Preconceito e descaso policial na ameaça de morte pública

Eu e meu marido somos muito diferentes das pessoas do bairro onde moramos, é inegável. E o fato de dizermos abertamente que somos ateus, de não termos filhos aos quase 30 anos de idade, termos tatuagens e cabelos coloridos, chama atenção dos vizinhos. Muito mais do que eu gostaria, aliás.

As casas do bairro são germinadas. Isso significa que as casas têm paredes coladas. Isso significa muitas chamadas policiais por perturbação da paz.

Meu vizinho do lado já havia reclamado porque ouve muito barulho vindo da nossa casa. Dormimos tarde e ficamos conversando e assistindo à televisão até 2:00 AM. Note bem que essa “reclamação”, na verdade, era feita pelo vizinho esmurrando a parede que dividíamos e berrando palavrões para nós. Mesmo com a grosseria, sempre prestamos muita atenção a baixar o som da TV e das conversas depois das 22 horas. Baixamos um aplicativo no celular de decibelímetro, para saber se fazíamos tanto barulho assim: Do lado da fonte do barulho (a TV ou nossa voz) o decibelímetro não passou de 70. 

Então, duas vezes mais o vizinho nos xingou. Cheguei até mesmo comentar com a vizinha da frente que ele estava nos xingando e esmurrando a parede. Ela disse que ele a incomodava muito mais, pois colocava som alto domingo a tarde no carro e ninguém conseguia assistir televisão. Concordamos que ele era muito agressivo e alterado.

Num outro dia, a mulher desse vizinho veio ao nosso portão e explicou com calma seu lado da história. Conversamos civilizadamente. Eu disse que entendia o lado dela e que eu não estava fazendo nada especialmente barulhento, que se tratava de uma falha estrutural das nossas casas. Então, eu disse que tomaria algumas providências (mudar a cama da parede que divido com o quarto deles, diminuir o volume da TV – só assisto coisas legendadas depois das 22 horas) e disse que eu precisava que ela me desse um feedback para eu saber se o problema tinha sido resolvido. 

Alguns dias depois, essa vizinha veio e disse que estava muito melhor. Combinamos que, se houvesse algum problema, ela daria três soquinhos na parede, para sabermos que havia o incômodo com algo e podermos abaixar volume, se necessário.

E assim ficou, eu e meu marido achando que estava tudo bem e que eles não estavam mais incomodados. Isso até ontem.

Ontem, às 2 horas da manhã, o vizinho veio ao meu portão gritando. Chutava o portão, atirava objetos para dentro da minha garagem e chamava a mim de “puta velha” e ao meu marido de “viado vagabundo”. Fez uma gritaria na rua e alguns vizinhos vieram para a frente de suas casas ver a bagunça. Ele repetia, falando com o meu marido “Você não é homem, não? Vem aqui para fora se você for homem que eu vou acabar com você!”. Meu marido apenas ignorou. Nesse momento, eu liguei para o 190 e expliquei o que estava acontecendo. Disse que o vizinho estava a atirar coisas na nossa casa, chutando o portão e nos ameaçando (No momento ele estava dizendo “Vem vocês dois aqui para vocês verem!”). Minha pressão subiu a ponto de eu achar que eu ia ter um infarto. Comecei a passar mal e meu marido chamou os bombeiros também. 

Cinco minutos depois, uma viatura da PM aparece na frente de casa. O vizinho havia saído no carro dele coisa de 2 minutos antes. Os policiais procuravam pela vizinha, mas acreditei que nós duas teríamos ligado pedindo a presença policial e teriam mandado apenas um carro, o que já era suficiente mesmo. Os policiais ouviram primeiro à vizinha. O marido dela estaria na delegacia, prestando queixa. Ela xingava e ameaçava e chutava o portão mesmo na frente dos policiais. Quando ela terminou de falar, eu expliquei o meu lado da história. O vizinho da outra casa, que não gosta de mim por conta de eu pedir para ele abaixar o som do carro com freqüência, começou a gritar também. Confirmou que nós fazíamos muito barulho. Porém, tudo o que ele disse é que nós abrimos e fechamos portas. O que estava sendo questionado ali era nitidamente pessoal. Ninguém chegou a falar que nós falamos alto ou que o som da TV é alto. Apenas diziam coisas como “eles dormem muito tarde” ou “eles não trabalham” ou “eles mudaram há X meses e ainda têm caixas de coisas na garagem”. Eu fiquei bastante chocada com de fato não haver nenhuma acusação de barulho de fato, exceto quando a vizinha falou algo sobre parecer que tem um pedaço de madeira batendo na parede do quarto dela, o que eu não tenho ideia do que pode ser, uma vez que não há nada encostado na parede.

Na frente dos policiais eu perguntei sobre o fato da ameaça física que o marido dela me fez. Eles disseram que eu deveria ir à delegacia fazer o BO. Eu fiquei com medo de ir porque o tal vizinho estava lá e expressei esse meu medo aos policiais. E essa foi a hora que as coisas começaram a ficar estranhas. A vizinha falou, com todas as letras, na frente dos policiais, a seguinte frase: “É bom você ficar com medo mesmo, porque do jeito que ele é, se ele te encontrar na rua, ele te mata!”. Chamei atenção dos policiais para o que ela havia dito, eles não deram muita atenção e disseram que eu deveria abrir o BO na delegacia. Fui com eles até lá (bem perto da minha casa, só fui com eles porque eu fiquei com medo de encontrar o vizinho armado pela rua e sofrer, como tanto ele e a mulher dele juraram abertamente, algum ataque.

Ao chegar na delegacia, o vizinho estava lá fazendo o BO. Ouvi uns 10 minutos de discurso de um policial que estava com muito sono (bocejando o tempo todo) sobre como nós deveríamos (apenas eu e meu marido) nos esforçar para manter a boa convivência na vizinhança. Depois que ele terminou o discurso dele é que eu consegui dizer sobre os danos físicos ao meu portão e as ameaças de agressão e homicídio feitas por ele e pela mulher dele. Agiu como se nada fosse. Eu falei sobre meu medo de voltar para casa sendo que meu vizinho e vizinha deixaram tão claro que pretendiam me atacar. Ele disse que tudo o que ele poderia fazer é mandar o BO para a justiça. Ainda na delegacia, o vizinho nos xingava muito. Dessa vez, por causa do nosso português correto. (!!!) O policial não leu o que havia escrito na ocorrência mesmo depois de eu pedir. Em alguns momentos, quando eu falava que tinha medo de voltar para casa sem saber do que o vizinho poderia fazer, ele apenas dizia “Relaxa, ele não vai fazer nada!”. Como ele poderia saber? Quem poderia me garantir?

Tive que voltar para casa sem receber absolutamente nenhum auxílio. Aliás, voltei o caminho todo a pé, pensando sobre como a ambulância que eu chamei para ir ao hospital antes da polícia chegar não apareceu nem deu notícias. Como estava muito nervosa e assustada, fiquei o caminho todo pensando que, se o vizinho nos atacasse com uma faca ou revólver, morreríamos na rua esperando a ambulância. 

*Em 2011 eu fui estuprada no lado de uma delegacia da polícia civil, às 21:30 da noite de um dos períodos de greve dos policiais. Entrei suja, assustada e chorando na delegacia. Disse o que havia acontecido. A policial que estava no balcão, sem nem mesmo levantar o olhar para olhar para mim, disse que a instituição estava de greve e que ela não podia nem mesmo registrar o BO. Me disse para eu conversar com os PMs que estavam do lado de fora da delegacia, que disseram que não podiam fazer a ronda porque não estavam na área deles. Quase 20 dias depois, a polícia civil voltou da greve e eu fui fazer o BO para poder fazer 2a via dos meus documentos. Daí os policiais quiseram me forçar a fazer um retrato falado. No dia que o ataque aconteceu, eu sabia com certeza o rosto do agressor. Vinte dias depois, eu recalquei completamente essa informação. Eu não conseguia lembrar! Um policial civil do departamento de identificação me ligou duas vezes e ficou num discursinho de “Você não quer ajudar a polícia a pegar esse cara? Você tem a obrigação de fazer isso!” até eu chorar e desligar na cara dele por não agüentar mais. Nesse período eu me sentia tão deprimida que comecei a me cortar. Meu corpo é cheio de cicatrizes por conta dessas coerções que eu sofri dos policiais que deveriam me proteger.

Qual a impressão que eu devo ter da polícia, frente essas experiências? Como me defender? Eu não sei a quem recorrer e me sinto deprimida por não poder contar com nenhum órgão que me dê acesso à justiça ou segurança contra o que a polícia fez comigo nessas duas ocasiões. Estou traumatizada e não consigo sair de casa.

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