A páscoa evangélica da Chocolates Garoto

Pode-se dizer, sem medo de errar, que os chocolates Garoto fazem parte da infância de quase todos os brasileiros, e em todas as gerações que vivem atualmente. Afinal, a Garoto já tem mais de 80 anos. Pode-se dizer também que a Garoto tem um certo valor afetivo para o Brasil.
O paladar e, mais especialmente, o olfato, são sentidos que estão intimamente ligados às nossas memórias afetivas. Alguns de vocês, ao sentir o cheiro de algum desses produtos, possivelmente lembram de bons momentos na infância, especialmente na páscoa: um ritual benigno, baseado em parte na torrente de serotonina que o triptofano do chocolate nos dá, que já se secularizou há muito tempo.
Quando vi o ovo de páscoa do personagem cristão “Smilingüido” (que preservou o trema em seu nome pela intervenção divina), produzido pela Garoto, fiquei preocupado. Primeiro, porque pensava que a Garoto fosse uma empresa laica, secular, preocupada em nos satisfazer pelo paladar e não pela fé. Em segundo lugar, pela natureza da mensagem impressa na embalagem do produto.
O copo que vinha de brinde no ovo de páscoa diz “minha alegria não depende das circunstâncias mas do amor do meu criador”. Posso ser chamado de exagerado, mas ensinar a crianças esse estoicismo destacado da realidade e conformista, de que a alegria não depende do estado das coisas do mundo (e como as moldamos para melhorar), não é adequado.
Tenho brincado que parte da comunidade evangélica (inclua-se a Renovação Carismática Católica aqui) parece ter inveja do mundo secular, e por isso precisa criar cópia de tudo: rock gospel, acarajé gospel, até sex shop gospel já lançaram. Só existe um nome para essa tentativa de se apropriar de tudo o que há de bom no mundo, fazendo sua própria versão “purificada”: fundamentalismo.

Posso compreender que a Chocolates Garoto queira lucrar surfando na onda proselitista do movimento evangélico e católico. Mas, enquanto cresce o ressentimento de setores mais progressistas da população com os doutrinadores de crianças, creio que não é pequeno o preço que se paga por associar a imagem de uma empresa tradicional e até então aparentemente laica ao absolutismo moral e ao substituicionismo social de certos grupos.

P.S.: Curiosamente, o personagem Pildas, da turma do Smilingüido, estava ausente na embalagem do produto. Pildas é uma formiga “negra”: tem lábios grossos e antenas crespas, e lembra bastante o modo como os negros eram retratados em desenhos antigos (vide aqui: http://www.youtube.com/watch?v=gH4ivOyO0PQ) que hoje são considerados inapropriados. A dona do Smilinguido, a editora Luz e Vida, chegou a fazer um boneco do personagem.

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Eli Vieira
presidente da LiHS