O conto do Estado “laico” brasileiro

A sociedade brasileira herdou de sua origem ibérica um grande senso moral cristão e pietismo católico, com órgãos da ICAR participando ativamente do funcionamento do Estado até pelo menos 1889, quando a República foi instaurada já com flertes ao laicismo. Ao longo do século XX as instituições clericais paulatinamente perderam espaço na vida pública, ainda que tenham participado de movimentos sociais que contribuiriam para o nascimento de alguns partidos políticos importantes na era democrática. E a Constituição de 1988 declara a laicidade do Estado brasileiro.

E é mais ou menos esta a história. De forma grandiloquente a CF declara o princípio de laicidade, sobretudo de tolerância religiosa, mas também de separação entre Estado e entidades clericais. Mas a própria CF não se orienta tendo a laicidade como princípio fundamental, daí ela própria estabelece brechas largas para a infiltração de entidades clericais na vida pública, contrariando o conceito de laicidade que ela própria havia abraçado.

O artigo 5º da CF diz:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 

E seguem-se diversas garantias, dentre as quais eu destaco as seguintes:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

No próprio cerne da laicidade do Estado, segundo a CF, já há uma brecha para a atividade clerical em “entidades civis e militares de internação coletiva“.

Outro princípio secular, a separação entre Estado e entidades clericais, se apresenta no artigo 19º:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

É frequente vermos desrespeitados estes artigos constitucionais, em especial o 19º. E está claro que a CF não foi projetada tendo em vista os valores típicos do secularismo, senão uma salvaguarda canhestra de liberdade religiosa e uma desesperada tentativa de inibir a promiscuidade entre Estado e entidades clericais.

É importante notar que estas foram “imposições” constitucionais alheias às preferências populares. A maioria da população brasileira é religiosa e não se opõe radicalmente à intervenção clerical na vida pública. Dependesse de consulta popular e é provável que a laicidade Estatal sequer estivesse presente na CF.

Então muito da laicidade brasileira é mera questão formal, é texto da Carta Maior, não exatamente manifesta cotidianamente. E a falta de compromisso com os valores seculares levou a própria CF a permitir brechas à laicidade Estatal (e há muitas!). Então o país é formalmente laico, nem tanto na prática.

É o velho “para inglês ver“.

A aprovação de ensino religioso confessional no Sistema de Ensino Público, por exemplo, privilegia religiões com entidades clericais consolidadas e ricas, dificultando o acesso de religiões pobremente estruturadas no país ou cuja tradição não conta com a centralização institucional. Isso caso já não fosse um absurdo investir dinheiro público em educação confessional.

Não serão frequentes, se é que existirão, educação confessional budista, zurvanista, umbandista e de tantas outras religiões. Veremos a ICAR, as grandes entidades clericais neopentecostais e o protestantismo “clássico” em sala de aula (pública), talvez alguma entidade espírita também se consiga fazer ouvir nas escolas.

As pessoas já são livres para adotarem as religiões que preferirem, se preferirem alguma, e as entidades clericais já podem catequizar os interessados. Permitir que as instituições clericais mais poderosas catequizem nas escolas públicas, financiadas por verbas públicas, parece ser um claro ataque aos excertos constitucionais apresentados — mas não para o STF.

LiHS participou de audiência no STF contra o ensino religioso em escolas públicas

No dia 15 de junho, a LiHS participou audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF). O tema: ensino religioso em escolas públicas.

A LiHS é uma das poucas organizações da sociedade civil que esteve em Brasília, falando diante dos ministros, para defender uma educação laica. A audiência foi convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso para subsidiar as discussões sobre uma ação que a Procuradoria-Geral da República enviou ao tribunal. Nela, o futuro do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras será discutido.

Thiago Viana, advogado e diretor jurídico da LiHS, fala ao STF sobre o ensino religioso nas escolas públicas e critica a bancada teocrática

https://www.facebook.com/lihsbrasil/videos/1119311134752676/

 

Debora Diniz em audiência no Supremo Tribunal Federal – STF sobre o ensino religioso nas escolas públicas

“A confessionalidade é uma forma de expressar a crença de indivíduos e de comunidades. O Estado não deve regular os discursos religiosos quanto à validez científica e argumentativa: essa é uma das garantias da laicidade. É no marco da laicidade que o Estado brasileiro convive com crenças religiosas que rejeitam verdades científicas estabelecidas.”

Dra. Debora Diniz, da UnB, ao Supremo Tribunal Federal, em audiência sobre o ensino religioso na última segunda-feira.