Estupro é coisa séria

  1. O puro horror

            Você é uma garota adolescente. Como tantas garotas, é fã de uma boy band, com rapazes bonitos cantando músicas que você adora. Lá no sertão, no interior da Bahia, as garotas adolescentes são diferentes das das cidades grandes só quanto ao estilo musical. Se a sua sobrinha gosta de Justin Bieber e anseia, com perspectivas reais, que o seu ídolo mundial venha para o Brasil, a garota do interior da Bahia ficará toda feliz quando a banda de pagode de que gosta for para a sua cidadezinha. E se os músicos a convidarem para o seu ônibus, quão feliz ela não ficará? Imagine a sua sobrinha sendo convidada por Justin Bieber para conhecer o estúdio, ou o seu sobrinho chamado por Cristiano Ronaldo para conhecer o clube. Não caberiam em si de felicidade.

            As duas garotas fãs da banda de pagode New Hit saíram logo dessa alegria tipicamente adolescente para o puro horror digno das guerras mais bárbaras. Dentro do ônibus, esperavam-nas não ídolos, senão lobos. Toda uma banda de rapazes bonitos da capital agiu como uma matilha, e fez daquelas garotas sertanejas uma carne barata, para dilacerar à vontade. Por todos os orifícios. Os homens se revezaram, de dois em dois. Uma delas era virgem. O estado da outra chocou o da PM que as atendeu.

  1. O direito à liberdade de à segurança pessoal

            Isso aconteceu em 2012. Só agora, após cinco anos, e com muita pressão, oito dos dez acusados foram condenados em segunda instância. Nos últimos cinco anos, vêm mostrando à sociedade que basta recorrer para ficar em liberdade. Já as garotas aprenderam cedo que a igualdade do sexo não implica qualquer coleguismo e tiveram que se mudar, pois outras fãs da banda não gostaram da exposição dos seus ídolos e faziam-lhes ameaças.

            Nos últimos cinco anos, o Estado brasileiro vem deixando à solta estupradores. Todo ser humano tem o direito de não ser estuprado, a ser livre para dispor do próprio corpo sem ser subjugado pela força bruta de outrem. Mas, no que depender do Estado brasileiro, aqueles que têm bons advogados, independentemente do quão material sejam as provas do seu crime, têm anos de liberdade para estuprar.

            A pena que pegaram é de 10 anos. Tratando-se de crime hediondo, cumprirão dois quintos da pena em regime fechado, ou seja: 4 anos efetivamente atrás das grades. Após esse período, cumprirão a pena em regime semiaberto.

            Mas isso se forem mesmo presos. Mesmo condenados em segunda instância, seguem em liberdade, com planos de apelar no Supremo Tribunal Federal.[1]

  1. Torturando definições

            O estupro é coisa tão horrenda, que até quem a queira praticar não ousará dizê-lo em público. É o crime que associações de criminosos escolhe punir em suas cadeias. É o crime que, quando descoberto, suscita linchamentos. Todo ser humano que tenha um mínimo de humanidade ou preze pela própria reputação irá repudiar veementemente o estupro. Por isso, quem tiver alcance em mídias e alegar ter sido estuprada encontrará pronta recepção na imprensa.

            O problema é se o suposto ocorrido não tiver sido um estupro. Segundo o senso comum, estupro é a penetração contrária à vontade. A legislação brasileira é um pouco mais abrangente, e inclui também qualquer ato voltado à satisfação dos desejos sexuais do agressor, desde que cometidos através de violência e grave ameaça contra a vítima, ou, quando sem violência, ocorrem com menores de 14 anos, ou com o agressor aproveitando-se da incapacidade de resistir da vítima, não importando sua idade. Embora seja abuso sexual, enfiar o dedo em partes íntimas sem consentimento e enquanto a vítima pode oferecer resistência não é estupro. Criminalmente, apesar de a legislação pátria ter reunido diversos atos sexuais sob a rubrica de estupro, existe uma gradação de relevância entre eles, todos tendo como norte a dignidade sexual da vítima. O caso de Clara Averbuck, pelas poucas – e desencontradas – informações passadas por ela, não poderia ser descrito como algo mais que de violação sexual mediante fraude, onde o motorista, com a desculpa de ajudá-la, a teria empurrado bêbada na rua e inserido um dedo em sua vagina. É claro que a situação é revoltante, mas muito menos agressiva do que a do estupro.

            Chamar o caso de Clara Averbuck e o das garotas sertanejas pelo mesmo nome choca o senso comum e é contrário à legislação brasileira.

  1. A importância do registro

            A denúncia formal não realizada acarreta diferentes consequências. Uma é a dificuldade da aquisição de dados relativos aos diferentes crimes de natureza sexual. Uma vez que o Boletim de Ocorrência é a maneira em que o Estado é noticiado sobre a ocorrência de um determinado crime, sem esta formalização a quantidade de crimes acaba sendo subestimada. Este problema de notificação menor que a quantidade de ocorrências pode se dar dentre os mais diferentes crimes, mas, quanto maior o desconhecimento sobre o valor real, pior é a capacidade do Estado – e qualquer outra entidade – de fazer melhor diagnóstico do problema e propor soluções. É verdade que estimativas sobre a subnotificação de casos de estupro são realizadas, mas podem variar entre 10%[2] e 35%[3].

            A não notificação também impede a adequada investigação de um determinado crime. Talvez você já tenha lido, em alguma reportagem, que a média de resolução de crimes é baixa no Brasil (a média nacional de resolução de crimes de homicídio é estimada entre 5% e 8%, apenas). Porém, a baixa notificação pode agravar este problema, afinal faz com que o Estado se enxergue em uma situação mais confortável do que a real.

            A ausência de investigação adequada também dificulta a aquisição de provas contra um agressor, para que ele possa ser processado e julgado. Ao realizar o registro, a vítima deverá ser orientada para a realização de exames específicos. Dentre estes exames, o médico legista verificará se a vítima possui lesões, os tipos de lesões, se fluidos corporais (por exemplo, esperma) podem ser coletados. Em alguns locais, tenta-se extrair o material genético deste agressor, deste fluido, o qual fica registrado em um banco de dados. Também são feitos exames específicos para verificar se a vítima possui lesões que possam levar à conclusão de que estupro foi cometido. Pode ser que, para algumas vítimas, estes exames sejam inconclusivos. Porém, quanto menos a notificações e exames realizados, menores são as chances de obter resultados positivos.

  1. A narrativa na imprensa

            Como dizíamos, o estupro para os brasileiros é um crime horrendo; assim, qualquer pessoa relativamente famosa que alegue ter sido estuprada encontrará crédito e apoio na imprensa. Se a pessoa for uma militante feminista, é até possível que a imprensa a trate como autoridade no assunto. Tal foi o caso de Clara Averbuck: prontamente noticiou-se que fora estuprada, e espalhou-se que vivemos em uma sociedade terrível para mulheres, onde o estupro é perfeitamente normal.

            A imprensa cometeu, então, uma contradição performática: aprendemos que o mundo é um lugar horrível para mulheres, com estupradores por toda parte e ninguém disposto a acreditar nelas quando vitimadas, ao passo que, sem qualquer escrutínio, um possível inocente foi condenado e um falso estupro foi unanimemente noticiado. Ou seja, a imprensa diz que as mulheres não têm voz ao tempo que trata a voz de uma militante feminista como verdade incontestável.

            Ora, se a sociedade civil entender que os estupros denunciados não são bem estupros (como o recente caso do ônibus mostra), os seus ouvidos serão tornados insensíveis às denúncias; se não entender, fomentar-se-á pânico, e as mulheres terão razão para acreditar que não podem usufruir de suas liberdades, pois um há estuprador em cada esquina.

            Esta última é claramente incentivada por lideranças feministas. Para piorar, após o suposto estupro não denunciado à polícia, Clara Averbuck afirmou que não o fez porque não se pode confiar no sistema. Nesse ritmo, as mulheres deveriam aprender que há um estuprador em cada esquina, e que sequer podem recorrer à justiça. Na verdade, se recorrerem, serão antes “punitivistas”, que incompreendem a realidade dos males da mulher, pois segundo “O problema não é apenas este indivíduo e o que ele fez, é toda a estrutura da sociedade que ainda trata a mulher feito um objeto, e, caso ela saia dessa posição e resolva falar e ser sujeito, passa a ser perseguida.”[4] Negrito da autora.

            Sequer tocaremos no assunto da individualidade negada aos homens. Limitemo-nos a concluir que, em vez de recorrer a meios legais e exigir justiça, o que mulheres empoderadas supostamente devem fazer é aceitar a realidade brasileira é horrenda e reclamar na internet. Se tomar medidas legais cabíveis, é uma punitivista incapaz de compreender que a estrutura da sociedade é assim mesmo.

  1. O verdadeiro punitivismo

A atitude da imprensa faz surgir uma espécie de pânico social, onde se veem atos de gravidades diferentes como iguais, ou pensa-se que a lei não preveja punição nenhuma para atos de menor gravidade. Assim, ainda que haja punições, estimula-se a proposta de novas leis movidas por uma sensação fabricada de urgência social. Fabricada, pois a realidade é que já existem leis coibindo e penalizando essas práticas; o fato de não receberem a rubrica de estupro é irrelevante; importante é que sejam coibidas pela lei.

Ademais, muito dessa sensação de impunidade recai somente na falta de entendimento acerca das leis penais e processuais brasileiras. É comum as pessoas pensarem que, ao não reconhecer a existência de um determinado crime, o Judiciário esteja negando a existência de qualquer crime. Ocorre o contrário: muitas vezes magistrados não reconhecem a ocorrência de um crime específico mas entendem que a situação se encaixa em outro, de nomenclatura diversa. Outras vezes o que ocorre é desconhecimento do procedimento legal para se lidar com investigados e acusados, onde as pessoas entendem que se alguém é apontado como autor de um crime, e não é imediatamente preso, está sendo beneficiado pelo descaso do Judiciário – e fazem disso uma bravata contra o sexismo, quando se trata de mero procedimento penal, cujo objetivo é preservar interesses perfeitamente válidos, como a presunção de inocência, o devido processo legal, entre outros.

O caso de Clara Averbuck parece de fato ter incentivado a confusão acerca do que seja estupro, pois logo em seguida tomou a imprensa o “estupro” no ônibus, retratado como a coisa mais corriqueira do mundo. Vejamos o caso da uma jovem que recebeu um jato de esperma de um desconhecido em uma linha de ônibus em São Paulo: o agressor já possuía contra si diversas ocorrências registradas pela polícia, todas pelo mesmo tipo de agressão. Imediatamente as pessoas passaram a classificar o caso como estupro e se chocaram com a ordem judicial de revogação da prisão do agressor, tendo o magistrado reconhecido que não se tratou de estupro e sim de importunação ofensiva ao pudor – uma contravenção penal punida de forma muito menos branda pelo nosso sistema legal.

            Do jeito como o debate está atualmente pautado, é necessário que delinquentes que cometam atos menos graves que estupro paguem por estupro. Em outras palavras, clama-se para que a proporcionalidade da pena seja defenestrada.

            Ademais, com se pretender denunciar pela internet – ao tempo que se vilipendia qualquer hesitação e se reivindica crença automática –, não é de admirar linchamentos e represálias se sigam.

            Temos nada menos que violações aos direitos humanos sendo estimuladas aqui: a pena proporcional e o devido processo legal.

  1. O real problema

No caso do molestador de passageiras, alguém poderia argumentar que os registros foram feitos e, apenas após inúmeros atos, o agressor foi levado à justiça. A esse respeito é importante lembrar que delitos de natureza sexual que não são cometidos contra menores de idade ou pessoas vulneráveis (aquelas que possuam alguma enfermidade ou deficiência mental) são de ação penal pública condicionada à representação da vítima. Isso significa que o Ministério Público não pode mover a ação penal levando o caso ao Judiciário sem que a vítima requeira a persecução penal, no prazo de seis meses após a identificação do autor do crime. Não sabemos se as outras vítimas tomaram essa iniciativa ou se houve negligência das autoridades responsáveis. A notificação do crime sem a devida persecução penal no judiciária acaba por inflar as estatísticas de crimes não resolvidos resultando na sensação de impunidade por descaso das autoridades quando, na verdade, há outros fatores que contribuem para essa impunidade.

Ademais, em virtude da distorção de termos, as pessoas ficaram indignadas, acusando o juiz de machismo e descaso quando, na realidade, ele aplicou a lei exatamente correspondente ao ato praticado, como manda o direito. Aos juízes não compete aplicar a punição que melhor lhes pareça; compete-lhes somente aplicar a punição prevista na lei. Indignar-se contra o judiciário nesse caso é ilógico: trata-se de questão legislativa de competência de nossos deputados e senadores, não dos juízes.

Igualmente, o tempo de prisão nos casos de estupro e a possível progressão de regime em tempo irrisório possui raízes não no descaso do poder judiciário, mas na lei, que determina prazos máximos de cumprimento de pena aparentemente pequenos para uma reparação justa, e na falência do Estado com relação a execução da pena. A superlotação de presídios leva a condenações cada vez menores, de forma a desafogar o sistema prisional. A falta de estabelecimentos específicos faz com que a pena seja cumprida em locais não previstos expressamente em lei. Estas situações ocorrem não somente nos crimes de natureza sexual, ocorrem com todos os crimes e, portanto, cria-se uma sensação de impunidade em geral. Atribuir a uma estrutura incorpórea – o patriarcado – ou ao sexismo as situações de punição ínfima em casos de crime de natureza sexual desconsidera esse fato e não acrescenta uma solução real para os problemas.

            Qual seria, então, a solução real? Reivindicar mudanças nas penas (sem perder de vista a proporcionalidade), uma melhoria no sistema prisional (que não deixe à solta por causa da superlotação) e prestar um atendimento decente nas delegacias, equilibrando na balança tanto a fragilidade psicológica das vítimas quanto as necessidades específicas para a investigação desses crimes, evitando afugentá-las e inflar as estatísticas de crimes sem solução.

            O comum da sociedade está de acordo que não é correto estupradores como os da banda New Hit poderem ficar à solta por cinco anos, aguardar o Supremo julgar o seu caso, e poder passar apenas quatro anos na cadeia. Pior, só se eles não fossem denunciados formalmente e tivessem contra si mero desabafo online. Que bom que a sociedade brasileira, diferente de tantas orientais, é contrária ao estupro, e simpática à ideia de aprisionar estupradores e molestadores. Aproveitemos isto, mobilizando-a numa direção saudável, e não cometamos o erro grave de insensibilizá-la com falsas denúncias de estupro.

[1]      Detalhes aqui: http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1890293-exintegrantes-da-banda-new-hit-sao-condenados-a-10-anos-de-prisao

[2]      http://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf

[3]      http://www.forumseguranca.org.br/storage/9_anuario_2015.retificado_.pdf

[4]      http://revistadonna.clicrbs.com.br/coluna/clara-averbuck-sobre-acusacoes-mentiras-punitivismos-e-boletins-de-ocorrencia/