O Antropomorfismo é a concepção de que as coisas obedecem, necessariamente, o ponto de referência humano para existirem e se manifestarem. Não é somente, como comumente pensam atribuir “forma humana” às coisas. É também extrapolar a forma física e estabelecer um modo de ser humano. Quando se atribui sentimentos, humores e concepções que são iminentemente humanas aos animais e objetos há o que chamamos de antropomorfismo. Nesse caso, sem a aparência humana, chamamos também de “animismo”.
O Antropismo, por sua vez, embora possa conter o antropomorfismo como variante, em geral se refere à concepção de que tudo no mundo (inclusive o próprio universo) existe para chegar ao homem. O homem é o ponto máximo e causa final de todo processo evolutivo, não só como objetivo, mas também holograficamente tradução fiel, como microcosmo, do Universo e de seus desígnios como um todo.
Ambas as concepções estão no bojo da perspectiva criacionista e de sua vertente pseudo-científica Design Inteligente, além, é claro, de toda tradição religiosa do planeta.
Quando o pensamento ocidental se pautou por eliminar a metáfora antropomórfica pela formulação de conceitos, acabou caindo nas garras do antropismo. Até mesmo grande parte da própria ciência biológica antes de Darwin, embora já considerasse uma tipologia móvel, imaginava os animais como pedaços mal acabados e incompletos que mais tarde desembocariam no ser humano como objetivo máximo da natureza.
Pior do que isso, foi continuar atribuindo certo design e propósito na natureza que cumprisse algum objetivo ulterior ou finalístico fora de seu próprio processo complexo e integrado contingencial.
O Mito
O mito da razão parece-me nos remeter a uma noção histórica, e não só escolástica, de uma centelha divina em nós nos dando a luz da racionalidade no desvendar das coisas que foram feitas para nosso desfrute e sentido. O mito de Prometeu explica a racionalidade humana pelo roubo do fogo dos deuses promovido pelo titã à revelia de Zeus. O sopro bíblico que torna o homem vivente traz a mesma conotação. A palavra “espírito” vem de sopro, correlacionado à “pneuma”, “psique”.
Portanto, essa noção de que nossa racionalidade é capaz de desvendar, captar, entender, controlar uma suposta Razão do Mundo e que possamos agir por essa Razão teleologicamente, é, ao meu ver, um mito. Esse mito traz o antropomorfismo e o antropismo como concepções cosmovisionárias arraigadas que se tornaram quase irresistíveis em nosso modo de pensar e contamina também até concepções laicas e ateístas, por incrível que pareça.
Não penso ser lícito dizer que se um cientista é ateu, necessariamente ele fará ciência a partir do pressuposto ateísta. A prática científica é laica e é por isso que ela tende a atrair mais ateus que teístas, ao que me parece.
É preciso que, metodologicamente, um neurologista postule a mente como origem física, mesmo que ele não saiba explicar ainda a questão dos QUALE (ou seja, como se dá a experiência dita consciente qualitativa a partir das sinapses neuronais). Sendo ele ateu ou teísta, metodologicamente, ele não poderá partir de outra hipótese. O teísta tentará, por sua vez, refutá-la. O ateísta tentará, por sua vez, confirmá-la e oferecer meios pelos quais falseá-la. Mas nenhum poderá afirmar uma coisa ou outra, embora não haja razão alguma (que não seja um salto de fé anticientífico), para afirmar categoricamente algo sem que o método científico seja cumprido.
A idéia de Chalmers de considerar a mente humana como uma característica fundamental do mundo, como massa, carga eletromagnética ou o binômio espaço-tempo apenas desvia o problema. Embora não seja uma má idéia em si e possamos com ela descobrir muitas coisas, ainda o necessário e derradeiro enfrentamento sobre a origem da mente ficará escamoteada, dando chance a todo tipo de especulação. Portanto o posicionamento de Dennet, parece-me, é muito mais virtuoso epistemicamente.
Há muito resquício ideológico de uma ciência totalizante que se valia da descoberta de leis fixas e imutáveis que regeriam o Universo observável em seus mais recônditos segredos. É esse resquício que faz com que os criacionistas lancem dúvidas sobre as questões teóricas científicas alegando que não seriam “Leis” e sim “meras” teorias. Leis são enunciados de uma determinada classe de fatos observáveis, ao passo que uma Teoria estrutura e relaciona Leis fornecendo um sistema de descrição ou mecanismo que explica a ocorrência de um fato. Confundir esses conceitos com intuito obscurantista é expediente recorrente dos criacionistas.
A ciência começa e sempre começará a partir do reconhecimento da ignorância. É isso o que difere, substancialmente, a postura criacionista da científica. O religioso sempre começará com uma certeza a ser confirmada, ao passo que o cientista sempre começará com uma dúvida a ser refutada. Sobretudo os que assumem o pensamento evolucionário legítimo, simplesmente suspendem o juízo quanto ao “por que” ou quanto ao “de onde” teriam surgido as coisas; assumindo uma ignorância intimamente ligada a atual impossibilidade de dizer algo sem oferecer testes refutativos ao que for dito.
É possível concordar, porém, que muitos pensadores (não os cientistas em geral), partem de uma petição de princípio ateísta. E, particularmente, posso até concordar com alguns protestos religiosos que alegam que o mesmo direito que os ateístas teriam de partir de uma petição de princípio para postular algo, os teístas também têm. Só que isso é um erro básico, meio como algum assassino reivindicando o direito de matar porque outro também mata. Se a ciência busca a virtude epistêmica de uma heurística de suspensão de juízo a partir do que não sabe e quer descobrir (e com isso pretende para chegar às causas, se elas existirem) dentro dos processos a que tem acesso, verificar um grupo de pensadores que se recusa a fazer isso não nos autoriza a fazer o mesmo.
A confusão pode estar no ponto em que aqueles que fazem petição de princípio ao ateísmo se valerem do conhecimento científico como argumento de suas posições anti-religiosas. É preciso que fiquemos alertas a isso, pois vendo isso os criacionistas generalizam e tacham a ciência como ateísta. O caminho a meu ver seria outro. O caminho epistemicamente virtuoso, e que precisamos fornecer e orientar a turba crente, seria que eles demonstrassem cientificamente que suas idéias são válidas. Ao contrário, eles partem para uma cruzada patética, misturando os que usam a ciência para o ateísmo com a própria ciência, achando que têm direito de cometer o mesmo equívoco já que não conseguem (ou não querem?) usar o método científico para valer suas opiniões.
Cientista sério (crente ou ateu) não especula sobre Deus no exercício de sua atividade. Se ele o fizer, seja para negar ou afirmar, estará exprimindo sua opinião, sabendo que não está falando cientificamente, mas especulativamente, por mais motivos que ele tenha para afirmar o que diz. Não existe nenhum paper científico publicado em veículo indexado que postule a inexistência de Deus. O máximo que encontramos são postulações plausíveis de que, até então, não foi possível buscar medidas refutativas que nos dessem respaldo para afirmarmos categoricamente a necessidade de uma intervenção sobrenatural nos processos naturais. Até porque, historicamente, muito do que foi tomado como sobrenatural se revelou natural quando se pesquisou mais a fundo. É, portanto, uma extrapolação lógica.
O que os crentes em geral precisam entender e, a meu ver, nós secularistas também, é:
1 – A Ciência não é ateísmo;
2 – A Ciência nunca comprovou ou ofereceu falseabilidade para corroborar o ateísmo;
3 – A Ciência não postula existência ou inexistência de coisas que ela não pode corroborar com fenômenos observáveis;
4 – Por fim, a Ciência é laica.
Enquanto os crentes não entenderem isso (e nós não deixarmos bem claro para eles) continuará havendo uma cruzada contra a Ciência, deturpação do método e reivindicações de direitos na ridícula idéia “se tem alguém que erra também podemos errar, logo, o criacionismo também é ciência”. Isso é patético. Mas assistimos impassíveis essas sandices vendo cada vez mais o criacionismo se infiltrando apesar de Dover.
Por que não definem contra o que querem lutar? Contra a ciência ou contra o ateísmo? E, na verdade, como esperar alguma definição se, fenomenologicamente, religiosos adoram o obscurantismo para se expressar para passarem de certos? Se a guerra for contra o ateísmo, podem continuar ignorantes como são, deturpando, enganando, dissimulando e inventando as mais toscas analogias e histórias fantasiosas, pois no frigir dos ovos ateu nenhum no mundo conseguirá comprovar ou corroborar uma negação de existência. E sabemos que é impossível. São posições cosmovisionárias, ideológicas e pessoais. Que fiquem no terreno em que são legítimas.
Ciência é um estatuto social, coletivo. Ela só pode postular algo que todos, dentro de uma simbólica vigente, possam chegar se cumprirem um determinado método. Fé, sentimentos, sensações, percepções subjetivas, esperanças e conforto emocional jamais farão parte do escopo da ciência natural (que estuda regularidades observáveis).
Esses elementos sempre farão parte do que já foi chamado de Ciências do Espírito, pelo seu conteúdo histórico, contextual e contingente, cujo desenvolvimento conta com o entrelaçamento íntimo do próprio pesquisador. E mesmo assim, a crença ou não crença serão tratados como fenômenos históricos e/ou antropológicos, jamais como fenômenos causais necessários ou suficientes para explicar uma realidade fora da história.
Bem, achei que poderia ser interessante compartilhar com vocês essas reflexões… Por favor, comentem…
“A vida contrai-se e expande-se proporcionalmente à coragem do indivíduo.” – Anais Nin
À coragem, sobretudo, do indivíduo conspurcar-se. Uso essa palavra no sentido de eliminar o pudor que temos quando pousamos o olhar sobre nós mesmos. Ou seja; ter a capacidade de nos macular, de ver defeitos em nós. Não limpar nem fingir que não vemos nossas pestilências, pus, máculas e desordens… Eis que assumindo o de mais cru, animalesco e vil que nos constitui é que encaramos a medusa sem nos petrificar. É no encontro do outro que nos defrontamos com o que há de mais hipócrita em nós e revelamos a nós mesmo nossos autoenganos.
Fazendo parte de nossa constituição como indivíduos nossa relação com o outro, por mais boa vontade que tenhamos de nos conspurcar, sempre haverá uma camada intransponível circunstancialmente. Ela poderá ser ultrapassada em algum momento futuro através de um exercício de honestidade altamente agressivo, porém sempre nos delimitará no agora. A nossa própria noção de identidade e de EU é algo que nos preserva e dificilmente nos destituiremos dela. Embora eu postule, como Lacan e Sartre, a ficção do EU, postulo a partir do que entendo como Mim. Não é um paradoxo?
Talvez o que nos resta é termos consciência de que algumas máculas jamais serão limpas, pois são necessárias para nossa relação com o mundo. O problema, e é isso que busco para mim, é diminuir cada vez mais as máculas que eu não sei sequer que existem, que estão fora de minha consciência e que constituem o “piloto automático” que me guia sem que eu saiba. Ao menos tendo consciência delas eu possa ter a opção de escolher me enganar dizendo que as escolhi para me guiar. Ao menos quero aceitá-las a partir da consciência de sua necessidade, assumindo meu próprio non sense.
Portanto é preciso ter coragem para agüentar essa expansão e contração constante da dialética sobre si mesmo que chamamos de vida…
Pensar que podemos conhecer o mundo além do que esteja limitado pelos nossos sentidos, ou mesmo acreditar que exista algo a ser percebido e conhecido além desses limites se constitui em um dos mais belos e criativos exercícios da intuição humana. Por mais evidências que uma realidade fora de nós possa existir, sempre a conheceremos a partir do que nós somos e do que temos como aparato para sua percepção. Isso inclui não só aparelhos e equipamentos que servem como extensão de nossos sentidos físicos, como também ideologias, cosmovisões e, principalmente, a intencionalidade humana (no sentido fenomenológico do termo). Ou seja, não conhecemos o mundo apenas a partir de nossos sentidos físicos, mas do valor do sentido e do significado que um fato obtém quando se configura inserido em nossa idiossincrasia.
Imagine você, cientista e cego, saber tudo sobre o que é a cor vermelha, mas jamais ter tido a oportunidade de vê-la como as outras pessoas a vêem? Por mais que você conheça com propriedade tudo o que diz respeito à cor (suas propriedades, freqüências de ondas, prisma e etc) jamais terá a chance de experienciá-la. A falta de explicação qualitativa sobre a experiência mental humana é uma lacuna que se configura numa revitalização das justificativas de crendices das mais diversas.
Por esse motivo, a pergunta lógica se impõe: existe uma realidade além do que podemos perceber e abarcar? No caso específico do cientista, mesmo não conseguindo experienciar o que seja a cor vermelha, ela existe extra-mentis e é e pode ser experienciada pelas outras pessoas, menos por ele. Quantas coisas das quais a realidade é composta poderiam estar na classe de coisas que existem de fato, mas estão fora de nosso âmbito de percepção e da medição científica? Podemos argumentar que seja apenas uma questão de tempo trazê-las à luz da ciência, mas falando no “agora” isso é um fato incontestável.
O que precisa ficar absolutamente claro é que a constatação da possibilidade da existência de coisas além daquilo que podemos experienciar, medir, controlar, não significa que podemos inferir existências baseadas simplesmente em tradições, confortos psicológicos ou mesmo necessidades lógicas. Porém, enquanto essa constatação existir haverá uma brecha insofismável para qual crendices das mais diversas irão se imiscuir sem qualquer pudor ou qualquer rigor metodológico plausível.
Distingamos. Uma coisa é a existência de um fato que pode ser observado a partir da experiência comum entre as pessoas (ou dessa possibilidade). Outra coisa é a explicação ou descrição do mecanismo que faz com que esse fato seja apreensível em termos de conhecimento. Mesmo que essa descrição ou explicação recorra a coisas que não podem ser experienciadas, há nelas evidências suficientes e corroboráveis para estabelecer uma relação causal entre um e outro.
Uma terceira coisa é sabermos que há possibilidade da existência de muitos fatos que não conseguimos observar ou experienciar. Tanto as coisas que podem ser experimentadas objetivamente como essa terceira coisa (cuja existência podemos inferir sem uma experiência direta) não nos autorizam a explicá-las a partir de necessidades lógicas ou pressupostos ideológicos para dar status existencial a ela. Não significa que o fato não exista. Significa que sua explicação não pode ter pressupostos indemonstráveis nem petições de princípio. Enquanto não tivermos como descrevê-la criando nexos para sua fenomenologia, parece-me mais plausível exercitarmos a epokhé. É isso que o pensamento crédulo não aceita ou não consegue distinguir. E digo mais: muitos pensadores céticos também não conseguem. Isso talvez aconteça porque todo fato para ter o status de conhecimento precisa estar inserido em uma categoria que ajude a organizar uma cosmovisão pressuposta.
A ciência ocupa-se das coisas a partir da explicação que constrói inferindo mecanismos que possam nos oferecer controle de sua aferição. Chamamos isso de método. A ciência não se importa como as coisas parecem ser ou como seria bom e salutar se a explicação fosse A ou B (embora possa até passar por isso). Isso em tese. No entanto, parecem-me que as coisas são, enquanto relação conosco, somente da forma como elas parecem ser para cumprir algum desígnio que nos seja útil. A ciência, mesmo sendo uma instituição que se auto-regula a partir da revisão por pares, não foge dessa fenomenologia iminentemente humana: ela enxerga as coisas também a partir do que seja possível ser revisado pelos pares, ou seja, visando uma utilidade para aquilo que ela explica.
A diferença é que, para a ciência, a explicação do que não pode desdobrar-se ao que lhe é útil, continua existindo (mesmo classificado como não-científico). Ao passo que para o Senso Comum o que não pode desdobrar-se ao que lhe é útil, simplesmente impõe-se um “dever-ser” de inexistência, ganhando o epíteto de “o mal”, “o torto”, “o errado”. A diferença, portanto, é de moralização. Precisamos, portanto, enquanto céticos, tomarmos cuidado com a “moralização” daquilo que não é científico, mesmo que continuemos não dando voz para qualquer crendice estapafúrdia.
A mensagem é: deixemos o maniqueísmo para os crédulos que precisam moralizar aquilo que não é útil para si e suas crenças.
Como o Senso Comum enxerga a Ciência?
A realidade que experimentamos parece configurar-se como um consenso coletivo do espectro de percepção que a coletividade é capaz de ter. Além disso, poderíamos falar, sem medo de sermos tachados de metafísicos (no mal sentido), de uma realidade possível fora desse espectro. Se não é útil à ciência investigar esse espectro, isso não significa que seja magistério de outro tipo de conhecimento qualquer. No meu modo de ver é das Ciências Humanas e Históricas essa prerrogativa, até porque elas passam pelo escrutínio de validade por parte de outras ciências e/ou do próprio Senso Comum. Ou seja, ao menos elas podem ser submetidas ao falseamento, coisa que a religião tomada epistemologicamente não oferece nada além de pressupostos que devam ser assumidos antes de qualquer tipo de consideração sobre o mundo.
Para o senso comum quando um cientista de dentro de seu laboratório e com acesso exclusivo aos seus instrumentos de alta precisão desvenda as propriedades de um fenômeno e faz uma descoberta teórica explicativa sobre esse fato, resta-nos a darmos uma fiança de credibilidade a ele e acatar, via desdobramento tecnológico que a descoberta proporciona, que aquilo que ele demonstra ser verdade, realmente o é. Isto é, confiamos, ou aprendemos a confiar que o cientista não mente, embora possa errar, e que ele e seus instrumentos prescrevem realmente o que ele diz prescrever, dando como resultado prático a tecnologia que se depreende daqueles conceitos que foram desvendados por ele.
Poderíamos dizer então que a tecnologia é o resultado de uma ciência bem elaborada? Para o senso comum é. É ela que chancela os conceitos por trás de uma explicação teórica. Sem ela, as teorias são apenas explicações em que tenhamos que acreditar para que a ciência prossiga em sua perscrutação do mundo. Claro que antes de fazermos qualquer digressão comparativa com outros ramos do conhecimento, vale lembrar que em ciências, qualquer um, tendo a formação específica, pode seguir os mesmos passos que o cientista e saber exatamente o que ele sabe utilizando os mesmos instrumentos que ele; sem o que a teoria é posta em dúvida e rejeitada. Mas o ser humano em geral, e é óbvio que seja assim, prefere apenas chancelar, via crédito, as coisas que a ciência nos fala.
Ou seja, para o senso comum, acreditar no cientista se configura no mesmo fenômeno que acreditar no pastor, no padre ou qualquer xamã prestidigitador. Uma suposta verdade revelada por algum guru, xamã ou pastor da vida, só pode ser chancelada como verdade pelo compartilhamento de sensações internas que jamais poderão ser submetidas a testes tecnológicos e dizem respeito tão somente a quem se dedica e entrega-se de corpo e alma às práticas recomendadas pelo sistema que as engloba. Qual seria então a diferença entre o conhecimento objetivo que a ciência nos proporciona e o suposto conhecimento religioso que nos promete toda a sorte de pessoas que se auto-intitulam capazes de nos fornecer esse conhecimento? Para o senso comum, nenhuma.
Um trata da realidade extra-mentis, onde uma coletividade via tecnologia pode compartilhar desse conhecimento chancelando-o como legítimo: a ciência… Outro, trata de uma realidade intra-mentis, onde a chancela é interna, subjetiva, pessoal e intransferível, sujeita a toda uma sorte de ilusões e enganações (da própria mente inclusive), cuja chancela é pura e simplesmente a entrega passional a uma realidade que pode existir somente dentro de nós ou ser fruto meramente de sintomas esquizofrênicos… Uma cumpre uma utilidade que valida a si própria, mas não se arrisca fora dela. Outra cumpre uma utilidade que para certas pessoas trazem conforto em suas vidas sem sentido, mas também reforça e aguça toda sorte de malefícios sociais, como no episódio da tragédia na escola de Realengo.
Em ambas, parece-me, a realidade é o que parece ser (a que lhe é útil e a confirma), e indica (mais claramente na segunda que na primeira) que existe outra realidade fora do âmbito das possibilidades de apreensão, tanto na objetividade da ciência, quanto na subjetividade religiosa e mística.
Conclusão
Em meu modo de ver qualquer humanismo que preconize a emancipação humana precisa quebrar de vez toda e qualquer tutela de autoridade envolta na construção das crenças pelas quais o ser humano se pauta, e que ele possa decidir de forma autônoma a guiar-se em sua relação com o mundo considerando a diversidade de opiniões de seus semelhantes. Para mim a inconsciência que leva alguém a abraçar uma religião não é pior que a que leva a alguém a aceitar tudo o que a ciência diz de forma acrítica. Se o que difere a ciência de outros ramos do conhecimento é a possibilidade de se chegar aos mesmos resultados (sem caminhos iniciáticos ou místicos, mas com estudo e dedicação) é isso que devemos exigir de nossa sociedade e do Estado: formação teórica e criticidade. E para isso é preciso que o estudo da Filosofia esteja inserido em todo conteúdo programático na formação de nossos jovens.
Nossa luta, enquanto humanistas laicos (embora questione o humanismo como conceito), passa necessariamente pela sistemática eliminação da moral de rebanho pela qual o senso comum está imerso. E isso independe de uma erradicação das crenças ou das experiências ditas místicas, mas insere-se sobre a construção de um mundo melhor onde todos tenham voz no direito inalienável de ser e viver sua própria vocação como pessoa.