Religiosos não entendem que Estado laico beneficia a todos

Entrevista da presidenta da LiHS – Liga Humanista Secular do Brasil, Asa Heuser.

“Religião não deveria ser a base da moral”

Paulopes: Você é a presidente da Liga Humanista Secular do Brasil, entidade que defende a separação entre Estado e Igreja. O que os movimentos humanistas têm feito ou podem fazer para deter o avanço dos religiosos sobre o Estado laico?

Åsa: Os movimentos humanistas têm tido um papel importante de educação da sociedade — muitos religiosos não entendem que o Estado Laico é benéfico para todos. Eles vêm com essa história de que queremos um Estado ateu, etc, mas defendemos o Estado Laico. Exceto para os mais fundamentalistas que vislumbram benefícios com a ascensão do seu Estado Teocrático, o Estado Laico é benéfico para todas as religiões e também para ateus, céticos, livres pensadores etc. Temos que tornar essa informação disponível. E já fomos até ao STF para passar essa mensagem representados pelo nosso diretor jurídico, Thiago Vianna. A LiHS se fez presente na audiência pública sobre ação contra ensino religioso obrigatório nas escolas públicas e além desta ação as que tratam de obrigatoriedade de Bíblias nas escolas e/ou bibliotecas.

​Os militantes humanistas são muito ativos no mundo virtual. Como você avalia essa militância? Ela não lhe parece superficial e fechada em si mesma, falando somente​ para uma audiência que já é humanista?

É mais fácil falar para nossos pares, então é natural que o primeiro alvo do ativismo humanista seja seus próprios membros. Mas acredito que é importante tornar o conteúdo disponível para outras audiências. Essa é uma das missões da LiHS, mostrar que muitos valores humanistas são benéficos não só para ateus humanistas, mas para deístas e teístas moderados também.

Os humanistas costumam ser mais propensos a tentar encontrar uma base comum com religiosos moderados — muitas coisas do humanismo em si vieram disso. Num ambiente virtual cada vez mais vitriólico, separatista e estimulador de rivalidades, essa postura faz toda a diferença. Devemos estar dispostos a botar as cartas na mesa do debate público. Uma vez que se nota que podemos todos concordar com direitos humanos (que não exigem que se aceite ideias implausíveis sobre a origem da moralidade), mas não com mandamentos divinos, já estamos dando um exemplo de concessão moderada e de racionalismo ao mesmo tempo.

A própria Constituição já pode ser vista como um código ético independente de premissas religiosas, apesar da menção a Deus no preâmbulo (que foi abandonada na constituição do estado do Acre).

Os ativistas humanistas diferem bastante entre si, por exemplo, quanto às prioridades: alguns se dedicam mais a ceticismo e crítica racionalista, outros mais a proposições em questões como direitos humanos. Às vezes discordam veementemente, estrondosamente até. Mas o que os une são os valores fundamentais do humanismo: de que podemos confiar em nós mesmos para encontrar conhecimento e ética, não dependendo de auxílio sobrenatural.

Você acha que a maioria dos brasileiros sabe quais são valores humanistas? A mesma pergunta com outra formulação: se disser ao porteiro de um prédio que você é humanista, ele vai entender?

Provavelmente não, mas ele não vai reagir mal como poderia reagir se você usasse “ateu”, que tem mais estigma (que deveria ser dissipado), e não reagiria com confusão, como reagiria se você dissesse “agnóstico”.

A palavra “humanismo” vai soar positiva para o porteiro, vai significar para ele algo como uma postura amena, de boa vontade para com as pessoas. Prova disso é que até membros da bancada teocrática já alegaram que são “humanistas”. Há aí um pequeno fundo de verdade, porque em muitas situações a postura civil será a melhor para um humanista, embora não todas.

Essa ideia popular de “humanista” não é algo definidor de “humanismo”, da forma como usamos na LiHS, seguindo a IHEU [International Humanist and Ethical Union]. A IHEU tem 64 anos enquanto o cristianismo tem milênios, não é de se admirar portanto que a definição de humanismo que usamos, que é não teísta, não seja ainda popular no país. Mas, a julgar por alguns líderes religiosos que já usam “humanismo” pejorativamente, parece que é algo prestes a mudar.

O Brasil tem séculos de influência religiosa e, diferentemente de outros países com tradições mais seculares, há uma mistura incestuosa entre igrejas e Estado. Não é de um dia para outro que se consegue mostrar para o porteiro do prédio que o humanismo é uma visão de mundo racionalista, cética, não teísta, e que religião não deveria (mais) ser a base da nossa moral, mas estamos tentando.

Nos últimos anos, muitos jovens se assumiram como ateus. Tendo em vista que neste ano haverá eleições, por que, entre os candidatos, ninguém se habilita para receber esses votos, com a apresentação de um programa fortemente humanista?

É uma boa pergunta, mas tem a ver com o fato de que humanistas ainda são uma pequena minoria no país. É muito mais fácil se eleger se você pertence a um grupo – por exemplo, uma denominação religiosa – com milhões de pessoas.

Não que não sejamos também milhões, mas são milhões pouco organizados, pouco afeitos à organização institucional (pois confundimos institucionalização do humanismo com transformá-lo em religião). No caso dos políticos religiosos, além do número de seguidores, eles ainda costumam ter à disposição bilhões de reais, canais de TV e estações de rádio. E, como houve com certa denominação que tem o apoio do Eduardo Cunha, conseguem lobby político até para perdoar dívidas de centenas de milhões com o Estado.

Há uma disputa pelas mentes dos brasileiros, e nós precisamos saber que muitos estão dispostos a usar a arte da propaganda para arrebanhar mentes. Nosso apelo, que é menos propagandístico e mais pautado em argumentos (e deve ser assim), requer mais esforço da mente individual para ser digerido e absorvido.

Podemos ser otimistas e esperar que, com o tempo, as pessoas se cansem de propaganda e exijam que seus candidatos tenham propostas programáticas claras. Teve candidato nas últimas eleições que esperou até o último minuto para publicar o que estava propondo, se fiando apenas em carisma e propaganda. Essa faceta negativa da publicidade é inimiga da abordagem racionalista do humanismo, que exige análise de ideias, propostas. Quando os cidadãos se importarem mais com análise de ideias, prevemos que o humanismo terá influência real na política.

A presidente Dilma tem se submetido à pauta conservadora da bancada evangélica, cujos parlamentares fazem parte de sua base de sustentação. Apesar disso, mesmo neste momento de grave crise político-econômica, representações humanistas e ateias têm se mantido neutras politicamente, para não magoar seus associados petistas. Esse seria o caso da LiHS?

A LiHS procura ser neutra politicamente — até porque possui membros de todos os partidos. Não é missão da LiHS ser uma organização de esquerda ou direita e muito menos ser um partido político.
A LiHS critica ou apoia ações de pessoas, instituições ou partidos mas não pretende ser um partido. E, é claro, existe para defender os valores do humanismo. Esperamos que nossos membros estejam dispostos a transcender o corporativismo ideológico e partidário na defesa dos valores humanistas, pois é isso que ser humanista exige deles. Mas errar é humano e é normal que algumas pessoas humanistas fiquem cegas na defesa deste ou daquele candidato, deste ou daquele partido. Criticando-se mutuamente, humanistas devem descobrir sozinhos como se posicionar, e não devem esperar que a LiHS produza respostas tão específicas.

A LiHS existe para as generalidades, pois nenhuma outra organização tem essa missão explícita no Brasil.

Para as próximas eleições presidenciais ou no caso do impeachment, qual seria, do ponto de vista humanista secular, o melhor ou o menos pior dos potenciais candidatos que se tem até agora?

De novo, a LiHS não é um partido político ou um órgão de aconselhamento específico de postura política. Muitos dos argumentos que se pode usar para desaprovar que igrejas e líderes religiosos exortem seus seguidores a votar em determinada pessoa também valem para instituições humanistas. Entendemos que cada membro deve escolher, dentro da sua concepção de o que é melhor para seu município, estado ou país, seus candidatos. Isso costuma ter relação com a pauta do candidato em relação à questões sociais mas também tem relação com suas visões macroeconômicas, estratégicas, etc.

Podemos apontar ações que violam a laicidade, os direitos humanos, etc — como temos feito independentemente — mas não imaginamos que dividir a LiHS em dois ou três novos subgrupos ideológicos distintos seria benéfico. É Liga Humanista, não Liga Humanista Socialista ou Liga Humanista Conservadora, ou qualquer outra coisa do tipo. Nossa mensagem é propositalmente genérica, estamos aqui para dizer que existe vida com sentido sem religião.

Para finalizar, fale um pouco da LiHS. De sua história, atividades e projetos, quanto associados tem, endereços de contato, etc.

A LiHS foi fundada em Porto Alegre em 2010 e tem cerca de 3.700 membros, espalhados por todos os estados do Brasil. Tem atuação tanto virtual quanto no dia a dia, com ações em defesa do Estado Laico, representações junto ao Ministério Público, organização e participação de eventos e também em audiências no Supremo Tribunal Federal.

 Creio que nosso projeto mais bem-sucedido em organização foi o primeiro Congresso Humanista brasileiro em 2012. Somos conhecidos também por manter o blog Bule Voador desde 2009. Nosso mais ambicioso projeto virá em 2017: trazer pela primeira vez o Congresso Humanista Mundial ao Brasil.


Leia mais em http://www.paulopes.com.br/2016/03/religiosos-nao-entendem-que-estado-laico-eh-benefico-a-todos.html

A quem você pertence?

A quem pertence uma pessoa? Quem
pode dizer que é “dono” de si? Pode uma pessoa estabelecer relação de
propriedade sobre outra? Você pertence a si mesmo?

Estas podem parecer perguntas de
reposta intuitiva: “ora, cada um de nós pertence a si mesmo”, temos a tendência
natural de responder. E, de fato, tão natural é esta tendência que este
pressuposto – “uma pessoa pertence a si mesma” – é a base de importantes sistemas
filosóficos, que enxergam em tal proposição terreno sólido o bastante para
alicerçar o desenvolvimento de suas argumentações.

Mas quantas vezes paramos para
analisar a validade ou os princípios por trás de uma proposição que parece
tão elementar? Deveria ser assim – de um ponto de vista ético, “deveríamos” ter
a propriedade de nós mesmos? Muitas vezes, na história da humanidade – na maior
parte da história da cultura humana, para falar a verdade – indivíduos alegaram
ser titulares de uma relação de propriedade sobre outros indivíduos. E, segundo
argumentavam, “era melhor que assim fosse”. Por isso, não se trata de uma
simples questão de aceitar a obviedade da questão – pois ela não é óbvia –, devemos investigar
um pouco mais a fundo o problema: Você pertence, ou deveria pertencer em
decorrência de um imperativo ético, a si mesmo?
Como veremos, mais
importante do que responder satisfatoriamente esta questão, a própria
investigação dos princípios por trás deste assunto nos traz a percepção de uma série de
consequências, que nos forçam a repensar decisões às quais já estamos
acostumados e reavaliar nossas relações com os demais indivíduos.

Quem é uma pessoa?


Em primeiro lugar, vamos
delimitar corretamente os termos a ser utilizados, para não incorrer no erro de
argumentar sobre pressupostos e conceitos vagos. Se estamos investigando se uma
pessoa deve ser proprietária de si mesma (ou seja, delimitando o problema a uma
categoria específica de afetados – as “pessoas”) é natural que nosso primeiro obstáculo
seja definir o universo dos afetados por esta categorização, e porque este critério
de categoria, e não outro qualquer, é o relevante. Quem é, afinal, “uma pessoa”?

A linguagem comum costuma
associar o termo “pessoa”, a “um hominídeo da espécie humana”. A denominação da
espécie, família ou ordem, no entanto, embora possa ter utilidade para fins
taxonômicos, para fins de apreciação ética é completamente irrelevante. Uma
“pessoa”, e o fato de “ser pessoa”, devem ser definidos por critérios
objetivos: se o hominídeo humano é “uma pessoa”, ele é em razão de algo mais forte que um mero rótulo dado a uma espécie animal específica em função de uma particular condição genética.
Um critério frequentemente
invocado para dizer que um hominídeo da espécie humana é uma pessoa é o de
que a própria definição de “pessoa” gira em torno da semelhança que temos uns com
os outros. Estendemos o mesmo status status de pessoa – a todos os nossos
semelhantes, de modo que reforçamos, pela mútua proteção, um tratamento que
julgamos desejável a nós mesmos. Embora tal prática seja realmente útil, é um critério
bastante fraco: afinal, quem é nosso semelhante? E por que justamente “nosso” semelhante? Parece um tanto conveniente. O argumento não possui uma base universal, mas depende que o avaliador seja um
hominídeo humano, apenas uma das cerca de 9 milhões de espécies de seres vivos
do nosso planeta. Logo, é um argumento de posição privilegiada, não um
argumento ético baseado em princípios gerais: embora sirva aos propósitos de
assegurar certo status ao conjunto dos animais humanos, não possui valor universal. Uma demonstração da fragilidade de tais tipos de posicionamento baseado na conveniência para o proponente é o fato de que em um passado  bastante recente, por exemplo, os próprios humanos eram classificados em “humanos-pessoa
(quando a fronteira da classificação orbitava os humanos europeus, a quem era conveniente a mútua proteção proporcionada pelo status) e “humanos
não-pessoa
”. Ainda hoje o problema da definição por semelhança à posição
privilegiada persiste e exclui, ainda, os próprios humanos: no Oriente Médio, gays,embora sejam animais humanos, não são considerados “pessoas reais”, por não
compartilharem de certa característica arbitrariamente escolhida que os tornaria
“semelhantes” aos demais. Um recente e polêmico estudo médico, também se
firmando sobre um critério de semelhança com a posição privilegiada, argumentou
que bebês humanos recém-nascidos, embora certamente humanos, são diferentes dos demais humanos a ponto de não serem considerados “pessoas reais”, mas pessoas “em
potencial”, logo, não teriam direito moral à vida.
Abandonando argumentos de posição
privilegiada, racistas ou especistas, e correndo o risco de beirar a tautologia, parece
razoável afirmar que “uma pessoa” é “um ser dotado de personalidade”, de modo
independente de outras categorizações. Isso não é mero jogo de palavras: “personalidade”,
em uma primeira análise, é algo que “se possui”, em vez de algo que “se é” – logo,
um objeto, o que implica em ser algo identificável, observável e, por
consequência, delimitável, ao invés de um status subjetiva e arbitrariamente
atribuído – o que torna a tarefa de responder a questão inicial substancialmente
mais simples. E, se é algo que “se possui”, transmite ao seu possuidor o status
de “pessoa”, independente de quem o possua.
Mas qual objeto é esse, “personalidade”?
– afastando-se, novamente, do sentido que o senso e a linguagem comum dão a
esse termo (onde significa o “padrão de comportamento típico” de alguém), e
servindo-se de uma noção da psicologia – podemos dizer que a “personalidade” é
a “organização interna e dinâmica dos sistemas psicofísicos que criam os
padrões de comportar-se, de pensar e de sentir”, ou seja, é uma forma de
organização do ente que o habilita a perceber-se como porção delimitada do
universo, estabelecer a distinção entre “o eu” e “o mundo exterior” e conduzir
seu comportamento e relações do seu eu interno com o mundo exterior de acordo
com esta individualização. É um conceito que muito se aproxima da ideia de
individualidade – perceber-se e comportar-se enquanto indivíduo – e de
consciência – ter consciência própria, de si mesmo e de uma separação clara entre
si e o mundo exterior.
Assim, quando nos referimos aqui
a “pessoa”, o fazemos no sentido de “um indivíduo consciente” ou, ainda melhor,
no sentido de “uma consciência individual”. Vamos, então, resumir a definição de
pessoa como à “vontade consciente individual”, ou, como só o indivíduo pode ser
consciente, simplesmente como “vontade consciente”. Isso amplia nosso conceito
de “pessoa” para muito além do universo amostral dos hominídeos humanos, uma
vez que a larga maioria dos animais, independente da ordem, compartilha destes mesmos
atributos. Inclusive – e isso é profundamente interessante -, também alarga o
conceito para muito além do que consideramos “seres vivos”, já que o critério
vida” (outro conceito extremamente escorregadio) também passa a ser
irrelevante. Se uma hipotética máquina “não-viva” for suficientemente complexa a ponto de apresentar
tais características, consequentemente deve ser considerada como uma pessoa. Talvez este problema específico atinja uma relevância maior no futuro, e, hoje, seja rapidamente classificado como “irrelevante para efeitos práticos“: mesmo assim, um conjunto universal de princípios deve englobar situações presentes e futuras, mesmo que sejam imaginárias, e deve ser coerente e manter a integridade mesmo em tais demonstrações hipotéticas.

Uma pessoa pode pertencer a
alguém?




Uma vez que tenhamos um conceito
delimitado de pessoa, podemos avançar e nos dedicar à próxima questão: é
possível que uma pessoa pertença a outra? Para responder esta pergunta,
precisamos lançar luz sobre dois aspectos: o que define o pertencer (a relação
de propriedade) e, após, o que define quais entes podem ser ligados entre si
por relações de propriedade.
“Propriedade” é um conjunto de
direitos (“bundle of rights”) que uma pessoa tem em relação a um objeto. É um
conjunto de direitos complexo, divididos em dois subcampos: um conjunto de
direitos “positivos” (que permitem ao titular definir, de acordo com a própria
vontade, o uso que é dado a tal objeto) e,talvez o mais importante, um conjunto
de direitos “negativos” (que permitem negar a outros, que não o titular, o
direito de fazer o mesmo). É uma relação abstrata (ela não se baseia em um fato
físico da natureza), constituída de modo independente do fenômeno da posse (o
qual se refere ao ato e ao poder concreto, físico, de impor sua vontade sobre o
uso de um objeto). Uma pessoa pode ter a propriedade de algo sem, de fato,
possuí-lo, e vice-versa: um sequestrador ou um escravista podem, por exemplo,
ter a posse de uma pessoa (impor uso de fato sobre seu corpo), mas isso não
implica que ele possa sobre ela invocar relação válida de propriedade (a pessoa não
passa a “ser dele”), ou então alguém pode ter propriedade sobre algo (no caso do sequestrado, que mesmo cativo ainda tem propriedade sobre si mesmo) sem ter a efetiva posse.
Duas grandes correntes
jurídico-filosóficas invocam explicações diferentes sobre a relação de
propriedade. Uma delas, a positivista, explica que “direitos” constituem-se unicamente
como relações criadas, definidas e sustentadas por lei: logo, a propriedade é o
que uma determinada cultura, por meio de leis emanadas de uma autoridade, impõe
e aceita como relação válida. Assim, se a lei permite que uma pessoa tenha
propriedade sobre outra, se assim foi socialmente decidido e legislado, de
forma válida e legítima por seja qual for o sistema político e jurídico daquele
grupo de pessoas, está constituída tal relação, a qual deve ser observada pelos
demais componentes da sociedade por dever de obediência às normas emanadas da
coletividade. O positivismo jurídico ganhou força com o movimento de expansão
do poder estatal que caracterizou a era napoleônica, e reinou soberano até as
grandes guerras mundiais.
Uma segunda corrente é o
jusnaturalismo, que perdeu força durante a ascensão do positivismo (quando
então sustentava uma bastante frágil posição derivada de ideias religiosas,
bastante criticadas já no século XVII), e que, após uma revisão crítica dos
princípios positivistas à luz das tragédias das grandes guerras, em especial ao
pressuposto que a lei legitima plenamente a si mesma, voltou a ocupar a atenção
dos filósofos do Direito. Esta posição invoca uma base principiológica subjacente
para as questões legais: para cada questão, há, em tese, um posicionamento
legal ideal, que se aproxima do ideal abstrato de justiça (derivado da razão,
da ética, ou, como antes pregava, da própria vontade dos deuses – de qualquer forma, cogniscível) e a lei deve
refletir tal ideal, tal conjunto de princípios, sob pena de ser uma lei injusta
(o positivismo jurídico não considera a ideia de “lei injusta”, pois a lei,
posta pela autoridade, é o próprio critério de justiça). Logo, para o
jusnaturalista, a propriedade deve ser “o que é justo que seja a propriedade”,
independente do disposto em leis.
A questão jus-filosófica é certamente
bem mais complexa que o resumido acima, mas, como estamos tratando de ética –
ou seja, do dever-ser, o ato de escolher determinada ação em detrimento de
outra porque apresenta conteúdos valorativos diferente, mais elevado –
evidentemente devemos optar por uma abordagem mais voltada à concepção
jusnaturalista de propriedade. O que é, então, “justo que seja da propriedade”?

A propriedade de si mesmo é eticamente justificável?




Como vimos, ao atribuir
propriedade de algo a si mesma, na verdade uma pessoa passa a atribuir a si (ou
seja, à própria vontade consciente) o status de titular de um
conjunto de direitos sobre aquilo que definiu como propriedade. Mas fazê-lo sobre
si mesmo é justificável de acordo com um princípio ético? Tornaria tal pretensão
preferencial em relação, por exemplo, à pretensão de outro, lançada sobre também sobre ele?

Vamos buscar uma raiz consequencialista
para a resolução deste problema. Assumindo que uma situação que traga um maior
arranjo de utilidade
, simultaneamente, a todos os envolvidos, é universalmente
preferível em relação a um arranjo que traga menos utilidade (logo, é
objetivamente melhor, independente da
posição do avaliador), temos que a busca de tal arranjo (arranjo ótimo) é um
princípio de dever. Se admitirmos, então, que o princípio da autopropriedade
(ou seja, de que uma pessoa pertence, por relação de propriedade, a ela mesma)
proporciona tal arranjo, concluímos que observá-lo, independente da prescrição
legal acerca do tema da propriedade, é um dever ético.

Vamos também partir do fato, observável,
de que as pessoas, dotadas de vontades individuais diversas, concorrentes e por
vezes opostas, diferem acerca do que é o melhor uso de cada uma de si mesmas, e
que, por diferenças de gostos e preferências, possuem percepções diferentes de
utilidade acerca das mesmas situações. Imaginemos, a partir daí, três
situações: uma onde as pessoas exercem direitos de propriedade exclusivos sobre
si mesmas, uma situação onde um elemento externo – outra pessoa, ou a própria
coletividade – possui as pessoas, e outra situação que simplesmente não admite
a fixação de direitos de propriedade, nem favorecendo elas mesmas nem outros,
sobre os indivíduos.
Na primeira situação – pessoas
são “donas” de si mesmas
– um indivíduo faz uso de si livremente, de acordo com
os próprios critérios de percepção de utilidade. Adicionalmente, o fato de que
a propriedade exclui outros de definirem qual será o uso de sua própria vida impede
que ele perceba utilidade negativa por ser forçado a fazer o que não deseja. Não
há, em tese, geração de utilidade negativa quanto ao fato isolado da fixação de
autopropriedade, pois, desfrutando do status de autoproprietário, alguém protege-se de uso próprio
contrário à sua vontade (o que não impede, claro, que as pessoas se frustrem com o uso que
os demais fazem da própria autopropriedade – mas ali elas são plenamente ilegítimas para
reclamar direitos).
A segunda situação – outros,
inclusive a coletividade, podem estabelecer propriedade sobre as pessoas

implica que a aquisição de propriedade sobre alguém é possível, mas não é
garantido que uma própria pessoa seja dela mesma: isso até pode ocorrer, mas
não é automático. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que, em uma primeira aproximação teórica, não parece ser uma
situação obrigatoriamente ruim: certamente o arranjo mais eficiente, definido
racional e metodicamente por esta entidade capaz de possuir os outros de
acordo com a sua vontade, pode alocar cada pessoa no local onde mais traz
benefício ao grande grupo de pessoas, o que inclui a si mesma – o que seria, de um ponto de vista consequencialista, “ético”. Mas será assim?
Esta proposição ignora alguns
fatos. O primeiro é que as pessoas possuem percepções variadas de utilidade,
por vezes concorrentes e opostas. Qual o critério utilizado para alocar quem em qual uso? O proprietário
tende a definir o uso do que possui com base nos próprios critérios. Uma
religião, por exemplo, que estabeleça que todos os indivíduos são propriedades
de um deus, leva apenas a consideração a vontade de tal deus (mais
frequentemente, a vontade de seus autoproclamados representantes), sem levar em consideração os desejos, gostos, preferências e aspirações das próprias pessoas. Uma raça ou espécie que estabeleça ser
proprietária de outra certamente tende a levar seus gostos e preferências mais
em consideração que os da raça ou espécie possuída.
É em teoria possível, no entanto, que este
arranjo maximize os interesses de ambas as raças, ou seja, atinja um ponto de
equilíbrio máximo onde é impossível aumentar a percepção de utilidade de
qualquer dos envolvidos sem diminuir a percepção de pelo menos um dos demais
(em outras palavras, atingir a Eficiência de Pareto, nome dado a tal situação em
homenagem ao engenheiro e economista italiano Vilfredo Pareto, que a teorizou)?
Certamente, embora extremante improvável, já que dependeria de uma capacidade infinita de pesar, levar em consideração e concliliar interesses adversos, conflitantes, perpetuamente em mudança e
teoricamente em número infinito. Mas é curioso observar que tal ponto, se de fato existe, por
respeitar a percepção de utilidade negativa dos envolvidos, é o EXATO ponto em
que, no livre exercício da autopropriedade, os diferentes envolvidos potencialmente chegariam
ao explorar progressivamente “zonas de não-autopropriedade” e maximizar as possibilidades de benefício não-invasivo, ou seja, o
uso de si mesmo que não invade, contra a vontade alheia, as esferas de
autopropriedade das demais pessoas – com o benefício adicional de que, neste
segundo caso, o risco de ser forçado a perceber utilidade negativa por uso
compulsório e indesejado de si mesmo não existe.
Isso nos leva a um terceiro problema: embora seja
possível que a propriedade de outros proporcione também aos objetos de
propriedade níveis adequados de satisfação, não há obrigação alguma do titular
da propriedade observar isso. Ele não está limitado pelo desejo de satisfação
das vontades das quais é dono, pois, se estivesse limitado, significa que não
possui de fato propriedade: elas resguardam pelo menos alguma fração dos direitos negativos que a autopropriedade lhes confere, que é o de afastar de si usos indesejados. A vontade consciente proprietária é, em princípio, soberana sobre sua propriedade; ou isso, ou não é proprietária, mas possuidora.
Um quarto problema é um paradoxo.
Se a coletividade pode estabelecer propriedade sobre outra pessoa, com a
justificativa de que o faz em nome de um bem maior, segue-se que este bem não
deve ser setorial, de acordo com o proposto acima (pois, se for minimamente
setorial, e não global, exclui pelo menos uma parcela da fruição dos benefícios). Ou seja, deve haver
uma tendência à unidade: não só você pertenceria à sua própria comunidade, mas
à nação, pois as diferentes comunidades de uma nação podem ter interesses
médios diversos. Logo, não só a nação, mas à humanidade como um todo; logo, não
só à humanidade, como ao planeta, e assim sucessivamente. Isso acaba no ponto
onde alguém pertence a tudo, e tudo, em uma pequena parte, pertence a esta
pessoa, com uma notável exceção: a própria pessoa é a única sobre quem não pode invocar
propriedade, pois não pertence de modo algum a si mesma. É uma inversão
completa do princípio original, e uma formulação bastante estranha.
O terceiro caso – onde
simplesmente não há direitos de propriedade sobre indivíduos, o que inclui a
autopropriedade
– traz uma situação onde não há base principiológica para impor
sua vontade sobre os outros, mas também impede que você ou qualquer um afaste, invocando direitos
negativos (o direito de “não” ser usado por outros), uso indesejado dos outros
sobre você mesmo, já que esta faculdade é uma expressão direta da
autopropriedade. Observaríamos que nada, então, impediria o relacionamento pelo
meio da mera relação de posse, se a força para fazê-lo assim o bastasse.
Por isso, podemos perceber que
há, sim, justificativa ética em atribuir propriedade de uma pessoa a si mesma e
aceitar o princípio da autopropriedade, o que equivale dizer: uma pessoa deve
ser a única capaz de definir o uso que fará da sua própria vida,
e, mais
importante, deve ser respeitada a vontade de uma pessoa, como imperativo ético,
de negar-se a permitir o uso de si mesmo contrário à sua vontade
.

Implicações Imediatas

Aceitar como ético o princípio da autopropriedade é aceitar que é melhor que cada um tenha o poder de determinar o próprio destino, e implica em uma série de conclusões que, sob pena de viver em contradição, devemos incorporar em nosso comportamento e relacionamentos com o mundo.




Você pertence a si mesmo, não a qualquer outra pessoa ou à coletividade. Ninguém a não ser você deve estabelecer o uso que você faz de si mesmo, mesmo
que essa pessoa seja alguém fisicamente mais forte, ou que seja do sexo ou etnia tradicionalmente tido como dominante; nem que seja um grupo  representante de uma maioria ou um consenso, ou que alegue falar em nome de uma corrente filosófica ou
religiosa majoritária ou oficial, ou o que quer que seja. Você é absolutamente seu. Isso inclui o uso do seu corpo e o uso da sua mente, seus atos, hábitos, ideias, preferências e consciência. Tudo isto é parte intrínseca de você, logo, única e exclusivamente seu. Do mesmo modo, mesmo que seja mais forte, ou mais inteligente, ou de um sexo ou etnia que a sociedade aceita como tradicionalmente dominante, mesmo que represente uma
maioria ou um consenso, você não pode impor aos outros usos de suas vidas que estejam em
desacordo com as suas vontades. Viver de modo coerente com isso é viver respeitando a vida, as preferências e opções dos demais, e viver de modo a, a cada atitude, preferir aquela que não impõe sofrimento aos outros.
Você não pode decidir pelo sacrifício de uma minoria em nome de um bem maior. Muitas vezes, os proponentes de uma ética consequencialista são criticados por “permitirem sacrifícios” em nome de um arranjo que traga maior valor agregado de utilidade. Embora esta crítica possa se aplicar a a alguns autores clássicos e formas primitivas de pensamento consequencialista, isto não é verdade no consequencialismo como um todo. O consequencialista define com base em sua filosofia de maximização de utilidade as melhores ações e opções éticas, mas o faz dentro de uma esfera de decisão protegida pela autopropriedade e limitada pela autopropriedade dos demais. Decidir o uso da vida dos outros é usurpar a vida alheia. E, ao usurpar a vida alheia, uma pessoa ajuda a destituir o próprio princípio da autopropriedade, reforçando, em seu lugar, a ideia de relacionamento pela força. Mesmo legislar sobre as opções que alguém deve ter – opções de comportamento, de gostos, de vida sexual – é uma forma de usurpar a vida dos outros.
Um pessoa, seja um animal humano ou animal não-humano,
em tese, é a única titular de direitos morais de propriedade sobre si mesmo
.
Esta é uma consequência intuitiva dos princípios acima, mas é necessário um
adendo, que justifica o “em tese”: estamos pressupondo com isso que todos os
animais são dotados de vontade consciente, o que talvez não seja o caso. Algum
animal bastante primitivo, ou desenvolvido de modo planejado para tanto, pode não
apresentar traços de consciência. Da mesma forma, células animais, humanas ou
não, em estágio inicial de desenvolvimento também estão excluídas da
autopropriedade, por não apresentarem seu atributo justificador, a vontade consciente. À medida em
que estas se desenvolvem, destacam-se, com o aparecimento de vontade
própria, da esfera de autopropriedade do ser que o gerou para desenvolver sua
própria esfera de autopropriedade.
Algo que não seja uma pessoa não
pode ter propriedade sobre si mesma, uma vez que não possui vontade consciente, mas uma pessoa deve possuir autopropriedade
. Como não há vontade consciente em um ser
não-consciente, não há interesse positivo de fazer uso de sua própria vida de
determinado modo, nem interesse de impedir que outros façam uso dele mesmo. Um
ser vivo que não possua consciência não possui, logo, autopropriedade, mesmo
que seja geneticamente um hominídeo humano. Isso não implica que seja automaticamente propriedade de outra pessoa.
Não só um animal, mas um artefato
pode, eventualmente, ser proprietário de si mesmo.
Assim que uma máquina passa a perceber-se como uma vontade consciente, adquire propriedade de si mesma.
Quaisquer diferenças com o avaliador da questão, invocadas para negar seu
status de autoproprietário, são argumentos de posição privilegiada. Certamente, a dimensão desta implicação será muito maior no futuro, supondo uma manutenção na acelerada taxa de aumento de capacidade das máquinas que, hoje, já observamos.
Não é possível abrir mão da autopropriedade. Você não pode perder voluntariamente seu status de autoproprietário, pois este emana da sua vontade consciente, que é intransferível. Você pode compartilhar com outra pessoa o domínio sobre si mesmo, mas este compartilhamento é uma simulação de propriedade: você na verdade exercita sua autopropriedade, e não a transfere, ao permitir que os desígnios de outrem influenciem o uso que você faz de si mesmo. Sempre que desejar, pode reclamar o controle sobre si mesmo, com total e pleno direito.

LiHS cria Conselho de Ética Inter-Espécies

 

Conselho de Ética Inter-Espécies da Liga Humanista Secular

Douglas Oliveira Donin – Advogado, especialista em Direito Internacional e Acadêmico de Economia – UFRGS

Luciana Rodrigues Vasconcellos – Acadêmica de Psicologia – UEMG
Criança em Urubamba, Cusco, Peru. Por peace ken

O que é o Conselho
Inter-Espécies?
O Conselho de Ética Inter-Espécies
vem suprir uma lacuna na Liga Humanista Secular do Brasil, que atualmente conta
com conselhos para questões eticamente relevantes como direitos LGBT e questões
de gênero. É uma iniciativa inovadora, pois não temos notícia de uma
representação assim em associações seculares de outros países, e também por
vivermos em uma sociedade que, embora progressivamente abandone  alguns
critérios  discriminatórios, tarda e reluta em questionar outros.
Exatamente para preencher tal lacuna,
atendendo a uma clara demanda de uma crescente proporção do movimento humanista
– o qual frequentemente ocupa a vanguarda do posicionamento ético em relação ao
pensamento padrão da sociedade -, é com satisfação que damos início ao Conselho
de Ética Inter-Espécies. Este conselho se ocupará das questões éticas
envolvendo a espécie humana no seu relacionamento com as demais espécies, em
uma postura de igual consideração de interesses. Nossas metas são:
  • Contribuir para a criação de um modelo ético
    de ampla e irrestrita aplicação, para o qual seja irrelevante a
    denominação da espécie à qual pertença o sujeito ético, mas sim, as
    características e atributos de cada sujeito ético relevantes ao problema
    específico;
  • Contribuir para a ampliação da consciência
    ética dos membros da LiHS,  no que se refere a uma maior reflexão
    acerca das relações que os seres humanos mantém com seus co-espécificos,
    inter-específicos e para com o planeta;
  • Prestar assessoria à LiHS sobre o tema das
    relações éticas inter-espécies;
  • Trazer aos membros da LiHS a teoria e
    literatura especializada no problema filosófico da ética inter-espécies,
    principalmente divulgando o desenvolvimento internacional da questão;
  • Contribuir nas publicações e eventos da LiHS
    sobre a importância da ética inter-espécies.
O significado dos
termos “humano” em “humanismo”.
Pode causar, em um primeiro contato
com o tema, estranheza aos olhos do leitor que um grupo “humanista” preocupe-se
com “inter-especismo”. Afinal, por um dos termos, parece ser eleita a espécie
humana como pilar central do universo moral, e, por outro, parece se negar tal
priorização do humano. Como pode ser o humanista outra coisa senão um defensor
da soberania do humano, enquanto objeto primordial de consideração ética? Como
primar pelo humano pode não ser, automaticamente, uma forma de “especismo”?
Vamos tratar antes de tudo deste
questionamento, que corre o risco de aflorar de um simples – e de fácil
solução, diga-se – acidente terminológico. Por que o “humanista” é um ferrenho
defensor, e, ao mesmo tempo, deveria ser um ferrenho adversário, do papel
central do “humano” no universo moral? Para começar a responder esta questão,
vamos nos perguntar qual o significado do “humano” em “humanismo”.
As filosofias humanistas pregam, em
suas várias vertentes, o humano como centro das preocupações filosóficas. Desde
o renascimento, o humanismo é ligado às idéias de antropocentrismo e de
racionalismo. E isso – saber exatamente o que é este antropocentrismo,
principalmente iluminado pelo valor concomitante do racionalismo – pode começar
a nos ajudar a resolver a questão do significado do “humano” em “humanismo”.
Surgidas em oposição à teologia, ao
misticismo e ao teocentrismo medieval, onde só haviam dois atores no cenário
moral, o “humano” (o natural) e o “divino” (o sobrenatural), as várias
vertentes de filosofia humanista foram, antes de um movimento de elevação do
próprio ser humano perante todas as outras coisas, um movimento de elevação do
ser humano perante o divino e o sobrenatural, uma negação do papel destes como
fonte e objeto de consideração moral. Ou seja, uma eleição do natural perante o
sobrenatural.
Percebemos, então, que a
reivindicação do natural como centro das preocupações filosóficas nos exige uma
reavaliação dos critérios que devemos considerar no pensamento moral. Em um
primeiro momento, trata-se da busca de fundamentos concretos, intrínsecos ao
próprio mundo natural, de atributos ou características que tornem um dado
paciente moral digno de um certo tratamento moral adequado. E isso, no que se
refere à própria humanidade, fazemos com relativo sucesso: poucos são os que,
hoje, séculos após o renascimento, negam a mesma essência moral – logo,
dignidade para os mesmos direitos morais – aos diferentes humanos (embora ainda
exista larga margem para melhorias, principalmente nas questões ligadas ao sexo
ou ao comportamento sexual).
Mas o que nos interessa, para efeitos
desta discussão, é um segundo efeito desta mudança de paradigma: desistindo de
justificativas sobrenaturais, o homem abre mão de um papel semi-divino a ele
atribuído pelas narrativas místicas. Não podendo mais falar em si mesmo como
“centro da criação”, e buscando na própria realidade, e não em uma suposta
filiação divina, a razão de seus direitos morais, o homem percebe-se
compartilhando, com todos os outros componentes do mundo natural – independente
de quaisquer classificações, seja de que ordem forem – uma mesma série de
potenciais direitos morais, oriundos dos mesmos atributos, na medida e na exata
proporção em que, com estes outros componentes do mundo natural, partilha tais
atributos.
Ou seja, uma ética inter-específica
nada mais é do que uma aplicação coerente e irrestrita dos princípios éticos
tomados pelos humanistas como naturais e universais. Trata-se de simplificar a
proposição “isto é bom para mim” para, unicamente, “isto é bom”: aplicar o
mesmo conjunto de valores a quaisquer universo de sujeitos. É a reivindicação
de um atributo universalista à ética e a rejeição da ideia de que diferentes
interessados precisam de diferentes conjuntos de tratamentos éticos. Veremos,
adiante e em futuras ocasiões, que isso não implica em igualdade de direitos.
O problema da definição dos
componentes do espectro moral – quem é, de fato, sujeito de consideração moral,
ou o que faz um indivíduo ser moralmente apreciável, enquanto outro não – é
altamente complexo, apaixonante e, como todo problema moral, polarizador. A boa
notícia é que, ao tratar do tema, não fazemos nada senão continuar um exercício
de raciocínio ao qual já estamos bastante acostumados. Não há, essencialmente,
problemas morais novos, e a linguagem e técnica filosófica necessária já nos é
bastante familiar. Peter Singer, Gary Francione, Tom Reagan e J. M. Coatzee não
utilizam, hoje, princípios ou argumentos muito diferentes do que, antes deles,
muitos pensadores já utilizaram em diferentes ocasiões.
O problema da liberdade, por exemplo –
quem deve ter liberdade?”, ou “a quem é boa a liberdade?” – já foi alvo das
considerações de Joaquim Nabuco, William Pitt, Frederick Douglas, Martin Luther
King e muitos outros abolicionistas.  Estes se perguntaram: “faz sentido
tratar um sujeito X com um conjunto de princípios diferentes, no que diz
respeito à sua liberdade, apenas em função de sua cor?
” A resposta a que
chegaram foi de que sendo todos humanos e, como humanos, apreciadores da
liberdade, não havia fundamento concreto para uma diferença de tratamento sobre
algo que é, fundamentalmente, o mesmo interesse (o interesse de manter-se
livre, o prazer que se extrai da percepção de liberdade e o sofrimento que se
extrai da negação da liberdade).
A pessoa moralmente informada sobre
questões interespecíficas, dotada de um pensamento universalista, despindo-se
de posições privilegiadas, simplifica a questão: a liberdade não deve ser
negada, então, a qualquer um capaz de conscientemente desejá-la
. Mesmo que
disso decorra prejuízo ou diminuição de prazer de alguém que, de uma posição privilegiada,
analise a questão.
Apesar de fazer avançar o tema, o
movimento abolicionista do final do século XIX e dos Direitos Civis dos anos
60, no entanto, não encerraram a questão da igual consideração de iguais
interesses – que, daqui em diante, trataremos apenas pelo jargão filosófico
Princípio da Igual Consideração de Interesses”. Vencida a batalha dos
abolicionistas ( obtida uma ampliação do universo de humanos aos quais são
devidas considerações morais igualitárias, que resultou no fim da escravidão no
mundo ocidental, embora não ainda no fim da discriminação) um outro conjunto de
sujeitos indicava que, agora, era a sua vez de ter seus pleito solucionado.
Stuart Mill, Lucretia Mott, Frances Willard e muitos homens e mulheres, por um
fundamento análogo, já repetiam a mesma pergunta que os abolicionistas
responderam: “faz sentido tratar um sujeito X com um conjunto de princípios
diferentes apenas em função de seu sexo?
”  O movimento sufragista,
primeira manifestação da onda feminista, reivindicava para as mulheres (que,
embora não sofressem restrições aos seus direitos tão severas quanto os
escravos, com certeza não podiam gozar da mesma liberdade e plenitude, enquanto
indivíduos, que as pessoas do sexo masculino) igual consideração em virtude dos
mesmos interesses. Em resumo, também invocavam o Princípio da Igual
Consideração de Interesses. A elas se opuseram, do mesmo modo que antes, o peso
da tradição e argumentos de posição privilegiada de igual formatação, mas o
pleito da “igual consideração para iguais interesses” era forte demais para ser
ignorado. E assim, a fronteira ética se ampliava mais uma vez.

 A ética universalista impôs a aplicação do Princípio da Igual
Consideração de Interesses a cada vez mais situações morais. Hoje, é travada
uma batalha no campo dos direitos humanos sobre o fato de que homossexuais e
heterossexuais, por possuírem uma série de interesses em comum – constituir um
núcleo familiar, unir-se com quem escolheram, desfrutar da mesma condição legal
– não devem ter tratamento diferenciado, o que há alguns anos era impensável.
Muitos países se vêm às voltas com a aplicação do Princípio da Igual
Consideração de Interesses em relação a diferente tratamento dado a nacionais e
estrangeiros. O fato de possuir uma ou outra religião, ou não ser filiado a
nenhuma em especial, também é atacado como fonte de discriminação moral. Mas há
algo na filosofia universalista, que prega a aplicabilidade do mesmo conjunto
de princípios morais a quaisquer sujeitos que compartilhem uma mesma massa de
atributos, que diga que estes princípios só possam ser aplicados aos
componentes de uma certa parcela de símios (que fundamentalmente não diferem
substancialmente uns dos outros, no que diz respeito aos atributos relevantes à
questão), dentre todos os possíveis componentes do mundo natural?
Parece extremamente ilógico – aliás,
uma negação da própria pretensão de validade irrestrita de uma ética universalista
– imaginar que sim. Nas palavras de Daniel Sottomaior Pereira, um dos primeiros
humanistas brasileiros a defender, abertamente, o abandono da ideia de exclusivismo
ético humano, “um círculo moral que inclua apenas nossa própria espécie é, como
qualquer outro círculo convenientemente restrito a uns poucos à nossa volta, um
círculo imoral. É uma forma de chauvinismo.
”  E, justamente, a esta particular
escolha de fundamento discriminatório, elegendo como limite para a consideração
de interesses “apenas aqueles que possuem a mesma espécie que eu”, para
manutenção de uma posição privilegiada, chamamos de “especismo”.

O que é especismo?

“Especismo” significa privilegiar os
membros da nossa espécie em nossas decisões éticas. É, ao exemplo de outros
critérios discriminatórios arbitrariamente eleitos, como por exemplo o critério
de “raça” no racismo,  de “nacionalidade”
na xenofobia ou “sexo” no sexismo,  considerar que existe uma linha
divisória clara entre nós e as outras espécies, que há conteúdo objetivo em tal
discriminação, e que isso permite ignorar os interesses – principalmente o
interesse de não sofrer – de todas as outras espécies que não a do especista, a
fim de obter benefícios pessoais ou compartilhados entre o próprio grupo discriminante,
que obtém posição privilegiada.
São vários os obstáculos atuais impostos
à ética interespécies. Talvez o maior deles seja o fato de que muitos ainda
trazem consigo o preconceito, talvez derivado de uma visão mística de mundo, de
que os seres humanos, independente de qualquer situação, “estão em primeiro
lugar
”, e que os problemas relativos aos animais não-humanos não são
comparáveis, em termos morais, aos problemas humanos. Como veremos
posteriormente, tais preconceitos não possuem fundamento objetivo –
dificilmente o proponente de tal ideia ocupa-se de fornecer uma resposta ao
porquê de apenas os interesses humanos serem dignos de consideração, apenas
recorrendo a uma suposta obviedade da resposta  – e, como são
praticamente uma reformulação em torno do conceito de espécie da afirmação “os
problemas alheios não são tão importantes quanto os meus”, também não passam de
um argumento de posição privilegiada. Para chegar a essa conclusão o indivíduo
necessita acreditar que o sofrimento dos animais que não são da sua espécie – por
mais que possam estar de fato sofrendo – é menos importante que o sofrimento de
um animal de sua espécie, pelo fato de que ele compartilha de características
arbitrariamente escolhidas (racionalidade, capacidade mental, etc.) que não se
comunicam, ou que pouco se comunicam, com o problema em questão – que é
justamente sofrer, derivado única e exclusivamente da capacidade de sofrer –
mas que passam a ser o limite de seu horizonte moral. Sobre isso, Peter Singer
faz uma comparação precisa: “O que pensaríamos se alguém dissesse “Os
brancos vêm em primeiro lugar” e, portanto, a pobreza na África não
constitui um problema tão grave como a pobreza na Europa?
”.
Algumas questões sempre vêm a tona
quando se fala em uma ética interespécies. Frequentes são as preocupações sobre
o status ético humano, alcançado na igual consideração de interesses, ou se
seria legítimo basear nossas decisões éticas somente com base no afeto e não
com base na razão, ou sobre como seria o proceder ético não-especista. Elas
serão resumidas e respondidas abaixo:


Por que  privilegiar os membros de nossa espécie é incoerente?
Ao longo
dos tempos buscou-se traçar uma linha divisória que nos distinguisse
absolutamente dos outros animais. Até meados do século passado o ser humano era
considerado, para todos os efeitos, um não-animal, de filiação divina, o que o
separava de todo o restante da natureza. Outras tentativas de separação
incluem, por exemplo, ser dotado de espírito, utilizar utensílios, fabricar
utensílios, possuir linguagem, possuir raciocínio, possuir consciência. A
existência de alma ou espíritos nunca foi comprovada cientificamente, e cada
vez é menos invocada. Os outros critérios todos foram refutados: chimpanzés são
capazes de fabricar utensílios e aprender a linguagem dos surdos, existem
evidências de que golfinhos possuem linguagem complexa própria, comunidades de
lobos parecem ser capazes de manter um tipo primitivo de justiça socialmente
reforçada e a neurobiologia parece ser unânime ao apontar diferentes graus de
raciocínio e consciência para diferentes animais. Atualmente, a linha divisória
tem sido considerar que animais humanos são autoconscientes, possuem percepção
temporal de passado e futuro, são autônomos capazes de fazer escolhas, mas tais
atributos também não são exclusivos da espécie humana. E, mesmo que fosse,
porque o fato de sermos dotados de autoconsciência, percepção temporal e
autonomia, ou qualquer outro atributo arbitrariamente selecionado, justifica
ignorar o sofrimento dos seres não dotados dessas características e usá-los sem
preocupações éticas? Humanos com deficiência física ou mental muitas vezes não
são autoconscientes, não possuem percepção do tempo passado ou futuro, não são
autônomas e nem por isso diríamos que poderiam ser usadas em experiências
científicas ou em trabalhos forçados para o bem do resto da humanidade.
Justificar o sofrimento dos animais não humanos para quaisquer benefícios que
tal sofrimento possa trazer à nossa espécie, com base unicamente  no
critério de pertencerem à outra espécie é como justificar o sofrimento dos
negros escravizados por pertencerem a uma raça distinta.


Não privilegiar a nossa espécie fará com que tratemos humanos deficientes, ou fisicamente
diferentes, como tratamos atualmente os animais não-humanos?
Essa pergunta, que
invoca uma suposta utilidade do especismo para o próprio respeito aos direitos
humanos, amplamente considerados, é interessante porque traz implícito o
reconhecimento de que a forma como tratamos os outros animais não é ética. Ao
reconhecermos que não há um abismo entre os animais humanos e não-humanos, e
que, ao contrário, devemos elevar os próprios interesses, em si considerados,
reforçamos não só o estatuto dos outros animais como também o estatuto dos
humanos, reconhecendo seus direitos com base em um fundamento objetivo, maior
do que justamente uma distinção arbitrária, ao invés de destituir os direitos
humanos alcançados.



Sinto mais afeto por humanos do que por vacas. Basear as decisões éticas com
base no afeto é justificado?
Basear nossas decisões éticas somente com base no
afeto pode trazer sérias consequências e incoerências. Muitas pessoas que
gostam de cães ficam horrorizadas ao saber que existem países em que as pessoas
se alimentam de cães e que, inclusive, eles sofrem com uma morte dolorosa –
certamente, com base em uma especial relação afetiva com tais animais. No
entanto, não parecem se preocupar com o sofrimento de porcos, vacas, chimpanzés
ou outros animais com a mesma capacidade de sofrer, por não ter com eles uma
ligação emocional tão forte. No entanto, o que essas pessoas diriam se um
alguém preferisse salvar seus cães de uma enchente a seus vizinhos, porque
gostam dos seus cães e mal conhecem seus vizinhos? Ou salvar  suas
plantas? Ou o que diriam se os homofóbicos justificassem seu comportamento
violento por que não gostam de gays? Com efeito, basear tais escolhas éticas
com base no afeto é, no fundo, considerar o próprio interesse (o interesse de
ver bem aqueles que para nós são importantes, em detrimento dos demais), o que
não é uma forma de pensamento ético de ampla aplicação, visto que os interesses
afetados, em si, não são considerados.


Não podemos sentir a dor do outro, então como sabemos que os animais sentem
dor?
Da mesma forma que sabemos que outros humanos sentem dor, também não
podemos sentir a dor de outro ser humano, mas, em primeiro lugar, podemos
deduzi-la pelo seu comportamento. Mesmo depois de aprender a falar e comunicar
a sua dor os humanos reagem de forma semelhante aos outros animais diante da
dor. Em segundo lugar, pelo estudo da Anatomia Comparada, porque possuímos um
Sistema Nervoso Central, cujas áreas relacionadas à percepção da dor são
antigas em termos evolutivos e semelhante à de outros mamíferos e aves. De
qualquer forma, o simples fato de que buscam conscientemente evitar situações
que gerem tais sensações, repudiando-as, demonstra, além do questionamento se
aquela sensação é ou não dor, que há um claro interesse seu que tais sensações
não sejam a eles impostas.



Se considerarmos que os animais sentem dor, deveríamos considerar que as
plantas também sentem dor?
As plantas não possuem Sistema Nervoso e por isso
não são capazes de sentir dor ou de ter quaisquer interesses conscientes.
Equiparar as necessidades éticas dos animais com as necessidades éticas das
plantas, se é que elas as têm, com base unicamente no fato de que são ambos
seres vivos, é negar que existam diferenças na necessidade de tratamento ético
entre quaisquer seres vivos. Logo, matar um ser humano seria moralmente
equivalente a matar uma planta qualquer, o que não possui fundamento.
  

Então em que poderíamos basear nossas decisões éticas sem sermos especistas?

Refletindo sobre as consequências objetivas de nossas ações sobre interesses
gerais, considerando igualmente os seus portadores, sejam animais humanos ou animais
não-humanos – o que, como exploraremos em textos futuros, não implica em
igualdade de interesses ou igualdade de direitos, mas em igualdade de condições
de consideração – bem como as consequências mais extensas de nossas ações sobre
o planeta. Steven Pinker, apoiado em um conceito de Singer, explica que cada
vez mais expandimos nosso círculo de empatia: deixamos de nos preocupar somente
com os membros de nossa família para nos preocupar com os membros de nossa
tribo, enfim, deixamos de nos preocupar somente com os membros de nossa raça ou
país e nos preocupamos com toda humanidade  (e assim criamos os direitos
humanos), baseados na constatação que mesmo além do círculo atual há uma
comunhão de interesses, idênticos ou análogos aos nossos. Agora estamos cada
vez mais próximos de considerar, também o interesse dos animais não-humanos e a
preservação do nosso planeta, fatores que já fazem parte essencial das
considerações éticas diárias de uma parcela crescente da população mundial.
 O que é
relevante para “ser uma pessoa”?
O senso comum geralmente utiliza o
termo “pessoa” como sinônimo de ser humano. Às vezes, entretanto, “ser uma
pessoa” parece ter um sentido diferente de apenas “ser da espécie humana”. Ao
mesmo tempo, parece que garantir a necessidade de consideração ética envolve
considerar um indivíduo enquanto pessoa, e, por isso, faz-se importante
esclarecer o que queremos dizer com o termo “pessoa”, indagando o que isto
realmente significa.
Para John Locke uma pessoa é um ser
autoconsciente, ou seja, alguém que possui a consiência de si mesmo como uma
entidade distinta, e  que possui noção do tempo com um passado e um
futuro.  Nesta acepção muitos animais não podem ser considerados como
“pessoas”, como também, bebês recém-nascidos e alguns seres humanos com
deficiências mentais. Para Tooley somente seres autoconscientes, portanto “pessoas”,
possuem o direito a vida. No entanto, podemos levantar outras razões para que
seja um mal matá-los, e é geralmente o que todos fazemos e concordamos.
Tudo isso nos leva a pensar se a vida
de um ser consciente e não autoconsciente possui algum valor, e como comparar o
valor da vida deste ser com o valor da vida de uma pessoa. Devemos dar valor à
vida consciente?
A principal razão para se valorizar a
vida de um ser consciente é a sua capacidade de sentir dor ou prazer,
considerando amplamente tais termos, além do evidente significado físico.
Chamamos a isso, em todas as suas manifestações, de interesses, em um uso
bastante especializado do termo. Se nós, enquanto pessoas, valorizamos o prazer
que a vida é capaz de nos proporcionar – o prazer de comer, de manter relações
sexuais, de estar livre para ir e vir – e valorizamos tais prazeres apenas em
si considerados, não apenas porque são “prazeres de um ser humano”, por que não
valorizar experiências semelhantes que os seres conscientes podem te,
independentemente de suas nomenclaturas? E se somos capazes de sofrer a dor de
uma pancada, um corte, se ser tolhidos de nossa liberdade e de nosso prazer de
viver, é evidentemente ruim aos nossos olhos, de modo que fazemos o possível
para poupar os demais seres humanos destes desprazeres, haveria justificativa
moral para não alargar nossa consideração ética a todos os seres capazes de
sentir o mesmo, na medida em que sentem o mesmo?
É justificado, pelas diferenças
apresentadas acima, julgar que haja um mal maior em se matar uma “pessoa” do
que um ser que não seja uma ”pessoa”. Mas, como vimos, se  ser da espécie
humana não garante o status de pessoa, cabe perguntarmos: algum animal
não-humano pode ser uma “pessoa”, ou seja, um ser que seja racional e tenha
consciência de si mesmo como entidade distinta, com um passado e com um futuro?
Em uma pesquisa Allen e Beatrice
Gardner conseguiram ensinar a linguagem de sinais dos surdos americanos a um
chimpanzé, em frente ao um espelho. Quando perguntado sobre o que via, o animal
não-humano respondeu prontamente que via a si mesmo. O mesmo resultado foi
encontrado em gorilas. Sobre a noção de tempo, chimpanzés, gorilas e
orangotangos, que aprenderam a linguagem de sinais, também usaram sinais para
comunicarem que eles se lembravam de acontecimentos no tempo, como o dia do
aniversário e a época em que os cientistas montavam a árvore de natal.
Tudo isto demonstra a fragilidade do
raciocínio especista, que procura desensibilizar a capacidade natural de
empatia dos seres humanos ante a estes fatos, para defender, em busca de
maiores benefícios pessoais, que somente interesses de seres humanos merecem
consideração ética, independentemente da consciência e da autoconcienciencia
que os demais animais possam ter.
O humanismo é uma filosofia que
valoriza a tomada de decisões morais não baseada em conceitos
pré-estabelecidos, sendo que, no caso dos obstáculos à uma ética geral,
universal, inter-específica, a maioria destes conceitos foram originados quando
a ciência conhecia pouco sobre as capacidades animais e  ainda se
acreditava que uma divindade haveria criado tudo o que existe, em todo o
universo, para nossa livre exploração e exclusivo fruto. O Humanismo defende
que nossas decisões éticas sejam tomadas através da razão e da empatia – o
considerar o interesse de outro como se fosse seu – e, neste sentido, não há
lugar para o especismo – nem para qualquer tipo de discriminação ou privilégio
de posição – na filosofia Humanista Secular, sob pena de fazer ruir, pela
incoerência, as bases do seu próprio pensamento.
 A capacidade
de sentir dor ou prazer como marcador ético não-especista.

Ser capaz de sentir dor ou prazer – aqui considerados de modo amplo como
sinônimos de mal-estar ou bem-estar, ou seja, condições que o próprio ser
valora positiva ou negativamente, que aprecia ou rejeita) é um pré-requisito
necessário para pensarmos nos interesses individuais de qualquer ser. Não faria
sentido falar dos interesses de seres que não podem sofrer pelo mal-estar ou
usufruir do bem-estar, porque nenhuma ação que podemos tomar poderá resultar em
alteração do seu nível de bem estar.
Considerando apenas a dor física,
que, sem dúvida, percebemos pela própria experiência humana como indesejável,
nós, humanos e outros animais, tais como porcos, vacas, cães, aves, dentre
outros, somos praticamente iguais. A área do nosso sistema nervoso ligada a
percepção da dor (diencéfalo) é antiga em termos evolutivos e basicamente
equivalente à de outros animais – especialmente mamíferos e aves. Se somos
iguais na dor, haveria justificativa moral para não se considerar a dor de
outro ser,  mesmo que de outra espécie? Mesmo que tal ser possua 
capacidade racional diferente?

O princípio da igualdade de consideração de interesses exige que o nosso
sofrimento seja igualmente considerado em comparação com outro sofrimento
semelhante, ainda que tal sofrimento seja de um animal humano de outra etnia,
de outra cor de pele, de outro sexo, ou ainda, de que seja de um animal
não-humano. Qualquer outra característica que não a capacidade de sentir dor
que tomarmos para julgar a questão, sob a ótica da igual consideração de interesses,
seria arbitrária e inadequada
. Se escolhermos a racionalidade como marcador,
não só excluímos da nossa reflexão ética a consideração de espécies diferentes,
como também excluímos pessoas com deficiência mental grave. Se escolhermos a
cor da pele excluímos pessoas de cor diferente a nossa. A capacidade de sofrer
é um imperativo para se deduzir quaisquer interesses no que se refere à geração
e imposição de sofrimento.

Algumas pessoas ficariam ofendidas ao ser colocadas lado a lado com racistas e
sexistas por privilegiarem os interesses de sua própria espécie,  uma vez
que não julgam que algo tão tradicional e socialmente praticado como a
desconsideração dos interesses e a imposição de sofrimento aos animais
não-humanos seja algo digno de cogitação.  No entanto, isso ocorre, como
lembra Peter Singer, em sua obra “Ética Prática”, porque: 

Os racistas violam o princípio da igualdade, atribuindo maior peso aos
interesses dos membros da sua própria raça quando existe um conflito entre os
seus interesses e os interesses daqueles pertencentes a outra raça. Os sexistas
violam o princípio da igualdade ao favorecerem os interesses do seu próprio
sexo. Da mesma forma, os especistas permitem que os interesses da sua própria
espécie dominem os interesses maiores dos membros das outras espécies. O padrão
é, em cada caso, idêntico.


Porque falamos de igualdade de interesses e não
de direitos? Tomemos o exemplo do movimento feminista. As mulheres têm 
interesse no direito de abortar uma gravidez indesejada, não faria sentido
conceder o mesmo direito aos homens, que não são capazes de usufruir do
bem-estar que tal direito a eles traria. Por esse mesmo motivo devemos
considerar que é do interesse de cães – mesmo que eles não verbalizem ou
reivindiquem tal interesse- não serem abandonados nas ruas, pois isso lhes
causa sofrimento, mas não faz sentido defender que possuem o direito de
vestirem-se como nós, pois isso não tem implicações para o seu bem estar como
tem para os humanos.

Dentre os obstáculos a um movimento de
libertação animal, assim como o movimento negro, das mulheres e outros, está à
ideia de nós, seres humanos, somos fundamentalmente distintos de outras
espécies em um nível primordial. A nossa linguagem carrega esta ideia
equivocada: consideramos animais desde chimpanzés a ostras, e pessoas nós, seres humanos – mesmo que estejamos em termos evolutivos ou comparativos muito
mais próximos do chimpanzé do que o chimpanzé das ostras. Mesmo que
identificássemos um marcador claro entre nós e os outros animais, dificilmente
este marcador teria conteúdo ético, isto é, em nada justificaria ignorar o
sofrimento e infligir dor desnecessária aos nossos semelhantes. Outro obstáculo
está no fato de que os animais não-humanos, apesar de manifestarem seu
sofrimento  de forma muito semelhante à nossa, não podem se organizar para
defender seus interesses. E um terceiro fator, particularmente grave, é que
outro grupo de animais passíveis de interesses – nós, humanos – somos
beneficiários diretos da opressão dos demais, tal como os senhores de escravos
do passado (os quais racionalizavam basicamente os mesmos argumentos dos
especistas de hoje, como superioridade, utilidade, necessidade, tradição) se
beneficiavam da desconsideração de interesses de outros seres arbitrariamente
considerados como “diferentes”.  E, sabidamente, somos bastante relutantes
em questionar situações que nos beneficiam.

O que é Humanismo? Declaração de Amsterdã 2002

Em 1952, no 1º Congresso Humanista Internacional, os fundadores da IHEU convergiram para uma declaração dos princípios fundamentais do humanismo moderno. Eles a chamaram de “Declaração de Amsterdã“. Esta declaração foi um fruto de seu tempo: situada no mundo da política de grandes poderes da Guerra Fria.
O Congresso Humanista Internacional marcando seu aniversário de 50 anos, em 2002, novamente realizado na Holanda, unanimemente homologou uma resolução atualizando a declaração: a “Declaração de Amsterdã 2002”. Em seguida ao Congresso, a declaração atualizada foi adotada por unanimidade pela Assembleia Geral da IHEU, e assim se tornou a declaração oficial de definição do humanismo global.

Declaração de Amsterdã 2002

O humanismo é o resultado de uma longa tradição de livre pensamento que foi inspirada por muitos dos grandes pensadores e artistas criativos do mundo, e deu origem à própria ciência.



Os fundamentos do humanismo moderno são os seguintes:


  1. O humanismo é ético. Ele afirma o valor, a dignidade e a autonomia do indivíduo e o direito de todo ser humano à maior liberdade possível compatível com os direitos dos outros. Humanistas têm um dever de cuidado para com toda a humanidade, incluindo gerações futuras. Humanistas acreditam que a moralidade é uma parte intrínseca da natureza humana, baseada no entendimento e na preocupação para com os outros, não necessitando de sanção externa.
  2. O humanismo é racional. Busca usar a ciência criativamente, não de forma destrutiva. Humanistas acreditam que as soluções para os problemas do mundo estão no pensamento e ação humanos em vez de na intervenção divina. O humanismo defende a aplicação de métodos de ciência e livre investigação para os problemas de bem-estar humano. Mas humanistas também acreditam que a aplicação da ciência de da tecnologia deve ser moderada por valores humanos. A ciência nos dá os meios mas valores humanos devem propor os fins. 
  3. O humanismo apoia a democracia e os direitos humanos. O humanismo visa ao mais pleno desenvolvimento possível para cada ser humano. Defende que a democracia e o desenvolvimento humano são questões de direito. Os princípios da democracia e dos direitos humanos podem ser aplicados a muitas relações humanas e não se restringem aos métodos de governo.
  4. O humanismo insiste que a liberdade pessoal deve ser combinada à responsabilidade social. O humanismo ousa construir um mundo sobre a ideia da pessoa livre responsável pela sociedade, e reconhece nossa dependência do mundo natural e nossa responsabilidade por ele. O humanismo é não-dogmático, e não impõe um credo a seus aderentes. É, assim, comprometido com a educação livre de doutrinação.
  5. O humanismo é uma resposta à demanda generalizada por uma alternativa à religião dogmática. As religiões majoritárias do mundo alegam ser baseadas em revelações fixas para todo o tempo, e muitas buscam impor suas mundivisões a toda a humanidade. O humanismo reconhece que o conhecimento confiável sobre o mundo e nós mesmos emerge através de um processo contínuo de observação, avaliação e revisão.
  6. O humanismo valoriza a criatividade artística e a imaginação e reconhece o poder transformador da arte. O humanismo afirma a importância da literatura, da música, e das artes visuais e performáticas para o desenvolvimento e plenitude pessoais.
  7. O humanismo é uma postura de vida com meta na máxima plenitude possível através do cultivo de um viver ético e criativo e oferece meios éticos e racionais de atentar-se para os desafios de nossos tempos. O humanismo pode ser um modo de vida para todos em todo lugar.
Nossa tarefa primária é conscientizar os seres humanos nos termos mais simples do que o humanismo pode significar para eles e de que comprometimentos ele implica. Ao utilizar a livre investigação, o poder da ciência e da imaginação criativa para o avanço da paz e a serviço da compaixão, temos confiança de que temos os meios de solucionar os problemas que confrontam a todos nós. Chamamos a todos que compartilham dessa convicção para se associarem a nós nesse esforço.
— Congresso da IHEU, 2002.