Contra as reformas “quirais” das tribos políticas

Seja considerando em escala global ou nacional, a verdade é que a tal “direita” costuma ser desajeitada e ignorante e a tal “esquerda” está genericamente tendendo ao fanatismo e à auto-ilusão. Enquanto isso, há muita gente que se diz de “centro” buscando meio-termos entre os dois tipos de idiotice. 


Não vivemos em um mundo onde o mainstream dos conservadores é composto por burkeanos ou onde a maioria dos autoproclamados progressistas é composta por pinkerianos. Vivemos em um mundo onde “conservador” dominionista quer prender mulher que levou tiro na barriga alegando que ela cometeu homicídio culposo via aborto e no qual os alegados “anti-fa”, que bem poderiam ser chamados de “proto-fa”, atacam jornalista homossexual de origem asiática que estava cobrindo a “manifestação”. 


Ou seja, vivemos em um mundo onde há intensas disputas entre as tribos políticas e cujas propostas e visão de mundo são ignorantes, abjetas, grotescas: e, numa só palavra, iliberais. Como expressa Pinker, o Humanismo é sinônimo de Liberalismo Clássico e a ele devemos os valores fundamentais que distinguem as sociedades atuais das primitivas: Liberdade de Expressão, isonomia legal, isonomia entre os sexos, defesa dos direitos reprodutivos, liberdades individuais (que incluem liberdades econômicas e tolerância às sexualidades minoritárias), democracia participativa, o Estado de Direito, o Laicismo, etc. 


Obviamente há exceções, algumas até notáveis, de pessoas no cenário político global e nacional, seja qual afiliação possuírem, que não defendem majoritariamente propostas e visões de mundo abjetas. Ainda que haja tais exceções — e talvez até possa haver uma “maioria silenciosa” de agentes políticos pouco relevantes que não seja composta por ignorantes e grotescos — as políticas públicas são pesadamente influenciadas por agentes, noções, ideias e visões de mundo irracionais, falsas e/ou iliberais. 


Neste cenário é relativamente frequente que pessoas muito mais moderadas, mais racionais, dispostas ao diálogo — mas ainda fortemente influenciadas pela febre tribalista — proponham reformas moderadoras à sua facção política preferida. Genericamente é possível parafrasear tais clamores aproximadamente como o que se segue: “é necessário promover uma esquerda/direita mais tolerante, aberta ao diálogo e compromissada com resultados, capaz de incluir e atender os interesses de amplas parcelas da população”. 


Claro que o desejável é que todos os grupos, movimentos, partidos e indivíduos interessados e/ou atuantes em política fossem tolerantes, dialogáveis, compromissados com resultados e pretendessem promover paz e prosperidade à maioria (quiçá toda) da população. E é exatamente este o cerne do presente texto: há elementos desejáveis por si só, independente de sua filiação tribal; e propostas de políticas públicas devem ser avaliadas por seu próprio mérito, notadamente incluindo muitas destes elementos supramencionados, independentemente de sua origem tribal. 


Para haver uma melhora significativa do cenário político global e nacional é preciso superar o tribalismo reinante e seu infinito ciclo de reides e vendettas de cada grupelho contra seus rivais e adversários. E isso se consegue justamente ao abandonar alianças pétreas com grupos, partidos e indivíduos e rejeitar fidelidade tribal, mantendo ao invés disso uma abordagem crítica e analítica a respeito das propostas e suas consequências em potencial, independentemente da procedência das propostas e de quais grupos as apoiam. 


Ou a tolerância deixa de ser interessante se provier de um partido de direita/esquerda? Por acaso a disponibilidade ao diálogo deixa de ser desejável para a esquerda/direita? A tão atacada Liberdade de Expressão tem mesmo de ser negada a grupos de esquerda/direita? Compromisso com empiria e objetividade, foco nos resultados e em sua eficiência são fundamentalmente desinteressantes à esquerda/direita? Resumindo: importam mais as tribos ou as características das propostas e seus resultados? 


Então a forma de promover e fortalecer racionalidade, eficiência, moderação e diálogo no cenário político não é propondo “reformar” grupos tribais já muito agressivos e aguerridos, mas rejeitar toda e qualquer proposta ou visão de mundo que for irracional, obscurantista, iliberal, sectária e apoiar toda e qualquer proposta que seja racional, compromissada com objetividade e empiria, Humanista e que promova direitos individuais — independentemente de qual for a origem das propostas e de quais grupos ou indivíduos as apoiarem. E, sobretudo, analisar e criticar propostas práticas e ações, não meros discursos: em especial os discursos focados em inflamar uma tribo contra a outra, mas que não se traduzem em uma proposta clara e aplicável. 


Também é importante insistir na objetividade das análises e que elas incidam sobre os elementos das propostas e projetos, não sobre alegadas intenções. É muito frequente que pessoas tolas, ignorantes ou auto-iludidas causem males não por perfídia, mas justamente por não saberem, saberem errado ou acreditarem em bobeiras: mas justamente por causa de suas boas intenções militam fervorosamente em favor do que é, no mínimo, idiota e chega a ser até mesmo revoltante ou atroz. 


Um exemplo fácil: há muitos proponentes da besteria anti-vacinação. A enorme maioria dos militantes desta estupidez não é de gente pérfida que voluntariamente e conscientemente quer promover doenças, sofrimento e morte, mas de gente ignorante ou crente em falsidades: no entanto, a maioria é de gente bem intencionada e que nutre desejo sincero de proteger as pessoas e a comunidade do que erroneamente identifica como uma séria e urgente ameaça. 


Análogos aos anti-vaxxers são os bocós de direita/esquerda “anti-globalismo” (ou anti-globalização), os desenvolvimentistas, os defensores de ideologias comprometidas com o Totalitarismo e frequentemente genocida, os anti-GMOs, o ativismo anti-nuclear, os “tábua-rasistas”, os proponentes da supressão da Liberdade de Expressão, os teocratas ou dominionistas, entre muitos outros. Todas estas propostas/grupos/movimentos são danosos aos indivíduos, às comunidades ou até ao meio-ambiente, se contrapõem à promoção de paz e prosperidade ao maior número de pessoas (e em especial às que já tem menos destas coisas), mas geralmente seus defensores são pessoas com boas intenções. 


O que se faz necessário para superar o tribalismo no cenário político, que promove o populismo e o autoritarismo, o sectarismo e erode as Instituições, é a promoção de uma abordagem racional e analítica, comprometida com objetividade, empiria e eficiência de resultados, para a avaliação de propostas de políticas públicas. Em um ambiente no qual prepondere agentes com tal abordagem e eleitores que tendem a esta abordagem, os extremistas e sectários são eliminados por “seleção natural”, já que suas propostas divisivas, populistas, autoritárias ou danosas são identificadas e rejeitadas. 


A maioria dos elementos que permitem às sociedades atuais superar a mortalidade infantil, a violência endêmica, as epidemias evitáveis, a fome e a miséria é bem conhecida. É por isso que, hoje, mesmo as nações mais pobres e violentas do planeta se assemelham cada vez mais à rica Europa do início do século XX, com a prosperidade e a paz sendo promovidas a passos largos nos locais anteriormente mais miseráveis da Terra. Entretanto este estado de coisas não é, necessariamente, permanente, e depende da promoção e manutenção de valores Humanistas, de Instituições saudáveis, de diálogo e liberdade entre as pessoas e nações.


Quando visões de mundo equivocadas promovem propostas sectárias, excludentes, obscurantistas, iliberais, os elementos promotores de paz e prosperidade são ameaçados e, por vezes, erodidos. É desta forma que se chega a Maduros, Trumps, Bolsonaros, Kim Jong-Uns, Putins, etc e às medidas idiotas ou até mesmo obviamente danosas promovidas por eles e por seus partidários e também por seus adversários inconsequentes. O tribalismo só pode ser superado por um esforço consciente, metódico e racional para pensar “além da tribo”, não em seu benefício. E não são tribos que promovem prosperidade e paz, mas o reconhecimento das características universais humanas e o uso sistemático e voluntário da razão, mediante objetividade e empiria, em um esforço contínuo de cooperação para a consecução do maior bem-estar à maioria das pessoas do mundo. 

Ciência na era da pós-verdade: disputa entre esquerda e direita

De acordo com o Dicionário Oxford Online, pós-verdade refere-se às circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal.

As circunstâncias nas quais isso ocorre são rotineiras, tão rotineiras que já passam desapercebidas. Para o grande público, a prática não é novidade, é recorrente.
Quem nunca se deparou com a a afirmação “…é a minha opinião, respeite-a…’?

Interlocutores frequentemente confundem o direito de livre manifestação com o valor de uma opinião substanciosa, gerando debates ruins e longe de qualquer consenso.

Mas nosso zeitgeist atual não se refere a debates ruins e acalorados em ambientes informais. De uma maneira curiosa e assustadora, as instituições, governos, universidades e empresas passaram a tomar a linha de frente do exercício do irracionalismo.

No livro “Enlightment 2.0: Restoring sanity to our politics, our economy, and our lives“, Joseph Heath narra as características do que ele chama de “conservadorismo de senso comum”. Um conservadorismo sem bases teóricas, apoiado em experiências pessoais e muito difundido entre pessoas de baixa escolaridade. Dentre alguns pontos desse tipo de conservadorismo, está o desprezo pela erudição, como se o exercício da intelectualidade fosse a causa de todos os males modernos.

O que podemos observar na era da pós-verdade é o modus operandi deste conservadorismo, só que disseminado entre diferentes grupos políticos. Embora os objetivos sejam distintos, muitos conceitos comumente encontrados entre grupos de estudantes universitários funcionam de maneira muito semelhante ao conservadorismo de senso comum.

Conceitos como “lugar de fala” e “vivência” tomam o centro de debates e tomadas de decisões em detrimento aos dados acumulados e obtidos de maneira impessoal. É neste ponto que tudo se torna obscuro, já que além do desprezo pela informação formal surgem interpretações equivocadas da realidade. Surge a divisão artificial dos grupos sociais entre opressores e oprimidos, onde não importam os argumentos, apenas as características do emissor.

Aliado a isso há ainda a adoção do relativismo epistêmico, colocando ciência e esoterismo no mesmo patamar. O resultado não pode ser vantajoso. Mas, além dos efeitos negativos, podemos observar alguns padrões de comportamento que caracterizam diferentes grupos políticos. É como se, ao fazer parte de um grupo, o indivíduo assumisse uma cartilha. E, junto da cartilha, surgem as defesas dos conteúdos que contrariam as análises mais refinada de dados.

É neste universo que, enquanto a direita conservadora defende o criacionismo, a esquerda ataca os transgênicos.

Enquanto a direita ataca a origem antropogênica das mudanças climáticas, a esquerda prega o reducionismo sociológico.

Vemos a esquerda celebrando a astrologia e segmentos malucos da direita a ideia de Terra plana.

Programação do evento Pint of Science 2018 divulgada pelo Instagram da TV USP. Segundo a organização, as palestras em destaque já foram canceladas.

Enquanto um lado acusa o conhecimento e a ciência de serem “brancos/machistas/opressores”, outro lado vê na universidade um ninho de “esquerdistas” querendo controlar e expurgar as liberdades individuais.

Exemplos temos muitos, poderia continuar com diversas citações em campos variados das ciências naturais, mas também da economia, da sociologia, etc. O assustador de tudo isso é que ninguém está aberto ao debate. Há uma cartilha política maior associada a cada uma dessas ideias, que se comportam como uma composição de trens. Para os seguidores de tais maluquices, se um vagão sair dos trilhos, todo resto da composição está perdida.

 

Programação de Encontro de graduandos em Biologia. Sobra espaço pra Biologia?

Ou seja, não será fácil nos livrarmos de ideias que se comportam desta maneira.

Esses memes agem como religiões fundamentalistas, as disputas se articulam como pequenas jihads. É nesse cenário que surgem debates vazios. Afinal, o Nazismo é de direita ou de esquerda? Importa? Qual o objetivo de imputar a culpa pelos crimes nazistas em um ou outro grupo se não tirar proveito da situação?

E pelo caráter político, reduzimos tudo a questões políticas. Perdemos em qualidade e na oportunidade de consensos fundamentados, assim como em resultados palpáveis. Recheamos nossas universidades de ideias sem base, de criacionistas, pós-modernistas, terraplanistas, ativistas do Greenpeace, eleitores de Bolsonaros, Lulas, etc. Ao mesmo tempo esvaziamos qualquer possibilidade de debates.

A universidade e demais instituições viram “antros” de dualidades. Os espectros políticos disputam seus espaços, não pela razão, mas pela emoção. E, vagarosamente, todos eles viram pequenos enclaves, longe da realidade, mas excelentes ferramentas na mão de quem interessar.