Liberdade e impulsos: crítica da liberdade como dominação.
Por Márcia:
Para Nietzsche, há dois tipos de pessoas: as que são fortes como aves de rapina e as que são fracas como ovelhas. As aves de rapina também são chamadas de fortes, senhores, nobres e as ovelhas são chamadas de fracas, escravas, ressentidas. As aves de rapina têm força para realizarem aquilo que querem e, se tiverem o desejo de capturar ovelhas, elas conseguirão se impor, afinal são mais fortes. Já as ovelhas, para se defenderem, farão com que a força das aves de rapina não se manifeste, darão um “golpe de mestre”[3] e enganarão as aves de rapina com uma “fábrica de mentiras”[4]: a impotência passa a ser considerada virtude e bondade, a fraqueza passa a ser considerada mérito. As ovelhas fazem as aves de rapina acreditarem em um reino de Deus, onde seriam punidas caso efetivassem sua força.
Como há dois tipos de pessoas, há dois tipos de moral: como os fortes dizem sim a si mesmos, vêem-se como bons, como fortes, e desprezam as ovelhas, já que são seres fracos, ruins. Já as ovelhas, dizem não a um outro, consideram-no mau e desejam vingança. Isto é, as ovelhas inverteram os valores e dominaram as aves de rapina com a moral socrática e com o cristianismo. Criaram o reino de Deus para punirem e vingarem-se dos que insistirem em efetivar suas forças, usaram a moral como forma de dominar as aves de rapina.
As ovelhas dizem: “Você é uma ave de rapina, mas é livre para não usar sua força, é livre para não cometer o erro de agir de acordo com sua natureza, é livre para não ser uma ave de rapina. Caso nos devore, será punida no reino de Deus”! Isto é, pecamos, mas somos livres para expiar e pagar nossa culpa; desrespeitamos as normas, mas somos livres para pagarmos a dívida. A liberdade aparece como meio de submissão das aves de rapina às ovelhas, estas sustentam a crença de que “o forte é livre para ser fraco, e ave de rapina livre para ser ovelha”
E quais seriam essas razões meu caro?
Razões para se condenar a compaixão e a piedade? Desconheço. Por outro lado, não é preciso ser muito filosófico para encontrar razões que defendam a ampla adoção destas atitudes, por exemplo:
As pessoas eventualmente precisam ser ajudadas por outras pessoas.
Pessoas que não são ajudadas podem ser prejudicadas ou prejudicar outras.
Não devemos permitir que as pessoas se prejudiquem ou prejudiquem as outras e não podemos evitar que as pessoas eventualmente precisem de ajuda.
Logo, as pessoas devem se ajudar entre si. Uma pessoa que ajuda outra sem interesses escusos é uma pessoa que tem compaixão. As pessoas devem se ajudar sem interesses escusos. Assim, as pessoas devem se ajudar por compaixão.
Não diria que é um bom argumento, na verdade ele é péssimo, mas consegue expressar o que provavelmente o senso comum nos diria sobre a compaixão e, o importante, é que nem isto Nietzsche consegue nos fazer rejeitar. Compreendo que Nietzsche queira fazer toda uma inversão, e talvez isto signifique não só negar a compaixão, mas negar valores e conceitos mais fundamentais, talvez negar que “não devemos permitir que as pessoas se prejudiquem ou prejudiquem as outras”: ele poderia dizer que defender tal coisa já é sintoma da moral de escravo. Porém, isto não muda o fato de que ele não consegue estabelecer racionalmente suas conclusões, ele não consegue oferecer qualquer razão para que prefiramos o seu sistema de valores, tudo que faz é condenar e destacar os malefícios de um sistema enquanto exalta as virtudes do outro, malefícios e virtudes que só existem uma vez que se assume a própria divisão que ele pressupõe, e este é o grande problema.
Creio que Nietzsche tem alguma importância e algumas ideias interessantes, mas ele está longe de ser o que muitas vezes é feito dele (e Nietzsche certamente é um dos filósofos mais populares) e sempre devemos ficar com um pé atrás se nos vemos concordando com o que ele diz, pois é grande o risco de nossa concordância estar baseada nos efeitos retóricos e poéticos que ele exerce e não em um exame cuidadoso e crítico das proposições que ele apresenta.