LiHS cria Conselho de Ética Inter-Espécies

 

Conselho de Ética Inter-Espécies da Liga Humanista Secular

Douglas Oliveira Donin – Advogado, especialista em Direito Internacional e Acadêmico de Economia – UFRGS

Luciana Rodrigues Vasconcellos – Acadêmica de Psicologia – UEMG
Criança em Urubamba, Cusco, Peru. Por peace ken

O que é o Conselho
Inter-Espécies?
O Conselho de Ética Inter-Espécies
vem suprir uma lacuna na Liga Humanista Secular do Brasil, que atualmente conta
com conselhos para questões eticamente relevantes como direitos LGBT e questões
de gênero. É uma iniciativa inovadora, pois não temos notícia de uma
representação assim em associações seculares de outros países, e também por
vivermos em uma sociedade que, embora progressivamente abandone  alguns
critérios  discriminatórios, tarda e reluta em questionar outros.
Exatamente para preencher tal lacuna,
atendendo a uma clara demanda de uma crescente proporção do movimento humanista
– o qual frequentemente ocupa a vanguarda do posicionamento ético em relação ao
pensamento padrão da sociedade -, é com satisfação que damos início ao Conselho
de Ética Inter-Espécies. Este conselho se ocupará das questões éticas
envolvendo a espécie humana no seu relacionamento com as demais espécies, em
uma postura de igual consideração de interesses. Nossas metas são:
  • Contribuir para a criação de um modelo ético
    de ampla e irrestrita aplicação, para o qual seja irrelevante a
    denominação da espécie à qual pertença o sujeito ético, mas sim, as
    características e atributos de cada sujeito ético relevantes ao problema
    específico;
  • Contribuir para a ampliação da consciência
    ética dos membros da LiHS,  no que se refere a uma maior reflexão
    acerca das relações que os seres humanos mantém com seus co-espécificos,
    inter-específicos e para com o planeta;
  • Prestar assessoria à LiHS sobre o tema das
    relações éticas inter-espécies;
  • Trazer aos membros da LiHS a teoria e
    literatura especializada no problema filosófico da ética inter-espécies,
    principalmente divulgando o desenvolvimento internacional da questão;
  • Contribuir nas publicações e eventos da LiHS
    sobre a importância da ética inter-espécies.
O significado dos
termos “humano” em “humanismo”.
Pode causar, em um primeiro contato
com o tema, estranheza aos olhos do leitor que um grupo “humanista” preocupe-se
com “inter-especismo”. Afinal, por um dos termos, parece ser eleita a espécie
humana como pilar central do universo moral, e, por outro, parece se negar tal
priorização do humano. Como pode ser o humanista outra coisa senão um defensor
da soberania do humano, enquanto objeto primordial de consideração ética? Como
primar pelo humano pode não ser, automaticamente, uma forma de “especismo”?
Vamos tratar antes de tudo deste
questionamento, que corre o risco de aflorar de um simples – e de fácil
solução, diga-se – acidente terminológico. Por que o “humanista” é um ferrenho
defensor, e, ao mesmo tempo, deveria ser um ferrenho adversário, do papel
central do “humano” no universo moral? Para começar a responder esta questão,
vamos nos perguntar qual o significado do “humano” em “humanismo”.
As filosofias humanistas pregam, em
suas várias vertentes, o humano como centro das preocupações filosóficas. Desde
o renascimento, o humanismo é ligado às idéias de antropocentrismo e de
racionalismo. E isso – saber exatamente o que é este antropocentrismo,
principalmente iluminado pelo valor concomitante do racionalismo – pode começar
a nos ajudar a resolver a questão do significado do “humano” em “humanismo”.
Surgidas em oposição à teologia, ao
misticismo e ao teocentrismo medieval, onde só haviam dois atores no cenário
moral, o “humano” (o natural) e o “divino” (o sobrenatural), as várias
vertentes de filosofia humanista foram, antes de um movimento de elevação do
próprio ser humano perante todas as outras coisas, um movimento de elevação do
ser humano perante o divino e o sobrenatural, uma negação do papel destes como
fonte e objeto de consideração moral. Ou seja, uma eleição do natural perante o
sobrenatural.
Percebemos, então, que a
reivindicação do natural como centro das preocupações filosóficas nos exige uma
reavaliação dos critérios que devemos considerar no pensamento moral. Em um
primeiro momento, trata-se da busca de fundamentos concretos, intrínsecos ao
próprio mundo natural, de atributos ou características que tornem um dado
paciente moral digno de um certo tratamento moral adequado. E isso, no que se
refere à própria humanidade, fazemos com relativo sucesso: poucos são os que,
hoje, séculos após o renascimento, negam a mesma essência moral – logo,
dignidade para os mesmos direitos morais – aos diferentes humanos (embora ainda
exista larga margem para melhorias, principalmente nas questões ligadas ao sexo
ou ao comportamento sexual).
Mas o que nos interessa, para efeitos
desta discussão, é um segundo efeito desta mudança de paradigma: desistindo de
justificativas sobrenaturais, o homem abre mão de um papel semi-divino a ele
atribuído pelas narrativas místicas. Não podendo mais falar em si mesmo como
“centro da criação”, e buscando na própria realidade, e não em uma suposta
filiação divina, a razão de seus direitos morais, o homem percebe-se
compartilhando, com todos os outros componentes do mundo natural – independente
de quaisquer classificações, seja de que ordem forem – uma mesma série de
potenciais direitos morais, oriundos dos mesmos atributos, na medida e na exata
proporção em que, com estes outros componentes do mundo natural, partilha tais
atributos.
Ou seja, uma ética inter-específica
nada mais é do que uma aplicação coerente e irrestrita dos princípios éticos
tomados pelos humanistas como naturais e universais. Trata-se de simplificar a
proposição “isto é bom para mim” para, unicamente, “isto é bom”: aplicar o
mesmo conjunto de valores a quaisquer universo de sujeitos. É a reivindicação
de um atributo universalista à ética e a rejeição da ideia de que diferentes
interessados precisam de diferentes conjuntos de tratamentos éticos. Veremos,
adiante e em futuras ocasiões, que isso não implica em igualdade de direitos.
O problema da definição dos
componentes do espectro moral – quem é, de fato, sujeito de consideração moral,
ou o que faz um indivíduo ser moralmente apreciável, enquanto outro não – é
altamente complexo, apaixonante e, como todo problema moral, polarizador. A boa
notícia é que, ao tratar do tema, não fazemos nada senão continuar um exercício
de raciocínio ao qual já estamos bastante acostumados. Não há, essencialmente,
problemas morais novos, e a linguagem e técnica filosófica necessária já nos é
bastante familiar. Peter Singer, Gary Francione, Tom Reagan e J. M. Coatzee não
utilizam, hoje, princípios ou argumentos muito diferentes do que, antes deles,
muitos pensadores já utilizaram em diferentes ocasiões.
O problema da liberdade, por exemplo –
quem deve ter liberdade?”, ou “a quem é boa a liberdade?” – já foi alvo das
considerações de Joaquim Nabuco, William Pitt, Frederick Douglas, Martin Luther
King e muitos outros abolicionistas.  Estes se perguntaram: “faz sentido
tratar um sujeito X com um conjunto de princípios diferentes, no que diz
respeito à sua liberdade, apenas em função de sua cor?
” A resposta a que
chegaram foi de que sendo todos humanos e, como humanos, apreciadores da
liberdade, não havia fundamento concreto para uma diferença de tratamento sobre
algo que é, fundamentalmente, o mesmo interesse (o interesse de manter-se
livre, o prazer que se extrai da percepção de liberdade e o sofrimento que se
extrai da negação da liberdade).
A pessoa moralmente informada sobre
questões interespecíficas, dotada de um pensamento universalista, despindo-se
de posições privilegiadas, simplifica a questão: a liberdade não deve ser
negada, então, a qualquer um capaz de conscientemente desejá-la
. Mesmo que
disso decorra prejuízo ou diminuição de prazer de alguém que, de uma posição privilegiada,
analise a questão.
Apesar de fazer avançar o tema, o
movimento abolicionista do final do século XIX e dos Direitos Civis dos anos
60, no entanto, não encerraram a questão da igual consideração de iguais
interesses – que, daqui em diante, trataremos apenas pelo jargão filosófico
Princípio da Igual Consideração de Interesses”. Vencida a batalha dos
abolicionistas ( obtida uma ampliação do universo de humanos aos quais são
devidas considerações morais igualitárias, que resultou no fim da escravidão no
mundo ocidental, embora não ainda no fim da discriminação) um outro conjunto de
sujeitos indicava que, agora, era a sua vez de ter seus pleito solucionado.
Stuart Mill, Lucretia Mott, Frances Willard e muitos homens e mulheres, por um
fundamento análogo, já repetiam a mesma pergunta que os abolicionistas
responderam: “faz sentido tratar um sujeito X com um conjunto de princípios
diferentes apenas em função de seu sexo?
”  O movimento sufragista,
primeira manifestação da onda feminista, reivindicava para as mulheres (que,
embora não sofressem restrições aos seus direitos tão severas quanto os
escravos, com certeza não podiam gozar da mesma liberdade e plenitude, enquanto
indivíduos, que as pessoas do sexo masculino) igual consideração em virtude dos
mesmos interesses. Em resumo, também invocavam o Princípio da Igual
Consideração de Interesses. A elas se opuseram, do mesmo modo que antes, o peso
da tradição e argumentos de posição privilegiada de igual formatação, mas o
pleito da “igual consideração para iguais interesses” era forte demais para ser
ignorado. E assim, a fronteira ética se ampliava mais uma vez.

 A ética universalista impôs a aplicação do Princípio da Igual
Consideração de Interesses a cada vez mais situações morais. Hoje, é travada
uma batalha no campo dos direitos humanos sobre o fato de que homossexuais e
heterossexuais, por possuírem uma série de interesses em comum – constituir um
núcleo familiar, unir-se com quem escolheram, desfrutar da mesma condição legal
– não devem ter tratamento diferenciado, o que há alguns anos era impensável.
Muitos países se vêm às voltas com a aplicação do Princípio da Igual
Consideração de Interesses em relação a diferente tratamento dado a nacionais e
estrangeiros. O fato de possuir uma ou outra religião, ou não ser filiado a
nenhuma em especial, também é atacado como fonte de discriminação moral. Mas há
algo na filosofia universalista, que prega a aplicabilidade do mesmo conjunto
de princípios morais a quaisquer sujeitos que compartilhem uma mesma massa de
atributos, que diga que estes princípios só possam ser aplicados aos
componentes de uma certa parcela de símios (que fundamentalmente não diferem
substancialmente uns dos outros, no que diz respeito aos atributos relevantes à
questão), dentre todos os possíveis componentes do mundo natural?
Parece extremamente ilógico – aliás,
uma negação da própria pretensão de validade irrestrita de uma ética universalista
– imaginar que sim. Nas palavras de Daniel Sottomaior Pereira, um dos primeiros
humanistas brasileiros a defender, abertamente, o abandono da ideia de exclusivismo
ético humano, “um círculo moral que inclua apenas nossa própria espécie é, como
qualquer outro círculo convenientemente restrito a uns poucos à nossa volta, um
círculo imoral. É uma forma de chauvinismo.
”  E, justamente, a esta particular
escolha de fundamento discriminatório, elegendo como limite para a consideração
de interesses “apenas aqueles que possuem a mesma espécie que eu”, para
manutenção de uma posição privilegiada, chamamos de “especismo”.

O que é especismo?

“Especismo” significa privilegiar os
membros da nossa espécie em nossas decisões éticas. É, ao exemplo de outros
critérios discriminatórios arbitrariamente eleitos, como por exemplo o critério
de “raça” no racismo,  de “nacionalidade”
na xenofobia ou “sexo” no sexismo,  considerar que existe uma linha
divisória clara entre nós e as outras espécies, que há conteúdo objetivo em tal
discriminação, e que isso permite ignorar os interesses – principalmente o
interesse de não sofrer – de todas as outras espécies que não a do especista, a
fim de obter benefícios pessoais ou compartilhados entre o próprio grupo discriminante,
que obtém posição privilegiada.
São vários os obstáculos atuais impostos
à ética interespécies. Talvez o maior deles seja o fato de que muitos ainda
trazem consigo o preconceito, talvez derivado de uma visão mística de mundo, de
que os seres humanos, independente de qualquer situação, “estão em primeiro
lugar
”, e que os problemas relativos aos animais não-humanos não são
comparáveis, em termos morais, aos problemas humanos. Como veremos
posteriormente, tais preconceitos não possuem fundamento objetivo –
dificilmente o proponente de tal ideia ocupa-se de fornecer uma resposta ao
porquê de apenas os interesses humanos serem dignos de consideração, apenas
recorrendo a uma suposta obviedade da resposta  – e, como são
praticamente uma reformulação em torno do conceito de espécie da afirmação “os
problemas alheios não são tão importantes quanto os meus”, também não passam de
um argumento de posição privilegiada. Para chegar a essa conclusão o indivíduo
necessita acreditar que o sofrimento dos animais que não são da sua espécie – por
mais que possam estar de fato sofrendo – é menos importante que o sofrimento de
um animal de sua espécie, pelo fato de que ele compartilha de características
arbitrariamente escolhidas (racionalidade, capacidade mental, etc.) que não se
comunicam, ou que pouco se comunicam, com o problema em questão – que é
justamente sofrer, derivado única e exclusivamente da capacidade de sofrer –
mas que passam a ser o limite de seu horizonte moral. Sobre isso, Peter Singer
faz uma comparação precisa: “O que pensaríamos se alguém dissesse “Os
brancos vêm em primeiro lugar” e, portanto, a pobreza na África não
constitui um problema tão grave como a pobreza na Europa?
”.
Algumas questões sempre vêm a tona
quando se fala em uma ética interespécies. Frequentes são as preocupações sobre
o status ético humano, alcançado na igual consideração de interesses, ou se
seria legítimo basear nossas decisões éticas somente com base no afeto e não
com base na razão, ou sobre como seria o proceder ético não-especista. Elas
serão resumidas e respondidas abaixo:


Por que  privilegiar os membros de nossa espécie é incoerente?
Ao longo
dos tempos buscou-se traçar uma linha divisória que nos distinguisse
absolutamente dos outros animais. Até meados do século passado o ser humano era
considerado, para todos os efeitos, um não-animal, de filiação divina, o que o
separava de todo o restante da natureza. Outras tentativas de separação
incluem, por exemplo, ser dotado de espírito, utilizar utensílios, fabricar
utensílios, possuir linguagem, possuir raciocínio, possuir consciência. A
existência de alma ou espíritos nunca foi comprovada cientificamente, e cada
vez é menos invocada. Os outros critérios todos foram refutados: chimpanzés são
capazes de fabricar utensílios e aprender a linguagem dos surdos, existem
evidências de que golfinhos possuem linguagem complexa própria, comunidades de
lobos parecem ser capazes de manter um tipo primitivo de justiça socialmente
reforçada e a neurobiologia parece ser unânime ao apontar diferentes graus de
raciocínio e consciência para diferentes animais. Atualmente, a linha divisória
tem sido considerar que animais humanos são autoconscientes, possuem percepção
temporal de passado e futuro, são autônomos capazes de fazer escolhas, mas tais
atributos também não são exclusivos da espécie humana. E, mesmo que fosse,
porque o fato de sermos dotados de autoconsciência, percepção temporal e
autonomia, ou qualquer outro atributo arbitrariamente selecionado, justifica
ignorar o sofrimento dos seres não dotados dessas características e usá-los sem
preocupações éticas? Humanos com deficiência física ou mental muitas vezes não
são autoconscientes, não possuem percepção do tempo passado ou futuro, não são
autônomas e nem por isso diríamos que poderiam ser usadas em experiências
científicas ou em trabalhos forçados para o bem do resto da humanidade.
Justificar o sofrimento dos animais não humanos para quaisquer benefícios que
tal sofrimento possa trazer à nossa espécie, com base unicamente  no
critério de pertencerem à outra espécie é como justificar o sofrimento dos
negros escravizados por pertencerem a uma raça distinta.


Não privilegiar a nossa espécie fará com que tratemos humanos deficientes, ou fisicamente
diferentes, como tratamos atualmente os animais não-humanos?
Essa pergunta, que
invoca uma suposta utilidade do especismo para o próprio respeito aos direitos
humanos, amplamente considerados, é interessante porque traz implícito o
reconhecimento de que a forma como tratamos os outros animais não é ética. Ao
reconhecermos que não há um abismo entre os animais humanos e não-humanos, e
que, ao contrário, devemos elevar os próprios interesses, em si considerados,
reforçamos não só o estatuto dos outros animais como também o estatuto dos
humanos, reconhecendo seus direitos com base em um fundamento objetivo, maior
do que justamente uma distinção arbitrária, ao invés de destituir os direitos
humanos alcançados.



Sinto mais afeto por humanos do que por vacas. Basear as decisões éticas com
base no afeto é justificado?
Basear nossas decisões éticas somente com base no
afeto pode trazer sérias consequências e incoerências. Muitas pessoas que
gostam de cães ficam horrorizadas ao saber que existem países em que as pessoas
se alimentam de cães e que, inclusive, eles sofrem com uma morte dolorosa –
certamente, com base em uma especial relação afetiva com tais animais. No
entanto, não parecem se preocupar com o sofrimento de porcos, vacas, chimpanzés
ou outros animais com a mesma capacidade de sofrer, por não ter com eles uma
ligação emocional tão forte. No entanto, o que essas pessoas diriam se um
alguém preferisse salvar seus cães de uma enchente a seus vizinhos, porque
gostam dos seus cães e mal conhecem seus vizinhos? Ou salvar  suas
plantas? Ou o que diriam se os homofóbicos justificassem seu comportamento
violento por que não gostam de gays? Com efeito, basear tais escolhas éticas
com base no afeto é, no fundo, considerar o próprio interesse (o interesse de
ver bem aqueles que para nós são importantes, em detrimento dos demais), o que
não é uma forma de pensamento ético de ampla aplicação, visto que os interesses
afetados, em si, não são considerados.


Não podemos sentir a dor do outro, então como sabemos que os animais sentem
dor?
Da mesma forma que sabemos que outros humanos sentem dor, também não
podemos sentir a dor de outro ser humano, mas, em primeiro lugar, podemos
deduzi-la pelo seu comportamento. Mesmo depois de aprender a falar e comunicar
a sua dor os humanos reagem de forma semelhante aos outros animais diante da
dor. Em segundo lugar, pelo estudo da Anatomia Comparada, porque possuímos um
Sistema Nervoso Central, cujas áreas relacionadas à percepção da dor são
antigas em termos evolutivos e semelhante à de outros mamíferos e aves. De
qualquer forma, o simples fato de que buscam conscientemente evitar situações
que gerem tais sensações, repudiando-as, demonstra, além do questionamento se
aquela sensação é ou não dor, que há um claro interesse seu que tais sensações
não sejam a eles impostas.



Se considerarmos que os animais sentem dor, deveríamos considerar que as
plantas também sentem dor?
As plantas não possuem Sistema Nervoso e por isso
não são capazes de sentir dor ou de ter quaisquer interesses conscientes.
Equiparar as necessidades éticas dos animais com as necessidades éticas das
plantas, se é que elas as têm, com base unicamente no fato de que são ambos
seres vivos, é negar que existam diferenças na necessidade de tratamento ético
entre quaisquer seres vivos. Logo, matar um ser humano seria moralmente
equivalente a matar uma planta qualquer, o que não possui fundamento.
  

Então em que poderíamos basear nossas decisões éticas sem sermos especistas?

Refletindo sobre as consequências objetivas de nossas ações sobre interesses
gerais, considerando igualmente os seus portadores, sejam animais humanos ou animais
não-humanos – o que, como exploraremos em textos futuros, não implica em
igualdade de interesses ou igualdade de direitos, mas em igualdade de condições
de consideração – bem como as consequências mais extensas de nossas ações sobre
o planeta. Steven Pinker, apoiado em um conceito de Singer, explica que cada
vez mais expandimos nosso círculo de empatia: deixamos de nos preocupar somente
com os membros de nossa família para nos preocupar com os membros de nossa
tribo, enfim, deixamos de nos preocupar somente com os membros de nossa raça ou
país e nos preocupamos com toda humanidade  (e assim criamos os direitos
humanos), baseados na constatação que mesmo além do círculo atual há uma
comunhão de interesses, idênticos ou análogos aos nossos. Agora estamos cada
vez mais próximos de considerar, também o interesse dos animais não-humanos e a
preservação do nosso planeta, fatores que já fazem parte essencial das
considerações éticas diárias de uma parcela crescente da população mundial.
 O que é
relevante para “ser uma pessoa”?
O senso comum geralmente utiliza o
termo “pessoa” como sinônimo de ser humano. Às vezes, entretanto, “ser uma
pessoa” parece ter um sentido diferente de apenas “ser da espécie humana”. Ao
mesmo tempo, parece que garantir a necessidade de consideração ética envolve
considerar um indivíduo enquanto pessoa, e, por isso, faz-se importante
esclarecer o que queremos dizer com o termo “pessoa”, indagando o que isto
realmente significa.
Para John Locke uma pessoa é um ser
autoconsciente, ou seja, alguém que possui a consiência de si mesmo como uma
entidade distinta, e  que possui noção do tempo com um passado e um
futuro.  Nesta acepção muitos animais não podem ser considerados como
“pessoas”, como também, bebês recém-nascidos e alguns seres humanos com
deficiências mentais. Para Tooley somente seres autoconscientes, portanto “pessoas”,
possuem o direito a vida. No entanto, podemos levantar outras razões para que
seja um mal matá-los, e é geralmente o que todos fazemos e concordamos.
Tudo isso nos leva a pensar se a vida
de um ser consciente e não autoconsciente possui algum valor, e como comparar o
valor da vida deste ser com o valor da vida de uma pessoa. Devemos dar valor à
vida consciente?
A principal razão para se valorizar a
vida de um ser consciente é a sua capacidade de sentir dor ou prazer,
considerando amplamente tais termos, além do evidente significado físico.
Chamamos a isso, em todas as suas manifestações, de interesses, em um uso
bastante especializado do termo. Se nós, enquanto pessoas, valorizamos o prazer
que a vida é capaz de nos proporcionar – o prazer de comer, de manter relações
sexuais, de estar livre para ir e vir – e valorizamos tais prazeres apenas em
si considerados, não apenas porque são “prazeres de um ser humano”, por que não
valorizar experiências semelhantes que os seres conscientes podem te,
independentemente de suas nomenclaturas? E se somos capazes de sofrer a dor de
uma pancada, um corte, se ser tolhidos de nossa liberdade e de nosso prazer de
viver, é evidentemente ruim aos nossos olhos, de modo que fazemos o possível
para poupar os demais seres humanos destes desprazeres, haveria justificativa
moral para não alargar nossa consideração ética a todos os seres capazes de
sentir o mesmo, na medida em que sentem o mesmo?
É justificado, pelas diferenças
apresentadas acima, julgar que haja um mal maior em se matar uma “pessoa” do
que um ser que não seja uma ”pessoa”. Mas, como vimos, se  ser da espécie
humana não garante o status de pessoa, cabe perguntarmos: algum animal
não-humano pode ser uma “pessoa”, ou seja, um ser que seja racional e tenha
consciência de si mesmo como entidade distinta, com um passado e com um futuro?
Em uma pesquisa Allen e Beatrice
Gardner conseguiram ensinar a linguagem de sinais dos surdos americanos a um
chimpanzé, em frente ao um espelho. Quando perguntado sobre o que via, o animal
não-humano respondeu prontamente que via a si mesmo. O mesmo resultado foi
encontrado em gorilas. Sobre a noção de tempo, chimpanzés, gorilas e
orangotangos, que aprenderam a linguagem de sinais, também usaram sinais para
comunicarem que eles se lembravam de acontecimentos no tempo, como o dia do
aniversário e a época em que os cientistas montavam a árvore de natal.
Tudo isto demonstra a fragilidade do
raciocínio especista, que procura desensibilizar a capacidade natural de
empatia dos seres humanos ante a estes fatos, para defender, em busca de
maiores benefícios pessoais, que somente interesses de seres humanos merecem
consideração ética, independentemente da consciência e da autoconcienciencia
que os demais animais possam ter.
O humanismo é uma filosofia que
valoriza a tomada de decisões morais não baseada em conceitos
pré-estabelecidos, sendo que, no caso dos obstáculos à uma ética geral,
universal, inter-específica, a maioria destes conceitos foram originados quando
a ciência conhecia pouco sobre as capacidades animais e  ainda se
acreditava que uma divindade haveria criado tudo o que existe, em todo o
universo, para nossa livre exploração e exclusivo fruto. O Humanismo defende
que nossas decisões éticas sejam tomadas através da razão e da empatia – o
considerar o interesse de outro como se fosse seu – e, neste sentido, não há
lugar para o especismo – nem para qualquer tipo de discriminação ou privilégio
de posição – na filosofia Humanista Secular, sob pena de fazer ruir, pela
incoerência, as bases do seu próprio pensamento.
 A capacidade
de sentir dor ou prazer como marcador ético não-especista.

Ser capaz de sentir dor ou prazer – aqui considerados de modo amplo como
sinônimos de mal-estar ou bem-estar, ou seja, condições que o próprio ser
valora positiva ou negativamente, que aprecia ou rejeita) é um pré-requisito
necessário para pensarmos nos interesses individuais de qualquer ser. Não faria
sentido falar dos interesses de seres que não podem sofrer pelo mal-estar ou
usufruir do bem-estar, porque nenhuma ação que podemos tomar poderá resultar em
alteração do seu nível de bem estar.
Considerando apenas a dor física,
que, sem dúvida, percebemos pela própria experiência humana como indesejável,
nós, humanos e outros animais, tais como porcos, vacas, cães, aves, dentre
outros, somos praticamente iguais. A área do nosso sistema nervoso ligada a
percepção da dor (diencéfalo) é antiga em termos evolutivos e basicamente
equivalente à de outros animais – especialmente mamíferos e aves. Se somos
iguais na dor, haveria justificativa moral para não se considerar a dor de
outro ser,  mesmo que de outra espécie? Mesmo que tal ser possua 
capacidade racional diferente?

O princípio da igualdade de consideração de interesses exige que o nosso
sofrimento seja igualmente considerado em comparação com outro sofrimento
semelhante, ainda que tal sofrimento seja de um animal humano de outra etnia,
de outra cor de pele, de outro sexo, ou ainda, de que seja de um animal
não-humano. Qualquer outra característica que não a capacidade de sentir dor
que tomarmos para julgar a questão, sob a ótica da igual consideração de interesses,
seria arbitrária e inadequada
. Se escolhermos a racionalidade como marcador,
não só excluímos da nossa reflexão ética a consideração de espécies diferentes,
como também excluímos pessoas com deficiência mental grave. Se escolhermos a
cor da pele excluímos pessoas de cor diferente a nossa. A capacidade de sofrer
é um imperativo para se deduzir quaisquer interesses no que se refere à geração
e imposição de sofrimento.

Algumas pessoas ficariam ofendidas ao ser colocadas lado a lado com racistas e
sexistas por privilegiarem os interesses de sua própria espécie,  uma vez
que não julgam que algo tão tradicional e socialmente praticado como a
desconsideração dos interesses e a imposição de sofrimento aos animais
não-humanos seja algo digno de cogitação.  No entanto, isso ocorre, como
lembra Peter Singer, em sua obra “Ética Prática”, porque: 

Os racistas violam o princípio da igualdade, atribuindo maior peso aos
interesses dos membros da sua própria raça quando existe um conflito entre os
seus interesses e os interesses daqueles pertencentes a outra raça. Os sexistas
violam o princípio da igualdade ao favorecerem os interesses do seu próprio
sexo. Da mesma forma, os especistas permitem que os interesses da sua própria
espécie dominem os interesses maiores dos membros das outras espécies. O padrão
é, em cada caso, idêntico.


Porque falamos de igualdade de interesses e não
de direitos? Tomemos o exemplo do movimento feminista. As mulheres têm 
interesse no direito de abortar uma gravidez indesejada, não faria sentido
conceder o mesmo direito aos homens, que não são capazes de usufruir do
bem-estar que tal direito a eles traria. Por esse mesmo motivo devemos
considerar que é do interesse de cães – mesmo que eles não verbalizem ou
reivindiquem tal interesse- não serem abandonados nas ruas, pois isso lhes
causa sofrimento, mas não faz sentido defender que possuem o direito de
vestirem-se como nós, pois isso não tem implicações para o seu bem estar como
tem para os humanos.

Dentre os obstáculos a um movimento de
libertação animal, assim como o movimento negro, das mulheres e outros, está à
ideia de nós, seres humanos, somos fundamentalmente distintos de outras
espécies em um nível primordial. A nossa linguagem carrega esta ideia
equivocada: consideramos animais desde chimpanzés a ostras, e pessoas nós, seres humanos – mesmo que estejamos em termos evolutivos ou comparativos muito
mais próximos do chimpanzé do que o chimpanzé das ostras. Mesmo que
identificássemos um marcador claro entre nós e os outros animais, dificilmente
este marcador teria conteúdo ético, isto é, em nada justificaria ignorar o
sofrimento e infligir dor desnecessária aos nossos semelhantes. Outro obstáculo
está no fato de que os animais não-humanos, apesar de manifestarem seu
sofrimento  de forma muito semelhante à nossa, não podem se organizar para
defender seus interesses. E um terceiro fator, particularmente grave, é que
outro grupo de animais passíveis de interesses – nós, humanos – somos
beneficiários diretos da opressão dos demais, tal como os senhores de escravos
do passado (os quais racionalizavam basicamente os mesmos argumentos dos
especistas de hoje, como superioridade, utilidade, necessidade, tradição) se
beneficiavam da desconsideração de interesses de outros seres arbitrariamente
considerados como “diferentes”.  E, sabidamente, somos bastante relutantes
em questionar situações que nos beneficiam.

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