Ofício 004/2012 – LiHS; disponível também na página do Senado.
Ao Excelentíssimo Presidente da
Comissão Temporária – Reforma do Código Penal (CTRCP) – Projeto de Lei do
Senado nº 236/2012 (PLS nº 236/2012)
Sr. Senador Eunício Oliveira
A Liga Humanista Secular do
Brasil (LiHS), associação civil de direito privado, de caráter humanista
secular, inscrita sob o CNPJ nº 10.376.530/0001-92, sem fins lucrativos, com
sede na cidade de Porto Alegre/RS, na Rua Duque de Caxias, 837/702, Centro
Histórico, cujo escopo consiste basicamente na busca de um “(…) Estado verdadeiramente laico, no qual
as decisões políticas, administrativas, legislativas e judiciais não sejam
influenciadas por doutrina ou dogmas
religiosos, de uma forma que haja igualdade de oportunidades para a
existência de todas as crenças e convicções no espaço e poder públicos” (art.
2º, inc. VI, do Estatuto), vem por meio desta, atendendo ao chamado do Senado
por participação da população no processo de reforma do Código Penal (Projeto
de Lei do Senado nº 236/2012), solicitar que Vossas Senhorias se atentem para
os seguintes pontos do PLS n.º 236/2012, que nos parecem ameaçar direitos
fundamentais constitucionalmente protegidos:
1) O artigo 56, que lista os crimes hediondos, inclui o estupro,
inclusive o de vulnerável, repetindo dispositivo salutar do Código Penal
atual. No entanto, não inclui os demais crimes de natureza sexual, o que
se revela problemático em face da definição de estupro do anteprojeto,
mais restrita do que a presente no atual Código Penal. O anteprojeto considera
estupro apenas a coerção para a cópula anal, vaginal e oral, tendo
criado tipos penais diferenciados para dar conta de outras violações
(p.ex: inserção e manipulação de objetos). No entanto, os demais crimes não
estão entre os definidos como hediondos, assim como não constam como hediondos
a exploração da prostituição, que muitas vezes assemelha-se a verdadeira
escravidão, e os crimes de natureza sexual cometidos contra crianças e
adolescentes, tais como a coação para participação em vídeos de sexo ou o
compartilhamento de imagens pornográficas infantis (Arts. 493 a 498). Todos os
crimes de natureza sexual têm graves consequências para a vítima
(principalmente tratando-se de criança), podendo deixar sequelas físicas e
emocionais para o resto da vida. Merecem todos o rigor que a lei reserva aos
crimes mais graves, principalmente o cumprimento inicial da pena em regime
fechado, tendo em vista a periculosidade das pessoas que os cometem.
Pleiteamos, portanto, a inclusão no rol de crimes hediondos de
todos os crimes contra criança e adolescente que tenham natureza sexual e de
todos os crimes contra a dignidade sexual, com exceção do assédio sexual.
2) O Capítulo VI, do Título XVI (“Dos crimes contra a humanidade”), incorpora as leis penais de
combate à discriminação ou preconceito motivado por gênero, raça, cor, etnia,
identidade de gênero ou orientação sexual, religião, procedência regional ou
nacional ou por outro motivo assemelhado, indicativo de ódio ou intolerância.
Embora seja louvável a ampliação do rol desses crimes para punir a
discriminação ou preconceito motivado por gênero, identidade de gênero ou
orientação sexual, incorporar tais leis no código não foi salutar porque tais
leis fazem parte de um subsistema que deveria ficar à parte, além de repetir os
tipos penais da Lei n.º 7.716/89, reproduzindo a inefetividade pública e
notória desta.
De qualquer modo, o preocupante nesse item é a absoluta ausência de
cominação de penas aos delitos, tampouco há remissão às penas de outros crimes.
Temos, em afrontosa violação ao princípio da legalidade, crimes sem penas. Na
versão do relator, observa-se a pena de 02 (dois) a 05 (cinco) anos e multa no
crime do inc. VII, mas a versão apresentada no Senado não comina qualquer pena.
Por óbvio, nada impede que sejam apresentadas emendas para suprimir tal lacuna,
a qual, diante de tantos outros erros graves do projeto, não parece ser mero
acaso.
Outro
artigo extremamente problemático diz respeito ao inc. VII, o qual trata
exatamente das práticas e do “discurso de ódio” que incitam ou induzem o
preconceito e a discriminação. O referido dispositivo estabelece que constitui
crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito, pela
fabricação, comercialização, veiculação e distribuição de símbolos, emblemas,
ornamentos, distintivos ou propaganda que a indiquem, inclusive pelo uso de
meios de comunicação e internet”.
Ora,
tal inciso certamente foi redigido com a intenção de afastar a pecha de ofensa
ao princípio da taxatividade penal, contudo acabou por deixar condutas graves
fora do âmbito de alcance da norma.
Os espaços de formação de opinião nos quais o discurso de ódio e
outras ideias contrárias aos direitos fundamentais e aos ideais
democráticos protegidos constitucionalmente podem ser espalhadas e ir
muito além dos meios de comunicação e da internet.
As formas pelas quais o discurso de ódio e outras ideias
contrárias aos direitos fundamentais e aos ideais democráticos protegidos
constitucionalmente podem ser espalhadas vão muito além da confecção de
emblemas, mensagens, símbolos e publicações. A redação do anteprojeto não
contempla, por exemplo, a propagação do preconceito de forma verbal dentro de
sala de aula, a pregação de ódio nas praças públicas, as manifestações de rua
de cunho preconceituoso. De acordo com ela, o
o grupo neonazista que faça uma passeata pelas ruas promovendo o
racismo, a homofobia, a xenofobia, etc, não estará cometendo crime algum desde
que não porte nenhum emblema ou publicação defendendo tais ideias nefastas.
Torna lícito o ato de postar-se em praça pública, proferindo discurso racista,
homofóbico, misógino, de intolerância religiosa, de preconceito contra
portadores de deficiência, etc. Ou seja, é proibido pregar o ódio e a
intolerância por escrito, mas verbalmente não há problema, mesmo quando isso
aconteça dentro de espaços de formação educacional, ou na rua, espaço que é de
todos e onde todos deveriam sentir-se seguros.
Ademais,
ao contrário da lei atual, tal tipo penal prevê apenas um rol restrito de
práticas discriminatórias que constituem crime. Ou seja, qualquer forma de
discriminação além das constantes em seus incisos I a VI não será punida pelo
Direito Penal. Imagine-se, por exemplo, a inadmissível situação de tratamento
diferenciado a aluno negro em ambiente escolar, não prevista no artigo, que
menciona apenas o impedimento de “inscrição ou ingresso” em estabelecimento de
ensino. Imagine-se o impedimento de acesso ou tratamento diferenciado
dispensado em estabelecimento do sistema público de saúde. Imagine-se a
situação da pessoa que se recusa a alugar ou vender residência para outrem em
virtude de cor, gênero, orientação sexual, religião. Imagine-se a recusa de
atendimento por parte de servidor público, motivada pelo preconceito. Nada
disso encontra-se previsto no anteprojeto. Em virtude do grande número de
interações sociais presentes no cotidiano, é possível que o preconceito e a
discriminação manifestem-se em todas elas.
É inadmissível oferecer a grupos desprivilegiados a proteção
legal trazida pelo Direito Penal apenas em algumas áreas de sua vida. Equivale
a dizer que há algumas condutas discriminatórias que são menos graves, que não
merecem reprimenda legal, que são condutas relativamente aceitas pela sociedade
e pelo Estado (ao menos, suficientemente aceitas a ponto de não configurarem
crime). Nosso ordenamento jurídico atual define como crime “praticar, incitar
ou induzir o preconceito ou a discriminação”, redação suficientemente ampla
para abranger todas as condutas que violem o direito fundamental à igualdade e
à dignidade. Restringir o rol de condutas discriminatórias puníveis a um rol de
apenas seis incisos, tornando legais todas as demais, é incompatível com um
Estado que pretende promover o bem de todos sem discriminação.
3) O artigo 61 determina que as penas restritivas de direitos
substituem a prisão quando a pena aplicada for inferior ou igual a dois anos,
ainda que cometidos com violência ou grave ameaça. Tal artigo permite que não seja aplicada pena de prisão
para crimes de violência doméstica, o que é absolutamente contrário ao espírito
da Lei Maria da Penha, que proíbe, por exemplo, o julgamento de tais crimes no
Juizado Especial Criminal e a substituição da pena de prisão por penas
pecuniárias. A Lei Maria da Penha tem como principal objetivo a efetiva
proteção da mulher que sofre violência, o que não ocorrerá caso o agressor não
seja afastado do convívio social.
4) O artigo 257 (perturbação do sossego), que torna crime “fazer
gritaria ou algazarra”, exercer “profissão incômoda ou ruidosa” e “não impedir
barulho de animal do qual se tem a guarda” apresenta diversos problemas, a
começar por tratar-se de tipo penal por demais vago. Tal artigo coloca em risco cidadãos que saiam às ruas para
exigir seus direitos e expressar suas opiniões, pois tal ato poderia ser
classificado como “gritaria ou algazarra”, o que vai de encontro ao direito
constitucionalmente garantido de livre expressão e associação. Da mesma forma,
o artigo não especifica o que vem a ser “profissão incômoda ou ruidosa”, o que
viola o direito ao livre exercício profissional, garantido pela Constituição, e
torna vulneráveis grupos já desprivilegiados, como profissionais do sexo,
artistas de rua, camelôs e feirantes. Tal criminalização de qualquer conduta
“incômoda”, não definida pela lei, é incompatível com um Estado democrático de
Direito, pois a condenação depende da interpretação absolutamente subjetiva da
autoridade policial, do representante do Ministério Público e do Juízo.
Ademais, há margem para aplicação seletiva da lei, pois há mais
chance de persecução penal de condutas praticadas em áreas
desprivilegiadas da cidade ou por membros de grupos vulneráveis. Salientamos
ainda o fato de que as condutas descritas em tal artigo, principalmente a que
diz respeito ao cuidado de animal do qual se tem a guarda, dão margem a que a
lei seja utilizada como arma entre pessoas que tem entre si um
desentendimento pessoal, levando a polícia, o Judiciário e o
Ministério Público a empregar tempo e recursos arbitrando, p.ex: querelas entre
vizinhos por conta de animais barulhentos, um inaceitável desperdício de tempo
e recursos públicos, principalmente considerando o quanto o Judiciário
brasileiro encontra-se sobrecarregado.
Pleiteamos, portanto, a supressão do artigo 257 e de qualquer
tentativa de criminalizar as condutas ali descritas.
5) O
artigo 424, que torna crime “pichar ou conspurcar edificação ou monumento
urbano” é também tipo penal por demais vago, já que não define o que configura
o ato de “conspurcar”. Novamente, a avaliação do que é ou não crime
passa a depender exclusivamente do entendimento subjetivo da autoridade
policial, do promotor, do juiz, gerando preocupante e nociva insegurança
jurídica à população, que ficará sem saber se a colagem de um cartaz, se a
arte, se a intervenção urbana, tornaram-se crime. Ao dar margem à criminalização
da colagem de cartazes, dos desenhos, da arte, tal artigo viola o direito à
comunicação, livre expressão e informação. É importante lembrar que as ruas da
cidade são muitas vezes utilizadas para divulgação de negócios, por meio de
comerciantes e prestadores de serviço que não dispõem de outros meios para
divulgar sua profissão.
Ameaçar tal ato com sanção penal
é criminalizar a própria subsistência. Muitíssimo importante observar também
que o artigo especifica que não configura crime o grafite realizado com
autorização do proprietário do imóvel, porém não dá a este a prerrogativa de
permitir o uso do muro de sua residência para nenhuma outra atividade, o que
pode levar à absurda conclusão de que alguém pode ser punido por dispor de sua
propriedade, permitindo que terceiros nela intervenham. A preservação do espaço
público já é realizada por meio de leis municipais, que estabelecem sanções
administrativas nos casos apropriados. Há outras formas de preservar o
patrimônio público que não exigem o dispêndio de tempo e recursos das
polícias e do já sobrecarregado Poder Judiciário. Há de se observar ainda
que a pena máxima prevista para tal conduta (01 ano) nos parece por demais
elevada quando comparada a outras sanções estabelecidas no projeto, tais como
as penas mínimas para o crime de lesão corporal (06 meses) e molestamento
sexual sem violência ou grave ameaça (01 ano).
Pleiteamos, portanto, a
supressão do artigo 424 do anteprojeto e de qualquer tentativa de criminalizar
as intervenções no espaço urbano. Caso tal artigo seja mantido, pleiteamos que:
caso a intervenção aconteça em imóvel particular, a ação seja privada, só se
procedendo mediante queixa do proprietário do imóvel; o artigo especifique que
não configura crime a afixação de cartazes ou outras formas de intervenção
urbana com fins educativos, sociais, artísticos ou para divulgação de comércio
ou prestação de serviços; a pena máxima seja fixada em não mais do que 05
meses, visando evitar desproporção entre ela e as sanções mínimas estabelecidas
no Código para condutas dotadas de maior lesividade.
6) Os crimes contra a propriedade imaterial tem penas
absolutamente desproporcionais à sua gravidade, havendo previsão de
sanções muito superiores às propostas para condutas que lesam bens
jurídicos dignos de maior proteção, como se pode observar:
a) A violação ao direito de marca (Art. 177) tem pena de 01 a 04
anos. A pena mínima é maior do que os crimes de lesão corporal e furto (06
meses) e pena máxima maior do que a pena mínima para molestamento sexual sem
violência ou grave ameaça (02 anos), roubo (03 anos), lesão corporal em 2º grau
(02 anos) e em 3º grau (03 anos). Ou seja, a pena mínima para quem furta, por
exemplo, uma bolsa, lesando o patrimônio de sua proprietária, é menor do que a
pena de quem vende uma bolsa com violação de direito de marca (p. ex: com
falsificação de logotipo de uma marca conhecida). Uma pessoa que agride a
integridade corporal alheia terá uma pena mínima menor do que a de alguém que
vende um tênis com violação ao direito de marca. É um absoluto contrassenso,
pois a propriedade imaterial é alçada a um patamar de proteção superior à
propriedade não imaterial e à integridade física, um dos direitos mais
fundamentais do ser humano. O mesmo se dá quando se comparam as penas máximas.
No ordenamento jurídico proposto pelo anteprojeto, a lesão corporal mais grave
(p. ex: que ameace a vida ou cause perda de membro ou deformidade permanente)
ainda é menos grave do que a violação do direito de marca. O
molestamento sexual mais grave, desde que praticado sem violência ou grave
ameaça (como os cometidos rotineiramente por homens que aproveitam-se do
anonimato proporcionado pelo transporte coletivo superlotado para violar a
dignidade sexual alheia, o que motivou inclusive a criação de vagões de trem
separados para mulheres no RJ) é ainda menos grave do que a violação do direito
de marca. A pena máxima é igual à de abandono de incapaz e furto com o uso de
explosivo (04 anos). Ora, é sabido que a lei não pode levar a conclusões
absurdas, no entanto é exatamente isso o que se depreende da leitura do
anteprojeto: A depender das circunstâncias, pode ser mais vantajoso roubar um
carro ou explodir um caixa eletrônico do que vender uma bolsa com logotipo
falso. E os pais que se vejam em difícil situação financeira enfrentam as
mesmas consequências caso vendam produtos “falsificados” para
sustentar seu filho ou caso o abandonem na porta de um hospital.
b) Circunstâncias semelhantes ocorrem com a violação de direito
autoral (Art. 172), e suas formas qualificadas (§2º e 3º). Vender obra
intelectual com violação de direito autoral tem pena de dois a cinco anos. A
pena máxima é superior à de abandono de incapaz (04 anos)!!! Ou seja, a depender
das circunstâncias, é mais vantajoso furtar o acervo de filmes de uma
videolocadora (pena mínima: 06 meses) a vender cópias não autorizadas de tais
filmes (pena mínima: 02 anos). Não conseguimos imaginar em quais circunstâncias
a violação de direitos autorais pode ser tão danosa à sociedade e aos bens
jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico a ponto de merecer maior reprovação aos olhos da lei do
que o abandono de uma pessoa incapaz de defender-se e manter-se por si mesma.
No §
2º, merece aplausos a redução de pena para 01 a 04 anos, contudo mais uma vez
nada salutar foi o aumento de penas para o § 3º, sendo que as penas do CP
vigente merecem ser mantidas.
c) O mesmo se dá com a “violação de programa de computador”.
Usar um programa “pirata” tem pena de 06 meses a 02 anos, ou seja, é punido com
a mesma pena mínima quem furta um computador que tem instalados programas
originais e quem compra um CD “pirata” de programa de computador. Quem, por sua
vez, vende o programa incorre em pena de 02 a 05 anos. Ora, considerando que a
pena mínima para o crime de furto é de 06 meses e a máxima é de 05 anos, e a
pena mínima para o roubo é de 03 anos, tal artigo torna mais vantajoso o furto
ou roubo de computadores do que a venda de programas “piratas” para os mesmos.
A depender das circunstâncias, quem explodir a porta de uma loja de informática
e furtar os produtos à venda será apenado com mais brandura do que o
comerciante que vender um computador com um programa não-original, já que a
pena mínima para o furto com o uso de explosivos é de 04 anos.
Cabe lembrar ainda que, enquanto o furto e o roubo efetivamente
diminuem o patrimônio da vítima, os crimes de “pirataria” não o fazem: o
patrimônio do autor da obra ou do detentor da marca não é diminuído
simplesmente porque seu produto é colocado à venda sem sua autorização. É falacioso,
aliás, dizer que o detentor do direito autoral deixa de adquirir patrimônio,
pois na maioria das vezes, quem adquire o produto pirata o faz por não ter
condições ou interesse de adquirir o produto original (quem compra uma bolsa
com um logotipo falso por R$ 30,00 dificilmente compraria uma bolsa original da
mesma marca, que custa R$ 150,00). Ou seja, a violação de direito autoral em
geral sequer causa lesão ao bem supostamente protegido. Ademais, a venda de
produtos com violação de direito autoral é meio de subsistência de muitos
cidadãos, que se encontram à margem do mercado formal de trabalho.
Os artigos citados puniriam com mais rigor a pessoa que trabalha
vendendo produtos sobre os quais não possui direitos autorais do que aquela que
furta, rouba, lesiona, molesta sexualmente, abandona incapaz. É um
contrassenso! Os detentores de marca ou patente estão protegidos pelo Código de
Propriedade Industrial, que torna crime a violação do direito de marca ou
patente, e os detentores de direitos autorais estão amparados pela
legislação cível, que permite que tomem as devidas medidas legais contra quem
viola seus direitos. Não é necessário dispender dinheiro e tempo da polícia e
do Judiciário a fim de proteger tais direitos por meio da legislação penal, que
deve ser uma solução utilizada apenas em última instância, quando não há outros
meios possíveis para coibir a conduta indesejada.
Pleiteamos, portanto, a não inclusão dos crimes contra a
propriedade imaterial no novo Código Penal, tendo em vista a existência de
outras ferramentas legais, no âmbito cível e penal, à disposição daqueles que
tiverem tal direito lesado. Caso tais tipos sejam mantidos no anteprojeto,
pleiteamos que sejam adotados, para todos eles, as disposições adotadas pelo
Código de Propriedade Industrial no que diz respeito à violação de marca, ou
seja: que a ação seja de iniciativa privada, a ser proposta pelo detentor
dos direitos autorais violados (haja vista a absoluta falta de lesividade da
conduta à coletividade), a redução de pena para 03 meses a 01 ano ou multa, tal
qual hoje temos no CP, bem como supressão dos arts. 174-178 por ofenderem o
princípio de intervenção mínima.
7) O artigo 155, §1º, equipara a coisa móvel, para
fins de crime de furto, a energia elétrica, água e gás canalizados, e o sinal
de internet e de TV a cabo. A referência a água, energia elétrica e gás
canalizado penaliza a população mais pobre, que muitas vezes não tem sequer
acesso pelos meios legais a tais serviços, não fornecidos pelo Poder Público no
local onde moram. Nossos Tribunais Superiores vem
afirmando reiteradamente que água, gás e energia elétrica são serviços
essenciais, que não podem ser cortados por falta de pagamento. Não deve ser
tratado como criminoso quem, se vendo em difícil situação econõmica, utiliza
serviços essenciais sem pagar por eles, pois encontra-se em estado de
necessidade, excludente de ilicitude. A disposição relativa a sinal
de internet e TV a cabo contraria jurisprudência reiterada de nossos Tribunais
Superiores, que mantém o entendimento de que o sinal de TV a cabo não pode ser
equiparado a coisa móvel, e portanto sua utilização não constitui furto. As
companhias fornecedoras de água, energia elétrica e gás canalizado, assim como
as operadoras de TV a cabo e os provedores de internet, tem a sua disposição
outros meios legais para os casos de utilização de seus serviços sem pagamento,
não sendo necessário que o problema seja resolvido por meio do Direito Penal.
No entanto, caso seja mantido o §1º,, acreditamos que as penas para as condutas
nele previstas devem ser menores do que as relativas aos demais crimes de
furto, tendo em vista que a energia elétrica, a água e o gás canalizados são
serviços essenciais, e que a utilização sem pagamento de sinal de TV a cabo e
de internet não lesiona o patrimônio da companhia que os transmite, pois ele
não é diminuído. Pleiteamos,
portanto, que o artigo 155, §1º, preveja que, nos casos ali citados: só se
procede mediante queixa de representante da companhia detentora dos serviços; o
juiz pode deixar de aplicar a pena se: a) os bens furtados forem
água, energia elétrica e gás encanado, se as circunstâncias revelarem que o
furto se deu para atender a necessidades essenciais, o que se presume
quando não sejam fornecidos pelo Poder Público no local onde mora o
agente, ou b) quando o valor furtado for irrisório; o ressarcimento do dano
extingue a ação até o trânsito em julgado da sentença condenatória; a pena é
diminuída de um a dois terços quando o bem furtado está elencado no rol do §1º.
8) O
artigo 464 institui o tipo penal “transgenerização forçada”, ou seja,
forçar alguém a modificar o corpo para a aparência comumente associada ao
“sexo oposto”, a fim de induzir a pessoa à prostituição, assim como
abrigar a pessoa que teve o corpo modificado. Tal previsão
encontra-se no capítulo Crimes Contra a Humanidade, ou seja, tal ato seria
crime caso fosse cometido sistematicamente contra a população por uma
organização ou pelo governo brasileiro, o que torna ainda mais desnecessária e
suspeita a criação deste tipo penal, já que não há nenhum caso registrado em
que tal conduta tenha sido praticada, em qualquer lugar do mundo.
Ademais,
forçar modificação corporal em alguém, por óbvio, já é crime (lesão
corporal, a qual, no PLS
n.º 236/2012, seria de lesão corporal grave em terceiro grau, apenada com
prisão de 03 a 07 anos, a teor do § 3º, inc. I, art. 129). Tal
artigo pode tornar-se uma arma de intimidação contra pessoas que auxiliam
profissionais do sexo travestis e mulheres trans a realizar modificações
corporais. É sabido que muitos e muitas transexuais, devido aos entraves de
acesso ao sistema de saúde, contam com a ajuda de outros indivíduos – que,
em geral, são também transexuais e/ou pessoas de poucos recursos
financeiros – para realizar modificações corporais. Tais pessoas muitas
vezes também fornecem moradia às travestis e transexuais, principalmente às
profissionais do sexo. Considerando que muitas delas são marginalizadas e tem
pouco acesso à informação, podem ser levadas a acreditar que o que a lei proíbe
é o auxílio em qualquer modificação corporal e o fornecimento de abrigo a
qualquer transexual. Afinal, a definição do que são crimes contra a humanidade
não se encontra no artigo 464, e pessoas que auxiliam transexuais poderiam ser
extorquidas e ameaçadas com investigações a fim de supostamente descobrir se
cometeram “transgenerização forçada” contra alguma das pessoas
ajudadas por elas.
O
potencial que este artigo tem para ser distorcido e usado contra uma população
já desprivilegiada é muito maior do que qualquer proteção que ele ofereça à
população, afinal a possibilidade de que tal crime venha a ser praticado um dia
pelo Estado ou por uma organização é infinitesimal. Pleiteamos,
portanto, a supressão do artigo 464 do anteprojeto de novo Código Penal.
9) O
art. 470, que torna crime omitir-se tornar públicos ou de exibir à autoridade
administrativa ou judicial requisitante, documentos, autos ou partes de
processos, registros, informações e dados classificados como secretos, comina
pena de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. Além da desproporcionalidade da pena – no
delito molestamento sexual sem violência ou grave ameaça, a pena varia de 01 a
02 anos –, há as penalidades administrativas, cíveis e penais (crime de
desobediência, por exemplo) que punem suficientemente tal conduta. O Direito
Penal só deve ser utilizado em último caso.
Pleiteamos,
portanto, a supressão do artigo 470 do anteprojeto de novo Código Penal.
9) O
art. 471, por sua vez, fala que constitui crime destruir documentos públicos de
valor histórico com a finalidade de impedir o seu conhecimento pela sociedade.
A pena, que varia de 04 a 08 anos, é desproporcional, superando, por exemplo, a
lesão corporal grave em terceiro
grau (que resulte em aborto, incapacidade para qualquer trabalho; ou deformidade
permanente), apenada com prisão de 03 a 07 anos, a teor do § 3º, inc. I, art.
129.
Pleiteamos,
portanto, a supressão do artigo 471 do anteprojeto de novo Código Penal.
10)
A tipificação do terrorismo (art. 239) no PLS n.º 236/2012 se mostra problemática.
O termo “causar terror” é muito aberto: destruir um bem
público pode configurar terrorismo (art. 239, § 3º, pena de 8 a 15 anos) ou
dano qualificado (art. 163, § 1º, III, pena de 6 meses a 3 anos), o que irá
depender do “terror” causado. E como definir a presença ou o nível de “terror”
na população?
Pleiteamos,
portanto, seja acatada a emenda do Exmo. Senador Cidinho Santos, protocolada no
dia 26/09/2012 (fls. 771/788) referente a esse tipo penal.
11)
Embora mereça aplauso a iniciativa quanto aos temas polêmicos como homofobia,
eutanásia e aborto, no que diz respeito a este último se estabeleceu que pode
ele ser realizado até a décima segunda semana, desde que um
médico ou psicólogo constatem que a mulher não oferece condições psicológicas
de arcar com a maternidade.
Condicionar
a legalidade do aborto a prévia autorização médica em nada resolve o seriíssimo
problema de saúde pública causado pela ilegalidade do procedimento. Continuarão
sendo criminalizadas as pessoas mais pobres, que não tem recursos financeiros
para consultar um médico particular e dependem do precário e sobrecarregado
sistema de saúde pública. Considerando o espaço de tempo limitado no qual seria
permitida a interrupção da gravidez (12 semanas), sendo que a gestação em geral
só é conhecida cerca de um mês após a concepção, presume-se que muitíssimas
pessoas não conseguirão atendimento médico no prazo necessário para interromper
a gravidez legalmente. Ou seja, continuarão recorrendo a métodos perigosos e
clandestinos, continuarão prejudicando a saúde e até mesmo perdendo a vida e
continuarão deixando de procurar atendimento médico em caso de complicações ou
sendo maltratadas nos serviços de saúde quando o procurarem.
Além disso, condicionar a
interrupção da gravidez a prévia autorização médica impede que informação e
acesso a métodos simples e seguros de interrupção da gestação (como preparados
com ervas, por exemplo) sejam divulgados para a população que deles mais
necessita. Ou seja, o aborto de quem é pobre, adolescente, desesperada, continuará
sendo crime. Também nos preocupa a expressão “arcar com a maternidade”, pois
parece levar em conta apenas a criação do futuro filho ou filha, dando margem a
que se impeça uma pessoa de interromper a gestação quando tiver condições de,
por exemplo, oferecer a criança para criação por pais adotivos. Deve ser
incluída também a palavra “gestação”, já que ninguém deve ser forçado a
suportar contra sua vontade a gravidez e o parto, inclusive por serem condições
que podem trazer graves riscos à saúde e até mesmo à vida. Da mesma forma, há
que se pensar no estigma social imposto a quem leva a gravidez a termo, porém
opta por não criar o filho ou filha.
Pleiteamos que não configure crime a
interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana, sendo suprimido o trecho
legal que faz remissão a autorização médica para o procedimento. Caso tal
trecho seja mantido pleiteamos a substituição da expressão “arcar com a
maternidade” por “arcar com a gestação e/ou a maternidade”.
Esperamos,
com esta humilde contribuição, ter colaborado para melhorar o PLS n.º 236/2012,
um código de inestimável importância para a sociedade brasileira à medida que
representa um mecanismo de garantia dos direitos fundamentais de todos os
cidadãos e cidadãs do país, especialmente às vítimas e àqueles que estão sendo
processados ou cumprindo pena.
Atenciosamente,
Åsa Dahlström Heuser
Presidente
da Liga Humanista Secular do Brasil – LiHS