15 anos depois: por que ainda acreditamos na Tábula Rasa?

por Malhar Mali, na Aero Magazine.

Uma vez vi no Twitter um antropólogo cultural se referir ao “embuste” de Steven Pinker ao abordar um psicólogo evolutivo que o irritara. Algum tempo depois, em outra visita à rede social, vi uma socióloga e teórica de estudos de gênero/masculinidade/pós-colonialismo dizer muito polidamente a outra professora: “oi Diana, lembro-me de apresentar minha visão de que psicologia evolutiva é mais uma seita do que um campo de estudos sérios. Fui muito generosa“.

Achando essas discussões muito engraçadas, comecei a ponderar por que tantas disciplinas têm esse desprezo e repugnância por novas ciências e seus praticantes. Seria preocupação acerca da inclusão das linhas condutoras do racismo e do machismo da academia em nossa cultura, preocupações certamente nobres, ou seria outra coisa? Aconteceu de eu estar em meio à leitura de Tábula Rasa, de Steven Pinker, quando encontrei essas batalhas no Twitter. Nem é preciso dizer que, para quem leu o livro, aquelas discussões apresentavam padrões familiares.

Sei que estou atrasado, o livro de Pinker foi lançado há 15 anos e provavelmente foi usurpado por muitos outros trabalhos que abordaram as mesmas áreas. Esta não é uma resenha comum, já que há muitas desde que o livro foi lançado. É apenas uma pequena recapitulação de algumas poucas ideias apresentadas por Pinker e como elas permanecem relevantes.

O livro é, depois de cerca de 60 tediosas páginas de teor mais biológico e neurológico explicando as razões de humanos terem características inatas — denotando-as como probabilísticas, o que é importante, e não como determinísticas — um ataque a muitas ideias que as pessoas ainda mantêm neste mundo: a tábula rasa (“a mente não tem características inatas”), o bom selvagem (“a sociedade corrompe as pessoas; nascemos puros, sem egoísmo”) e o fantasma na máquina (“uma alma que existe independentemente de nossa biologia”). Após mostrar que tais crenças não são verdadeiras, Pinker apresenta meticulosamente por que elas são promulgadas na academia e se infiltraram na mentalidade popular, e por que tantos aderem a elas, mesmo quando a maioria das evidências aponta para o contrário.

Sei da omissão das razões biológicas do comportamento humano em algumas partes das humanidades e ciências sociais, mas muito da minha surpresa com esse livro está na descoberta de como cientistas de boa fé (“cientistas radicais“, como Pinker os chama) são responsáveis por ignorar e ofuscar os resultados das novas ciências e maltratar seus praticantes. Por exemplo, Stephen Jay Gold, a quem eu considero um confiável divulgador da ciência, participou de uma campanha com Richard Lewontin para desacreditar a Sociobiologia de E.O. Wilson, amontoando-o aos eugenistas e darwinistas sociais. Pinker também nos conta da antropóloga Margaret Mead — a mesma pessoa que disse algo tão inspirador quanto “nunca duvide que um grupo pequeno de pessoas pensantes e comprometidas possa mudar o mundo; de fato, esta é a única forma de fazê-lo” — conscientemente negando os efeitos dos genes no comportamento humano e denegrindo os proponentes das novas ciências, mas dizendo à sua filha em privado que ela creditava seus próprios talentos intelectuais aos seus genes. Os protestos, calúnias e difamações que Pinker nos relata, perpetrados por ativistas e acadêmicos e direcionados a indivíduos que ousaram explorar as raízes da natureza humana, são, quando lidos uma década e meia após o lançamento de seu livro, tão perturbadores quanto proféticos.

Qual foi o ímpeto dessas ações vindas de pessoas que, de outra maneira, são indivíduos educados e cientistas (de boa fé)? Pode-se especular. Um entendimento caridoso seria que eles temem perpetuar desigualdades (e seus discípulos persistem no temor). Sobre isso, Pinker escreveu:

“Reconhecer a natureza humana, muitos pensam, é endossar racismo, machismo, guerra, ganância, genocídio, niilismo, políticas reacionárias, e negligência contra crianças e os menos favorecidos.”

E porque, como Pinker diz após informar os leitores que as novas ciências escolheram a pior década pra se concretizarem:

“Ao invés de desvincular as doutrinas morais das científicas, o que garantiria que o relógio não retrocederia, não importando o que saísse do laboratório e do campo, muitos intelectuais — incluindo alguns dos cientistas mais famosos — promoveram o maior esforço para conectar as duas.”

Essa é uma área traiçoeira e estou francamente surpreso que Pinker se manteve ileso após a publicação de suas ideias. Reconhecer a natureza humana hoje, as diferenças sexuais, violência, acasalamento, potencial humano e genocídio parece uma maneira segura de ser academicamente insultado como “racista/machista” e de fundamentar a crença alheia de que se está tentando justificar desigualdades. Mas suponho que sua reputação seja reflexo do quanto ele é cuidadoso ao refutar cada falácia e reação visceral que se pode ter ao aceitar a natureza humana — e nos mostrando que rejeitá-la pode levar a políticas e concepções que promovem o sofrimento.

Eu também compartilhei de algumas preocupações dos “cientistas radicais”: se o ambiente não é tão responsável pelo comportamento humano quanto as pessoas pensam, isso não nos deixaria com uma visão determinística da sociedade (onde aceitamos violência e belicosidade como intrínsecas à humanidade)? As pessoas merecem mesmo ser exatamente da forma como terminaram? E isso não nos levaria a nefastas e doentias pseudo-justificações de superioridades e perigosos declives escorregadios?

Mas Pinker lida com essas reações automáticas demonstrando que atrocidades em escala industrial também decorrem da crença em sermos Tábula Rasa. Elas não são domínio de uma única ideologia; como Pinker nota, “tanto a ideologia Nazista quanto a Marxista levaram à mortandade em escala industrial, embora suas teorias psicológicas e biológicas fossem opostas”.

Tomemos os Nazistas: um líder ganha poder e implementa um plano de dizimar toda uma população, a qual ele crê estar conspirando contra seu povo, e porque ele considera sua “raça” geneticamente superior. Pode-se parar aqui, talvez como o “cientista radical” e seus seguidores, e perguntar: “bem, não é melhor acreditar e assegurar que somos todos iguais, para impedir que essas coisas aconteçam de novo?“. Então Pinker oferece sua réplica: Mao e o Khmer Vermelho de Pol Pot, que exterminaram muito mais gente do que Hitler, explicitamente promoveram a visão de Tábula Rasa da humanidade. Acreditar que todos os seres humanos nascem iguais em tendências, características e talentos leva seus aderentes a se perguntar por que alguns se saem melhor que outros. Classe, riqueza oculta, conspirações, etc, são todas respostas oferecidas para essa questão. Aqueles que foram considerados burgueses carregavam um estigma permanente em regimes pós-revolucionários, sendo perseguidos como “camponeses ricos” e privilegiados.

É por isso que intelectuais que não são comunistas, as classes educadas e os burgueses foram tão severamente perseguidos — e frequentemente enviados aos Campos de Extermínio. Por causa da crença de que estavam colhendo privilégios não permitidos aos seus conterrâneos. De acordo com o historiador Paul Johnson, escrevendo sobre o Khmer Vermelho em seu livro “Tempos Modernos: uma história do mundo de 1920 ao ano 2000“:

“Tinha de ser ‘revolução social total’. Tudo sobre o passado era ‘atavismo e deveria ser destruído’. Era necessário ‘reconstruir psicologicamente membros individuais da sociedade’. Implicava em ‘cortar fora, através do terror e de outros meios, as bases tradicionais, estruturas e forças que moldaram e guiaram as vidas individuais’ e então remodelá-las de acordo com as doutrinas do partido, impondo um novo conjunto de valores.”

Para Pol Pot e o sistema de seu Khmer Vermelho, a sociedade foi corrompida e precisava ser reconstruída. Considere seu bordão implicando que a cultura aprendida havia nos infectado — e que nascemos puros (o [mito do] Bom Selvagem):

“apenas os recém-nascidos são imaculados”

Dado tudo isso, eu esperaria que a questão “por que este livro permanece relevante?” começasse a se responder sozinha. Idéias relacionadas à Tábula Rasa continuam sendo promovidas em nossa cultura popular, mídia e mesmo nas políticas públicas. Da criação dos filhos aos resultados das diferenças entre os sexos e violência, Pinker aponta que muitas noções consideradas verdadeiras são contrastadas por descobertas em campos como a genética comportamental. De seu prefácio:

“A ideia de escrever este livro veio quando comecei a colecionar estonteantes afirmações de especialistas e críticos sociais acerca da maleabilidade da psiquê humana: que garotinhos discutem e brigam porque são encorajados a fazê-lo; que crianças gostam de doces porque seus pais os usam como barganha para comer vegetais; que adolescentes competem em aparência e moda por causa de ditados e prêmios escolares; que homens pensam que o objetivo do sexo é o orgasmo por causa da maneira como foram socializados. O problema não é apenas que essas afirmações são ridiculamente absurdas, mas que seus locutores não percebiam que diziam coisas que o senso comum questionaria. Esta é a mentalidade de uma seita, na qual crenças delirantes eram exibidas como provas da piedade de alguém.”

Se hoje alguém olha ao redor, crenças similares que revogam nossa natureza humana compartilhada e atribui nossas ações à cultura, socialização e sociedade são muito comuns. A crença de que apenas representando homens e mulheres em proporções iguais em todos os lugares poderemos eliminar o machismo. A crença de que é a sociedade que molda o que consideramos atraente. A crença de que boa educação pode controlar praticamente todas as facetas de como uma criança se tornará. A crença de que violência é aprendida. A crença de que representações de imagem e mídia constroem nossa realidade (e que a única forma de lutar contra esse controle é através de mais representação).

O capítulo intitulado “As Artes” é particularmente refrescante. Visitei ambos os museus, o de Arte Moderna em NY e o do Louvre, em Paris. Apenas um deles me fez questionar se eu não podia perceber o mérito das exibições, ou se eu simplesmente não era suficientemente apreciador da teoria e intenção artísticas por trás das obras.

Menciono minhas visitas não para me gabar, mas porque queria ter lido as palavras de Pinker antes de visitar o Museu de Artes Modernas: “a equalização pós-moderna de imagem e pensamento não só transformou diversas disciplinas acadêmicas em tralha como trouxe lixo ao mundo da arte contemporânea”. Alguns movimentos artísticos acham que se trocarmos as imagens e o que nelas é representado, mudamos os pensamentos. Como contraste, Pinker nos oferece seu pensamento:

“Uma vez que reconhecemos o que o modernismo e o pós-modernismo fizeram às humanidades e às artes, as razões de seu declínio e queda ficam demasiado óbvias. Tais movimentos são baseados numa falsa concepção da psicologia humana, a Tábula Rasa. Falharam em aplicar a mais alardeada de suas habilidades — descartar as pretensões — a si próprios. E tiraram a diversão da arte!”

Já posso ouvir a repulsa dos doutos. Mas o que Pinker aponta é que seres humanos têm preferências limitadas, específicas (e não apenas culturalmente moldadas) acerca do que consideramos admirável. Nenhuma quantidade de teoria explicando por que e como estruturas hegemônicas de poder controlam o que a sociedade considera “belo” são capazes de explicar por que eu e tantos outros consideramos a arte moderna… insípida.

Parece a mim um problema que haja entre nós aqueles que ainda querem acreditar que são majoritariamente a cultura e a sociedade que moldam os indivíduos — e que, portanto, apenas fixados em consertar nossos sistemas nós podemos amenizar o sofrimento humano. Ao contrário, nós precisamos de um entendimento pleno da natureza humana em todos os seus detalhes. O mais preocupante é que esse livro veio a público há 15 anos e ainda estamos atolados em discussões nas quais Pinker despendeu muito tempo refutando (a versão de bolso tem 430 páginas).

Apesar de longo (e velho), Tábula Rasa é uma leitura importante a todo aquele que não quer viver num mundo de fantasia. Um mundo no qual o único motor do comportamento humano é a sociedade, enquanto milhões de anos de evolução são descartados por oferecerem, às vezes, algumas verdades que, quando mal formuladas, são consideradas inconvenientes. A natureza humana e nosso comportamento são assuntos fascinantes e maravilhosos, e não podemos chegar a seu âmago se rejeitarmos um enorme número de descobertas replicáveis acerca de suas componentes genéticas e evolutivas.

É hora de se preocupar com o futuro da liberdade de expressão

“Anúncios que perpetuam estereótipos de gênero serão proibidos no Reino Unido, mas não no bom e velho EUA!”, se encontra em uma manchete recente no site Jezebel. Palmas para o “bom e velho” EUA por continuar a valorizar o direito fundamental da livre expressão, você pode dizer. Ou talvez não.

Por que uma feminista – ou qualquer um – comemora a ideia de dar poder aos burocratas para decidir como falamos sobre estereótipos de gênero? Porque, hoje em dia, os valores fundamentais significam cada vez menos para aqueles que acreditam que ouvir algo desagradável é a pior coisa que pode acontecer.

Às vezes você precisa de um censor – diz a escritora do site Jezebel, porque propagandas nefastas como a do “Big Yogurt” têm “atacado mulheres por décadas.” Ela e os britânicos, aparentemente, não acreditam que as mulheres tenham a capacidade de fazer escolhas como consumidoras ou [que tenham] força interior para ignorar os anúncios que vendem iogurtes probióticos.

É por isso que o Comitê de Prática de Publicidade do Reino Unido (e cara, é preciso muita força de vontade para não usar o clichê “orwelliano” para descrever um grupo precisamente com esse tipo de ferocidade) é uma ideia tão inteligente. Isso proibirá, entre outras coisas, comerciais em que os membros da família “criam uma bagunça, enquanto uma mulher é a única responsável por limpá-la”, que sugere que “é uma atividade inadequada para uma garota porque está estereotipicamente associada a meninos, ou vice-versa” e aqueles em que “um homem tenta e falha em executar tarefas domésticas parentais.”

Se você acredita que esse tipo de coisa é responsabilidade do estado, é improvável que você saiba muito sobre Constituição. Eu não estou tentando atacar essa escritora. A aceitação a restrições de discursos é um problema crescente entre millennials e democratas. Para eles, as noções opacas de “justiça” e “tolerância” aumentaram para superar a importância da liberdade de expressão.

Você pode observar isso em personalidades da TV como Chris Cuomo, ex-presidente do Partido Democrata Howard Dean, em prefeitos de grandes cidades, e no Escritório de Marcas e Patentes dos EUA. E, também, na Senadora Dianne Feinstein (D-Calif.) discutindo restringir a liberdade de expressão em sistemas universitários públicos. São os principais candidatos políticos argumentando que o discurso aberto dá “ajuda e conforto” aos nossos inimigos.

Se não é o Big Yogurt, é o Big Oil ou o Big isso-ou-aquilo. Os democratas durante anos fizeram campanhas para revogar a Primeira Emenda e proibir o discurso político por causa da “equidade”. Esta posição e suas justificativas são abastecidas pelo mesmo combustível ideológico. No entanto, acredite ou não, permitir que o estado censure documentários é uma ameaça maior à Primeira Emenda do que os tweets do presidente Donald Trump zombando a CNN.

Tratam-se de autoritários como Laura Beth Nielsen, professora de sociologia da Universidade Northwestern e professora de pesquisa da American Bar Foundation, que defende a censura em um importante jornal como Los Angeles Times. Ela afirma que o discurso de ódio deve ser restrito e que “o discurso de ódio racista tem sido associado ao tabagismo, à hipertensão arterial, à ansiedade, à depressão e ao transtorno de estresse pós-traumático e requer estratégias complexas de enfrentamento”. Quase todo censor na história da humanidade argumentou que a fala deveria ser restringida para equilibrar algumas conseqüências prejudiciais. E quase todo censor na história, mais cedo ou mais tarde, continuou expandindo a definição de prejudicial até que os direitos de seus adversários políticos acabassem.

Você pode ver onde isso está acontecendo ao ver a Europa. Descarte os argumentos de declive escorregadio se quiser, mas na Alemanha, onde o discurso de ódio foi banido, a polícia invadiu casas de 36 pessoas acusadas de publicar “conteúdos ilegais”. Uma lei aprovada no mês passado na Alemanha diz que as empresas de mídia social podem enfrentar multas de milhões de dólares se não removerem discurso de ódio dentro de 24 horas. Quando os debates sobre imigração estão em alta na Alemanha, a ameaça de abuso dessas leis é grande.

Na Inglaterra, um homem foi recentemente condenado a mais de um ano de prisão depois de ter sido culpado por incitar ódio religioso com uma estúpida postagem no Facebook. Há políciais de crimes de ódio que não só buscam cidadãos que dizem coisas consideradas inapropriadas, mas também imploram para informantes denunciarem as palavras vulgares de seus concidadãos.

Quando eu era jovem, os liberais muitas vezes repetiam uma citação erroneamente atribuída a Voltaire: “Eu desaprovo o que você diz, mas vou defender até a morte seu direito de dizê-lo”. Isto era usado tipicamente em defesa de obras de arte que eram ofensivas aos cristãos ou aos burgueses — uma pintura suja de Maria, um álbum de heavy metal ruim, etc.

Você não ouve muito disso hoje. É mais provável que ouça: “Eu desaprovo o que você diz, então cala a boca”. O idealismo não é encontrado nas noções de iluminismo, mas sim em identitarismo e em indignação. E se você não acredita nesta exigência da esquerda em mimar cada noção que exibe perigo à liberdade de expressão, você não tem prestado atenção.

***

Por David Harsanyi, em Reason Magazine, 21 de julho de 2017. Tradução de Douglas Ramos para a LiHS.

Política identitária: uma receita explosiva para questões raciais?

Trecho do livro “Enlightenment 2.0” [Iluminismo 2.0, em tradução livre], de Joseph Heath.

O que importa não é tanto a diferença entre indivíduos, mas quais diferenças escolhemos para investir significado. Essa é a boa notícia sobre as raças. Sugere que a melhor forma de superar a raça pode ser simplesmente distrair as pessoas de pensar nela. Se não há nada mais para atrair a atenção das pessoas, o conjunto de características físicas que distinguem raças será considerado importante, mas isso pode ser superado pela redução da saliência dessas características.

Provavelmente não há nada que possamos fazer para evitar que as pessoas classifiquem os outros em grupos e desenvolvam animosidade contra aqueles que consideram como pertencentes a um grupo externo. No entanto, mesmo que não possamos mudar essa característica básica da psicologia humana, podemos desenvolver uma solução alternativa, que é manipular o ambiente para que as pessoas classifiquem umas às outras de formas que sejam menos socialmente perniciosas.

Por exemplo, em vez de deixar que as pessoas fiquem fixadas nas características herdadas dos indivíduos — tais como cor da pele — poderíamos encorajá-las a se focarem em características arbitrárias ou simbólicas — como o estilo capilar. A vantagem do estilo capilar é que ele pode ser facilmente mudado, e dessa forma não se traduz em desvantagem permanente para qualquer classe de indivíduos. Isso pode explicar por que as forças armadas e os times esportivos tiveram muito mais sucesso em criar a integração racial que muitas outras instituições na vida americana. O que torna ambos distintos é que cultivam lealdades muito intensas e particularistas. Há boas razões para pensar que essas formas de identificação de grupo simplesmente ocupam o espaço das outras baseadas em raça.

Isso pode ser muito mais efetivo que pedir às pessoas que se subscrevam a algum ideal universalista, que as force a superar ou suprimir seus instintos “grupais”.* Dessa perspectiva, o verdadeiro problema nos Estados Unidos não é tanto o racismo quanto a consciência racial. (De fato, para muitos não-americanos, a faceta mais opressiva das relações interculturais nos Estados Unidos não é que as pessoas sejam racistas, mas que falem e pensem incessantemente sobre raça, pior do que a forma como os ingleses falam e pensam sem parar sobre classe.)

Ainda assim, essa característica da cultura americana parece ser uma características que todos, brancos e negros, conservadores e liberais, estão envolvidos numa grande conspiração para sustentar e reforçar. Isso é porque a maioria dos americanos progressistas nesse assunto acreditam que o racismo deve ser superado diretamente, e que isso só pode ser feito através do aumento da sensibilidade e consciência da diferença racial. Muito da política progressista negra fez a mesma coisa, rejeitando o ideal antigo da sociedade que diz que “não vê cor” e insistindo no reconhecimento e afirmação de uma identidade positiva negra. Isso acaba sendo uma receita inadvertida para a reprodução do racismo. Mesmo que a intenç’ao seja criar uma identidade positiva de grupo, seu efeito dominante é fazer a raça saliente como uma base de identidade de grupo, o que significa que ela também se tornará, inevitavelmente, um alvo de valoração negativa para alguns.

Heath, Joseph. Enlightenment 2.0 (Kindle Locations 5217-5239). HarperCollins Canada. Kindle Edition. 2014.

Notas do autor:

* Gat, War in Human Civilization, p. 135.

** Roy Baumeister escreve que “Na história do mundo, o reconhecimento crescente das diferenças entre os grupos levou mais frequentemente ao conflito e à violência que à cooperação pacífica e ao compartilhamento. Os Estados Unidos estão agora jogando perigosamente no resultado oposto” (Evil, p. 79).