Religião e estupidez no Brasil – Paulo Ghiraldelli

Um excelente texto de Paulo Ghiraldelli, vale a pena a leitura.

Homero

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Religião e estupidez no Brasil

09/08/2011

Sílvio Santos perguntou para uma garota o signo dela. Prontamente, ela respondeu “sou evangélica”. Sílvio riu gostoso! Eu não ri! Eu senti ali que o Brasil vai por um caminho perigoso.

Sim, acreditar em horóscopo é “paganismo” para os evangélicos. Eles não podem fazer como todos os outros brasileiros que, enfim, lêem horóscopo, sabem seus signos e se divertem com a crença em algo que é como acreditar em premonição de uma avó ou tia. Acredita-se sem levar a sério, ou leva-se a sério sem acreditar.

Ter crenças mágicas é algo de quase todos nós, por mais escolarizados que possamos ser. Faz parte de nossa cultura. É mais ou menos como acreditar em Papai Noel quando se está saindo da fase propriamente infantil: acredita-se e desacredita-se ao mesmo tempo. Acreditar em alguma coisa que, conforme ficamos mais velhos e mais escolarizados, foge do bom senso, se traz algum conforto psicológico, não é difícil de ocorrer. É como acreditar em “trabalho” para “trazer o amor de volta”. No desespero de causa, é um alívio psicológico imenso poder lançar mão de um conforto psicológico não racional. Há dezenas de confortos psicológicos desse tipo. Mas o  horóscopo nem é mais isso, é uma brincadeira mesmo.

Uns tem conforto psicológico com magias e outros com religiões. Há os totalmente laicos, que podem conseguir isso com a poesia. Cada um tem seu bálsamo para a alma, pois sem isso acabamos tendo de encontrar paliativos em drogas injetáveis ou tomadas por via oral. Nós humanos nos tornamos mais sensíveis que nossos parentes ditos brutos, e criamos uma vida chamada de civilizada que, enfim, não suportamos. Temos que crer em mágicas ou alguma coisa que se aproxime delas, em diversos graus, para enfrentarmos uma sociedade que, na verdade, como disse Weber, é “desencantada” e não permite no seu funcionamento  estrutural nenhuma mágica.

Eu posso entender as pessoas que levam a vida fazendo simpatias contra verrugas, vendo Saci Pererê no quintal ou rezando para Santo Antonio lhes conseguir um marido.  Entendo e respeito. Não tenho problemas em viver no meu país. Sou filósofo, mas tenho lá meus estudos de antropologia! Todavia …

A menina evangélica, ao responder para o Sílvio Santos, trouxe-me uma informação drástica. Ela mostrou que a sua religião não está em disputa com outros cristianismos e, sim, em disputa contra as religiões pagãs, as religiões mágicas.  Pois, ao tomar a Bíblia ao pé da letra, os evangélicos acabaram se colocando no âmbito daquilo que a religião cristã, já no seu nascedouro, quis evitar, a saber, sua classificação como religião que estaria no mesmo nível das religiões pagãs.

A religião cristã católica (e algumas igrejas protestantes a seguiram nisso) criou a teologia e, para ajudá-la, manteve viva a filosofia. A teologia tinha uma idéia básica: Deus está em um outro mundo, não nesse mundo. Ele não pode ser conhecido, mas podemos ter contato com ele pela fé. Mas Deus poderia ser admitido (que não é o que é conhecido e nem o que é dado pelo contato da fé), também, por mecanismos não empíricos. Por isso mesmo, todas as “provas” da existência de Deus, feita pelos santos católicos que foram grandes filósofos – Santo Anselmo, Santo Agostinho e Santo Tomás –, nunca foram provas como as da ciência moderna, é claro. Foram demonstrações lógico-linguísticas ou então raciocínios linguísticos. Isso garantiu à religião católica sua sobrevivência diante dos intelectuais. Assim agiram, também, os protestantes cultos. É claro que tanto entre os protestantes cultos quanto nos pontos mais altos da hierarquia católica a ordem sempre foi a de fazer uma certa vista grossa para com o modo da população não letrada entender a religião. Caso a população precisasse de mágica, não custava aqui e ali permitir algum milagre. Mas isso nunca se tranformou em ortodoxia.

Agora, as igrejas evangélicas, especialmente no Brasil, romperam com isso. Como elas fazem mágica, competem com as religiões que não estão mais em concorrência, o paganismo! Não se trata do paganismo afro, que disputa terreno com eles, mas valendo-se de outros mecanismos, mas o paganismo do passado, coisas que ninguém mais toma como religião. Daí a incapacidade da garota de entender a pergunta do Sílvio Santos. Ela foi ensinada a dizer que não acredita em horóscopo porque é evangélica. Uma pessoa não evangélica, desatenta, diria: “essa menina é boba?” Essa seria uma observação válida!

Bem, mas qual o resultado disso tudo, para nós, os que estamos de fora desse meio religioso? Devemos dar de ombros e ficarmos quietos, respeitando nossa postura liberal-democrática que afirma e defende a liberdade de religião no Brasil? Ou temos algo com que nos importar?

Não estou dizendo que temos de romper com nossa crença liberal e começar a criar dificuldades para os evangélicos, ainda que eles não se cansem de criar dificuldades para os brasileiros que não são evangélicos (os gays que o digam!). Longe de mim isso. Mas temos de pensar em algo que já passou da hora de pensarmos. A questão é a seguinte: uma das virtudes mais importantes de nosso aparato de cognição individual é a capacidade de interpretar. Ler e interpretar é algo ensinado na escola. É cobrado. É uma habilidade altamente valorizada em todos os exames internacionais pois, afinal, é algo extramemente útil na vida moderna. Mas, e se as pessoas são educadas a não mais interpretar? E se as pessoas, já em tenra idade, começam a ser incentivadas para eliminarem qualquer metáfora, qualquer figura de linguagem, como irão se portar no mundo? Poderão elas cantarem, escrever poesias, admirar um quadro, entender uma bula de remédio? É difícil. Pois é isso que a educação evangélica faz: ela desestimula a interpretação. Não é que ela diz que só a Bíblia deve ser lida literalmente. Ao ensinar a menina evangélica a não entender que pode acreditar no horóscopo em um nível que não é a da sua crença religiosa e que, portanto, não há problema em dizer seu signo e sua religião, as igrejas evangélicas estão indo longe demais. Estão simplesmente emburrecendo os jovens. Estão indo para além de afirmarem que há só uma leitura da Bíblia. Estão começando a sugerir que há só uma leitura correta a respeito de todo e qualquer texto, de todo e qualquer acontecimento. Isso é perigoso. Caso isso não seja revertido, podemos ter, dentro de poucos anos, uma geração inteira incapaz de executar tarefas simples, pois terão perdido a simples capacidade de entender o que se lê. Haverá uma quantidade de analfabetos funcionais maior do que o país pode suportar.

Assim, não à toa, já hoje, pegamos alunos que não conseguem mais ler textos, mesmo tendo sido alfabetizados. Pois ler é, sempre, uma interpretação. Isso não quer dizer que não exista a leitura errada e a leitura certa. É claro que há. Pois o certo e o errado dependem dos objetivos que colocamos aprioristicamente para podermos avaliar os alunos ou avaliar qualquer pessoa que conta uma história. Agora, quando não se está avaliando, quando se está incentivando o aluno no aprendizado, em que ele precisa necessariamente de interpretar, pois se ele tomar qualquer palavra no seu sentido literal não irá entender nada, então, nessa hora, as igrejas evangélicas atrapalham. O que elas fazem com os jovens é triturar seus neurônios. Nesse caso, a liberdade religiosa que permite às igrejas pregar o que querem, começa a dar frutos ruins. Pois a pregação não está mais no âmbito do conteúdo dos assuntos, e sim no campo do estrago às funções cognitivas da juventude.

Quando uma garota não consegue mais entender que ela pode ler o horóscopo e acreditar nas tendências que diz o seu signo, e que isso é uma informação em um nível do âmbito do folclórico ou do divertido,  que não se trata de algo que concorre contra o cristianismo (ou, ao menos, não deveria ser), essa garota já não é mais uma moça desinformada historicamente, ela é uma pessoa que emburreceu de vez. Ela perdeu a capacidade básica para a leitura, que é saber que a leitura possui níveis. Ou seja, um texto não tem várias interpretações porque podemos dizer “cada cabeça uma sentença”. Se fosse assim, teríamos apenas um relativismo banal. Um texto tem várias interpretações porque um mesmo leitor pode criar várias visões do que está dito, e hierarquizar os níveis dessas visões de modo a poder usá-las nos seus discursos cotidianos segundo ocasiões e contextos.

Um ateu inteligente pode dizer “Vá com Deus” para o filho que vai à escola. Um religioso inteligente pode dizer para um colega que o está perturbando “ah, o diabo que te carregue”. Do mesmo modo que um protestante fervoroso, não burro, pode dizer, junto de uma tia católica, até de modo sério: “que sejamos abençoados pela Virgem Maria”. Esse “jogo de cintura” ajuda as pessoas a lerem uma história do Chapeuzinho Vermelho como um conto infantil ou como um conto que poderia, ao mesmo tempo, nos brinda com uma versão “psicanalítica”, onde a história seria, na verdade, a história de um homem pedófilo ou tarado, um amante da velha, que na ausência dela gostaria de fazer sexo também com a neta. O caçador bem poderia ser o corno da história, marido da velha. Ler isso assim, até de forma jocosa, não impediria ler de outra maneira. São sofisticações que vamos acumulando nas nossas formas de colocar camadas e camadas de interpretação sobre as leituras de nossos textos preferidos. Mas o estudante evangélico vem castrado já de casa. Ele só pode ler uma vez, e de forma literal. Ora, como a forma literal é um exercício de descrição, mas a própria descrição já é feita com a interpretação do pastor desescolarizado (ou pessimamente escolarizado, ou cheio de preconceitos) na igreja, então, quando o jovem chega na escola e é exigido dele uma atitude mais inteligente, ele tropeça.

Ora, se o tropeço desse jovem é individual, tudo bem. Mas se o tropeço desse jovem é coletivo e, pior ainda, se vários deles começam a achar que o professor ou a sociedade culta estão contra eles, aí é hora do estado intervir. É hora do estado pensar em convocar a sociedade para discutir o que está havendo. Pois a nação começa a correr perigo. Em poucos anos, ninguém mais poderá ser cidadão. Pois para ser cidadão é necessário o entendimento das leis. Com esse tipo de jovem, atrofiado mentalmente por causa de uma estranha fórmula de leitura que não é leitura alguma, o país todo pode estar assinando um cheque em branco para um destino perigoso.

Se olharmos o quanto ninguém mais passa nos exames da OAB, isso que acabei de dizer é mais preocupante ainda. É hora dessas questões todas serem colocadas publicamente entre as elites. É hora de encontrarmos religiosos inteligentes (eles ainda existem?) que tenham possibilidade de ajudar-nos a senão reverter isso, ao menos estancar essa forma de deseducação das muitas das igrejas evangélicas.  A Bíblia é sagrada? Pode ser, mas ela não foi feita para ser sacralizada pela burrice. Ela deveria ser uma fonte de histórias morais capazes de fazer cada um promover interpretações e interpretações, sem o aval de pastores que se dizem iluminados. Os pastores e as igrejas não podem ficar com o monopólio dos cérebros dos jovens. Isso pode tornar o Brasil um país inviável.  Um povo que não interpreta é um povo imbecilizado. A cidadania depende de gente que interpreta e reinterpreta. Só é cidadão aquele que lê a lei e pode dizer o quanto ela é precisa e o quanto ela é vaga. Estão tirando dos nossos jovens essa capacidade. Estão lhes roubando a cidadania. Isso é bem pior que o Golpe de 64.

© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ

 

http://ghiraldelli.pro.br/2011/08/09/religiao-e-estupidez-no-brasil/

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