimento aos dados acumulados e obtidos de maneira impessoal. É neste ponto que tudo se torna obscuro, já que além do desprezo pela informação formal surgem interpretações equivocadas da realidade. Surge a divisão artificial dos grupos sociais entre opressores e oprimidos, onde não importam os argumentos, apenas as características do emissor.

Aliado a isso há ainda a adoção do relativismo epistêmico, colocando ciência e esoterismo no mesmo patamar. O resultado não pode ser vantajoso. Mas, além dos efeitos negativos, podemos observar alguns padrões de comportamento que caracterizam diferentes grupos políticos. É como se, ao fazer parte de um grupo, o indivíduo assumisse uma cartilha. E, junto da cartilha, surgem as defesas dos conteúdos que contrariam as análises mais refinada de dados.

É neste universo que, enquanto a direita conservadora defende o criacionismo, a esquerda ataca os transgênicos.

Enquanto a direita ataca a origem antropogênica das mudanças climáticas, a esquerda prega o reducionismo sociológico.

Vemos a esquerda celebrando a astrologia e segmentos malucos da direita a ideia de Terra plana.

Programação do evento Pint of Science 2018 divulgada pelo Instagram da TV USP. Segundo a organização, as palestras em destaque já foram canceladas.

Enquanto um lado acusa o conhecimento e a ciência de serem “brancos/machistas/opressores”, outro lado vê na universidade um ninho de “esquerdistas” querendo controlar e expurgar as liberdades individuais.

Exemplos temos muitos, poderia continuar com diversas citações em campos variados das ciências naturais, mas também da economia, da sociologia, etc. O assustador de tudo isso é que ninguém está aberto ao debate. Há uma cartilha política maior associada a cada uma dessas ideias, que se comportam como uma composição de trens. Para os seguidores de tais maluquices, se um vagão sair dos trilhos, todo resto da composição está perdida.

 

Programação de Encontro de graduandos em Biologia. Sobra espaço pra Biologia?

Ou seja, não será fácil nos livrarmos de ideias que se comportam desta maneira.

Esses memes agem como religiões fundamentalistas, as disputas se articulam como pequenas jihads. É nesse cenário que surgem debates vazios. Afinal, o Nazismo é de direita ou de esquerda? Importa? Qual o objetivo de imputar a culpa pelos crimes nazistas em um ou outro grupo se não tirar proveito da situação?

E pelo caráter político, reduzimos tudo a questões políticas. Perdemos em qualidade e na oportunidade de consensos fundamentados, assim como em resultados palpáveis. Recheamos nossas universidades de ideias sem base, de criacionistas, pós-modernistas, terraplanistas, ativistas do Greenpeace, eleitores de Bolsonaros, Lulas, etc. Ao mesmo tempo esvaziamos qualquer possibilidade de debates.

A universidade e demais instituições viram “antros” de dualidades. Os espectros políticos disputam seus espaços, não pela razão, mas pela emoção. E, vagarosamente, todos eles viram pequenos enclaves, longe da realidade, mas excelentes ferramentas na mão de quem interessar.

 

Nota sobre o Facebook e a polarização política

No dia 10 de abril de 2018, Mark Zuckerberg, fundador e chefe do Facebook, fez um depoimento ao congresso dos EUA, que busca investigar se a rede social permitiu influência indevida de atores internacionais sobre as últimas eleições presidenciais daquele país.

Dois momentos nesse depoimento nos chamaram a atenção: quando Zuckerberg comentou as políticas de limitação da expressão na rede social, e quando respondeu a um senador conservador sobre acusações de viés político da rede e supressão de opiniões e publicações socialmente aceitáveis vindas do campo político desse senador.

Sobre o segundo questionamento, Zuckerberg disse que as opiniões conservadoras são bem-vindas em sua rede social, e, apesar de alegar desconhecimento de exemplos específicos de censura apontados pelo senador, reconheceu que o vale do silício tem um extremo viés a favor da esquerda. Daí se pode presumir que não seria surpresa se, em caso de erros de seus milhares de revisores de conteúdo, esses erros tenderiam a favorecer a esquerda. Na nossa experiência, isso tende a ser verdade, mesmo que o suposto favorecido dos erros do Facebook com a empresa Cambridge Analytica tenha sido o atual presidente republicano Donald Trump (essa conclusão dependerá das investigações).

Meses atrás, em depoimento anônimo à BBC Brasil, um dos revisores de conteúdo do Facebook disse que é comum, por exemplo, que minorias sejam punidas por usarem palavras que antes eram pejorativas contra elas próprias de uma forma que as resgata, as apropria e lhes muda o sentido para algo positivo. Certamente não são os conservadores o grupo político que tenta “proteger” minorias de meras palavras, embora certamente tenham também suas tendências autoritárias em outras direções.

Sobre o primeiro questionamento acerca das políticas do Facebook para limitar a expressão de seus usuários, Zuckerberg propôs que seriam limites a incitação à violência e o “discurso de ódio”. Quanto à incitação à violência o congressista concordou que deve ser um limite (assim como concordariam filósofos que trataram da liberdade de expressão, como John Stuart Mill). O ponto preocupante é o “discurso de ódio”: Zuckerberg, como outros que desejam ver regras e até leis que proíbam a expressão desse tipo de discurso, não conseguiu definir o que é isso. Não é surpresa a falha em definir de forma convincente e satisfatória: o termo, que não é um dos limites clássicos à liberdade de expressão, é moda intelectual recente da esquerda, não é consenso, sofre de ambiguidades e subjetivismos impossíveis de se codificar em lei. Tentativas de coibir expressões supostamente não contidas na liberdade dos indivíduos com base nisso (liberdade que inclui o direito de errar, e a liberdade de pensamento para nutrir sentimentos pouco nobres para com outras pessoas — somente num pesadelo totalitário poderia haver algum sucesso das autoridades em suprimir emoções fundamentais humanas como o ódio). Não é surpresa que até os grupos que essa criminalização de “discurso de ódio” tenta proteger terminem por ser alvos dessa mesma criminalização, como no exemplo mencionado acima.

O humanismo deve ser uma força despolarizadora no ambiente político. Uma força que promove a transigência, o meio-termo e o acordo, pois os direitos humanos não pertencem a nenhuma agremiação partidária ou política, são uma conquista civilizacional que foi em si mesma fruto de outros acordos e meios-termos. O mesmo pode ser dito com relação a todos os outros elementos do humanismo: o ceticismo para com dogmas de todas as religiões, o trabalho para construir uma vida de valor aqui e agora, sem promessas sobrenaturais de outras oportunidades após a morte.

A LiHS incentiva humanistas de todas as orientações políticas a se juntarem a nós, inclusive para corrigir eventuais vieses políticos que nós mesmos tenhamos demonstrado inadvertidamente no passado. Internamente, como é nossa obrigação, não estamos dispostos a negociar sobre os valores do humanismo para favorecer qualquer partido ou agrupamento político. Queremos uma sociedade livre administrada (onde cabe essa administração) por um Estado laico, em que a dissidência não-violenta sempre seja possível.

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Para desenvolvimento técnico dos assuntos tocados nesta nota, recomendamos o trabalho de acadêmicos como Jonathan Haidt e Steven Pinker, e o website Heterodox Academy.

Ataques recentes à “laicidade” Estatal brasileira

Recentemente há um incremento na frequência de ataques ao caráter pretensamente laico da sociedade brasileira, além de enorme variedade de alvos específicos destes ataques. É comum que as críticas recaiam somente à Bancada Evangélica e afins, focando a ânsia teocrática neopentecostal, muito embora outras organizações eclesiásticas (ou simplesmente confessionais) contribuam para a erosão do laicismo nacional.
O ensino religioso confessional em escolas públicas, recentemente ratificado pelo STF, é decorrência de um acordo entre Lula e a Santa Sé (portanto uma manobra da ICAR, não dos evangélicos), no Decreto Presidencial 7107, de fevereiro de 2010.
 
Tentativas recorrentes de leis de blasfêmia são oferecidas às Casas Legislativas, como a mais recente proposição da PL8615/207, enviada ao Congresso pelo deputado e pastor Marco Feliciano, cujo texto pode ser conferido aqui . Cabe ressaltar que na legislação brasileira já vigora uma lei de blasfêmia (artigo 208 do Código Penal), como aponta a IHEU.
 
Ademais, é comum que em cidades ou estados governados por políticos oriundos da Bancada Evangélica haja a imposição de cultos nas Casas Legislativas (em direta afronta aos artigos 5 e 19 da Constituição Federal, como mostrado aqui), a criação de feriados e dias comemorativos confessionais, a alteração de nomes de ruas e praças, etc.
 
Além dos ataques claros à laicidade Estatal brasileira perpetrada por grupos clericais organizados, ricos e poderosos, como a ICAR e os diversos grêmios neopentecostais, ainda há ataques apoiados ou promovidos por associações confessionais espíritas e de matiz africana, manifestados (por exemplo) na oferta pelo SUS de “terapias alternativas” sem embasamento científico. Ainda neste tema, tal ataque provém também, e com maior intensidade, aliás, de grupos obscurantistas “seculares”, irracionalistas, que buscam degradar ativamente a racionalidade, onde quer que ela predomine.
 
A noção de laicidade Estatal ganhou força no fim do século XVII e ao longo do século XVIII, em decorrência da enorme perda humana e econômica das Guerras Religiosas (como a Guerra dos Trinta Anos) europeias e da mania persecutória assassina causada pelo pânico moral associado ao rigor pietista (popularmente conhecida como “caça às bruxas“). Ao retirar a religião e, principalmente, os agentes das instituições clericais, da vida pública, obtém-se maior e mais ampla liberdade religiosa aos cidadãos e proteção de crença e culto aos adeptos de religiões minoritárias ou localmente perseguidas.
 
Na maioria dos locais onde tal noção não obteve preponderância política, há restrições confessionais muito graves, perseguição política de religiões minoritárias ou historicamente atacadas e assaltos arbitrários aos direitos individuais das pessoas (por motivos relacionados ao conteúdo prescritivo das religiões localmente dominantes). Como exemplo é fácil citar Malásia, Paquistão, Irã, Arábia Saudita e, mais recentemente, a Turquia, além de inúmeras outras nações de maioria islâmica; ou a Rússia.
 
Para garantir os direitos individuais de liberdade de crença e de culto, de diversos direitos individuais em geral e também para assegurar a convivência pacífica entre pessoas de confissão diversa, inclusive as descrentes, é necessário manter a religião circunscrita à esfera da vida privada. Historicamente se verifica que, quanto maior o caráter laico de uma sociedade, mais pacífica ela é e maiores são as liberdades individuais por ela garantida. O apelo pelo Estado laico é um apelo por tolerância religiosa, solução pacífica de conflitos, promoção de liberdades individuais, prosperidade material e justiça social.

O conto do Estado “laico” brasileiro

A sociedade brasileira herdou de sua origem ibérica um grande senso moral cristão e pietismo católico, com órgãos da ICAR participando ativamente do funcionamento do Estado até pelo menos 1889, quando a República foi instaurada já com flertes ao laicismo. Ao longo do século XX as instituições clericais paulatinamente perderam espaço na vida pública, ainda que tenham participado de movimentos sociais que contribuiriam para o nascimento de alguns partidos políticos importantes na era democrática. E a Constituição de 1988 declara a laicidade do Estado brasileiro.

E é mais ou menos esta a história. De forma grandiloquente a CF declara o princípio de laicidade, sobretudo de tolerância religiosa, mas também de separação entre Estado e entidades clericais. Mas a própria CF não se orienta tendo a laicidade como princípio fundamental, daí ela própria estabelece brechas largas para a infiltração de entidades clericais na vida pública, contrariando o conceito de laicidade que ela própria havia abraçado.

O artigo 5º da CF diz:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 

E seguem-se diversas garantias, dentre as quais eu destaco as seguintes:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

No próprio cerne da laicidade do Estado, segundo a CF, já há uma brecha para a atividade clerical em “entidades civis e militares de internação coletiva“.

Outro princípio secular, a separação entre Estado e entidades clericais, se apresenta no artigo 19º:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

É frequente vermos desrespeitados estes artigos constitucionais, em especial o 19º. E está claro que a CF não foi projetada tendo em vista os valores típicos do secularismo, senão uma salvaguarda canhestra de liberdade religiosa e uma desesperada tentativa de inibir a promiscuidade entre Estado e entidades clericais.

É importante notar que estas foram “imposições” constitucionais alheias às preferências populares. A maioria da população brasileira é religiosa e não se opõe radicalmente à intervenção clerical na vida pública. Dependesse de consulta popular e é provável que a laicidade Estatal sequer estivesse presente na CF.

Então muito da laicidade brasileira é mera questão formal, é texto da Carta Maior, não exatamente manifesta cotidianamente. E a falta de compromisso com os valores seculares levou a própria CF a permitir brechas à laicidade Estatal (e há muitas!). Então o país é formalmente laico, nem tanto na prática.

É o velho “para inglês ver“.

A aprovação de ensino religioso confessional no Sistema de Ensino Público, por exemplo, privilegia religiões com entidades clericais consolidadas e ricas, dificultando o acesso de religiões pobremente estruturadas no país ou cuja tradição não conta com a centralização institucional. Isso caso já não fosse um absurdo investir dinheiro público em educação confessional.

Não serão frequentes, se é que existirão, educação confessional budista, zurvanista, umbandista e de tantas outras religiões. Veremos a ICAR, as grandes entidades clericais neopentecostais e o protestantismo “clássico” em sala de aula (pública), talvez alguma entidade espírita também se consiga fazer ouvir nas escolas.

As pessoas já são livres para adotarem as religiões que preferirem, se preferirem alguma, e as entidades clericais já podem catequizar os interessados. Permitir que as instituições clericais mais poderosas catequizem nas escolas públicas, financiadas por verbas públicas, parece ser um claro ataque aos excertos constitucionais apresentados — mas não para o STF.