Ciência não é ateísmo

Publicado anteriormente com o título “A ciência é ateia?” no Bule Voador.

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Já vi ateus dizendo que a ciência é ateia. Este tipo de afirmação costuma ser errado por motivos complicados. Em primeiro lugar, de quem é a responsabilidade de dizer o que é ciência ou não é? Esta tarefa, em última instância, acima dos rótulos governamentais e burocráticos, é uma tarefa dos filósofos da ciência. Fiz três cursos de filosofia da ciência / epistemologia na graduação e na pós-graduação, e jamais, em material algum, encontrei a negação da existência de seres sobrenaturais como premissa no critério de demarcação de qualquer filósofo da ciência. E mesmo se houvesse, isso seria bizarro, pois seria encontrar na definição de uma área uma referência descabida a outro campo, como por exemplo uma receita de bolo que dissesse nos ingredientes “não acrescente tungstênio”.

Dizer que cachorro é o que não é gato, coelho ou cavalo não costuma ser uma boa forma de definir cachorro. Chamar seu pai de “você-que-não-é-a-mamãe” no mínimo não tem o mesmo poder de fazer ele responder a seu chamado. A ciência vive muito bem sem a qualificação de “sistema-em-que-não-se-acredita-em-deuses” porque o ateísmo é a crença de um grupo de pessoas sobre a crença de outro grupo de pessoas, discordando do que estas últimas acreditam, e não uma doutrina delimitada e propositiva. Em contraste, todas as ciências precisam ser propositivas sobre seus objetos de estudo. (E antes que me incomodem dizendo que ateísmo é só ausência de crença, recomendo que dêem uma olhada nas pesquisas de Sam Harris e nos argumentos de Desidério Murcho sobre o que é crença e crença justificada – esta última também chamada de conhecimento.)

Alguém pode acreditar, como eu acredito, que a ciência é útil para os argumentos dos ateus. Mas, quando alega que a ciência é ateia, ou quando sinonimiza ciência a ateísmo, está apenas sendo ignorante em filosofia e história da ciência. Foi para “a maior glória de Deus” que Lineu criou o sistema de classificação que os biólogos usam até hoje. Newton acreditava que era Deus quem mantinha os planetas em suas órbitas, foi preciso o trabalho posterior de Laplace para que ficasse claro que Deus não era premissa da mecânica de Newton.

Jean-Baptiste de Lamarck, que trabalhou para explicar a origem das espécies pela transformação progressiva do uso e desuso (sendo o item do progresso o único citado aqui em que Darwin discordaria dele), também trabalhou para explicar o clima e as entidades geológicas, sempre em termos naturalistas. Jamais declarou ser ateu ou duvidar das doutrinas fundamentais do cristianismo.

Se a ciência fosse ateia, os cientistas teístas se sentiriam constrangidos em declarar que acreditam em algum deus, ou saberiam estar trabalhando pela derrocada de suas próprias crenças, o que não parece ser o caso.

Mas entendo por que alguns colegas de descrença tentam botar o rótulo do ateísmo na ciência: é uma tentativa de se aliar a ela apenas por sua autoridade. É a velha figura do puxa-saco que fica sempre pertinho da autoridade esperando que enquanto ela anda algumas gotinhas de suas virtudes espirrem sobre ele.

Evidentemente, só precisamos de correção lógica para notar que esse velado apelo à autoridade é uma falácia como qualquer outra, por mais que a(s) ciência(s) seja(m), de fato, autoridade(s) em questão de conhecimento.

Se o indivíduo quer afirmar que a ciência ajudou o ateísmo, precisa argumentar e mostrar isso. Eu argumentei em outro texto que as explicações científicas para o surgimento da mente, hoje, desnudam a contingência da mente diante do universo, e que portanto tomar a mente humana como análoga ou idêntica a outra alegada entidade existente no mundo externo não é diferente de tomar a cauda do pavão ou a tromba do elefante. A mente humana, a cauda do pavão e a tromba do elefante estão em igualdade de condições quanto ao status de necessidade no universo (mundo externo ou realidade). Ou seja, há tantos motivos para dizer que o universo foi planejado/criado quanto para dizer que ele foi “ramificado” (como a cauda do pavão) ou trazido à existência pela força muscular de um análogo cósmico da tromba do elefante.

Esta argumentação não é tão simples, e tem várias premissas que poderão ser julgadas problemáticas (e eu direi que este julgamento terá sido desinformado). De qualquer forma, debater a existência de fantasmas amorfos usando ciência como premissa não é fazer ciência, é fazer filosofia. As atividades que costumamos chamar de ciência pouco se importam ou se afetam por este debate.

Pergunte à física se existem elétrons, e ela ficará muda. Tudo o que ela dirá é que, se você pretende fazer coisas como computadores, usar o conceito de elétron como instrumento é uma boa pedida.

Se a própria ciência não pode estabelecer que seus conceitos dizem mesmo respeito a entidades que existem no mundo real, deixando este assunto para uma certa área da filosofia chamada metafísica, que dirá sobre existirem ou deixarem de existir entidades sobrenaturais das quais tanto se fala mas tão pouco se evidencia nas religiões?

A ciência não é ateia porque ela também não é teísta. Ela não é um conjunto de opiniões, mas um conjunto de práticas, macetes, técnicas, métodos, conceitos e teorias. Você pode dizer que ela é o martelo, que ela é o prego, ou até que ela é o ato transitório de bater o martelo no prego. Mas dizer que ela depende do ato de não acreditar em marceneiros não apenas carece de fontes, como também de bons argumentos.

Ninguém precisa dizer que ciência é ateia para dar força ao ateísmo. Basta investigar cientificamente as alegações da Bíblia: o resultado dirá “inconclusivo”, e não há nada mais satisfatório para um ateu do que um “inconclusivo” em contraste com o “inerrante” que certos crentes tentam nos empurrar goela abaixo.

Basta apontar as notáveis semelhanças entre os deuses favoritos da modernidade e os bichos-papões da imaginação das crianças (e em termos mais sofisticados, notar a semelhança psicológica entre a tendência infantil de personificar a natureza e a tendência religiosa de personificar a parte inacessível da natureza).

E basta notar que, numa notável semelhança com as mais importantes descobertas científicas, o ateísmo foi descoberto várias vezes na história contra diferentes fundos culturais: há registros milenares de ateus entre gregos, indianos e chineses. Enquanto isso, as religiões, escravas de contingências culturais, nunca conseguiram concordar entre si sobre que deuses existem, quantos são, que planos têm e quais são suas propriedades.

Divergência ou convergência, em qual dos dois processos há mais racionalidade? No encaixe instável que é a tentativa do ser humano de compreender o mundo aparente que o cerca, a convergência de conclusões independentes tem valor intrínseco de verdade, especialmente em ambientes culturais diferentes, nos quais “nada se cria, tudo se copia”.

Não incomodemos a falível e incompleta ciência enfiando nela nossas opiniões. Diamante é chamado de material mais duro porque risca qualquer outro material, não porque é inquebrável. E o diamante afiado da ciência se quebra facilmente ao primeiro sinal de contaminação ideológica.

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