O delírio irracionalista

Por José Guilherme Merquior

Originalmente publicado em 14 de março de 1981, no Jornal do Brasil.

            A missão “política” da crítica liberal é combater a intolerância ideológica. Sua tarefa epistemológica – sua missão no campo do conhecimento – é restaurar o sentido da objetividade. Um dos maiores vícios da frívola mentalidade “humanística” de nossos dias consiste na tendência a promover a permissividade epistemológica a[1] pretexto de virtuosa tolerância ante a diversidade de opiniões. Mas a verdade é que, enquanto a tolerância frente a multiplicidade de posições e correntes ideológicas é um inestimável valor social, a indulgência indiscriminada em face das teorias e interpretações é uma autêntica abdicação intelectual. Devemos, como Voltaire, defender até o fim o direito dos outros à discordância – mas isso absolutamente não implica que se renuncie ao direito de julgar as ideias conforme critérios rigorosos de observância lógica e veracidade empírica.

            Tal direito, nas mãos de quem quer que professe a pesquisa da realidade, natural ou social, se converte num dever da inteligência. O humanistazinho que vem nos dizer que a obra de Kafka é “polissêmica” e que, “portanto”, cada uma de suas contraditórias interpretações é “tão válida quanto a outra” não é um tolerante simpaticão – é um pobre de espírito ou um medroso mental, alguém incapaz de cumprir uma das mais nobres entre as aspirações humanas: a de procurar a verdade. Ninguém, é certo, pode legitimamente ser considerado “dono da verdade” – exceto a própria realidade, o princípio perfeitamente objetivo do conhecimento do real. Não levar isso em conta é confundir liberdade crítica com licença relativista. A obra de Kafka é sem dúvida polissêmica e até ambígua; mas seus níveis de sentido são suficientemente hierarquizados para que uns valham mais que outros e algumas de suas “leituras” são, simplesmente, falsas – desmentidas pela verdade do texto e do seu contexto cultural. Portanto, todas as interpretações não se equivalem.

            Um dos cavalos de batalha do relativismo humanista é a denúncia do “dogmatismo” da certeza científica. Como se, depois de Popper, ainda coubesse identificar conhecimento objetivo e certeza inconcussa – exatamente o que nega a teoria popperiana da falseabilidade das hipóteses científicas, de resto aprimoradas pelas análises de outro epistemólogo da London School of Economics, Imre Lakatos.

            Outro cavalo de batalha humanista é uma refutação irrefletida da tese da unidade da ciência, também xingada de preconceito “positivista”. Os humanistas contemporâneos são quase todos adeptos de uma concepção culturalista, antinaturalista do saber – de votos de Dilthey na filosofia de ontem, ou de Habermas, na de hoje. No entanto, quando examinamos os argumentos correntes contra a aplicabilidade de critérios científicos às humanidades, deparamos é com uma vasta coleção de equívocos. Mencionemos apenas três. Não é possível – alega-se – analisar de modo científico uma obra de arte, ou um acontecimento histórico, porque sua característica número um é a unicidade; ora, a ciência busca leis, e diante dela é preciso repetir o sábio dito de Goethe: “Individuum est ineffabile”. Infelizmente, para os humanistas, se a ciência recuasse tanto diante do único e do irrepetível, a geologia não seria uma ciência natural… Bom – replica o humanismo epistemológico –, mas e a experimentação? não podemos experimentar com fatos sociais, logo não podemos verificá-los cientificamente. Decerto – só que tampouco se experimenta em astronomia, a própria disciplina que hospedou a formação galileana da ciência moderna… Último argumento: a complexidade das variáveis que entram em jogo nos fenômenos sociais. E todavia, elas não são menos numerosas, nem menos complexas, no terreno da meteorologia. Moral: a menos que esteja disposto a acolher geologia, astronomia e meteorologia nas humanidades, o humanista se acha obrigado a renunciar aos tabus da unicidade, do experimento e da complexidade como álibi para eximir o humano dos critérios de análise científica.

            Notem que não estou propondo desvalorizar nada em favor do científico. Não me passa pela cabeça, por exemplo, requerer a cientifização da moral ou reger a arte, como outrora quis a utopia dos naturalistas à Zola, pelos ditames da ciência. É preciso deixar bem claro que o cientificismo, o imperialismo ideológico da ciência, não é científico. De resto, historicamente, o cientificismo é uma perversão da metafísica, não o produto bastardo de nenhuma ciência.

            Como prova de que nossa defesa da ciência não é imperialista, direi uma palavra acerca de um fenômeno curiosamente ligado a pressupostos cientificistas, e não obstante negligenciado pelo humanismo reinante. Trata-se do modo de educação estética que tende a prevalecer em nossa sociedade. Na sociedade burguesa tradicional, a familiarização do indivíduo com a chamada alta cultura – a alta literatura, a música erudita, as belas artes – se processava primordialmente, senão exclusivamente, fora da universidade. Ninguém ia aprender literatura na faculdade de letras; lá, no máximo – e graças à erudição filológica vigorosamente acumulada desde a era romântica – se podia aprender muito sobre literatura. Hoje, em contraste, tudo se passa como se o aluno chegasse literariamente virgem ao primeiro ano dos cursos de letras. Em outros termos, o futuro especialista é geralmente um inculto, cuja instrução não mais se nutre de uma prévia educação. Pode alguém se admirar de que semelhante idiot savant, surdo à música de um bom verso, insensível a um só tempo à ars e à sofisticação humana dos grandes textos literários, presa da insegurança da sua incidência, mergulhe no fetichismo dos modelinhos pseudo-rigorosos de análise do que ele jamais assimilou? Ouçamos o protesto de Roger Shattuck, corajoso desmistificador do ensino das letras nos Estados Unidos: “Hoje em dia espera-se dos estudantes uma leitura mais extensa e mais cuidadosa de teoria literária e metodologia do que de obras literárias.”

            Imaginem que Shattuck chega a recomendar, como remédio para a institucionalização da barbárie no ensino de letras, que se reviva o hábito de ler, e ler em voz alta, os clássicos antigos e modernos!… Onde iríamos parar se o senso de literatura partir da leitura, da vivência do poema ou do livro?… Como sabemos, em nossa gloriosa civilização universitária, a ingênua palavra “leitura” virou um pedante sinônimo de exegese. Críticos que não sabem ler (e muito menos escrever, o que não os impede de galgar até mesmo a direção de alguns departamentos de letras) perpetram “leituras” e mais “leituras” sobre o que tresleram, para os que não leram… Vivemos sob o império da estranha raça dos hermeneutas apedeutas.

            Max Weber, que ninguém jamais ousou considerar um simplório na matéria, aconselhava a preocupação com o método, em ciências humanas, a fugir da “pestilência metodológica”. O problema é que, na atual situação das humanidades, seu conselho é dificílimo de aplicar. O reino do publish or perish, – da publicação competitiva, da tese pela tese, antítese do verdadeiro estudo, da corrida ao grau e do psitacismo doutoral – encoraja e estimula o pseudoespecialismo, e não há pseudoespecialismo sem idolatria do método e fanatismo do modelo.

            Gerald Graff, um professor da Northwestern University que tem assombrado Berkeley com sua repulsa aos credos críticos em voga, julga que o boom da “desconstrução” dos Derrida e Paul de Man está em conexão estreita com o furor publicandi acadêmico. De fato, o sistema do publish or perish acarreta fatalmente o colapso de padrões rigorosos de avaliação da produção crítica universitária, já que a quantidade de publicações é por si só incompatível com uma qualidade intelectual superior. Nessas condições, porém, uma escola de crítica que ataca como repressiva (e “logocêntrica”) a própria ideia de interpretação correta parece fadada ao triunfo. A anarquia da exegese, o obscuro e monótono ritual da “desconstrução”, confere status filosófico ao triste resultado da inchação universitária.

            Os pseudoespecialismos não são bobos: na maioria dos casos, se apresentam como exemplos de fecundidade “interdisciplinar”. Mas só um inocente não veria que sua verdadeira relação com as outras disciplinas – com a filosofia, a linguística ou as ciências sociais, ou com outras indisciplinas, como a psicanálise – é uma relação de pilhagem e não de intercâmbio ou assimilação. Desde a maré estruturaloide, a crítica saqueia teorias alheias com muito mais arbitrariedade que discernimento. A consequência não é nenhum cruzamento cognitivo digno desse nome, e sim um contágio esclerosante de elucubrações mistificatórias – a farra da teorização irresponsável.

            Todo esse manso delírio irracionalista se vê reforçado pelas premissas irracionais da mentalidade literária identificada, epigonicamente, com o alto modernismo europeu. Graff tem sido um dos críticos da principal dessas premissas: a confusa noção de que a realidade não tem sentido, mas a literatura encarna um conjunto de vagos “valores” de suprema importância na luta contra o curso alienante da história… Em suma: o que venho chamando, desde O Fantasma Romântico, de guerra do modernismo contra a modernidade. Poderíamos considerar a apologia do “método mítico” da literatura moderna, feito por T. S. Eliot em seu célebre artigo em louvor ao Ulisses (1923) de Joyce, como o arquétipo desse posicionamento. Segundo Eliot, a vantagem do método mítico (minimizado por Pound em sua apreciação, também positiva, de Joyce) estava em seu poder de negação “da anarquia e futilidade de nossa época”. Falando claro: o mundo moderno não passa de um lixo…

            À saída do trauma da Grande Guerra, esse tipo de visão niilista da história moderna era pelo menos compreensível. Mas o anátema brandido contra a civilização pelos neomodernistas de plantão, os modernosos arautos da contracultura e das suas rebeliões prêt-à-porter, não tem sequer essa desculpa: já não é mais possível convencer ninguém de que a maneira mais inteligente de  reagir ao processo histórico é o acesso histérico de intelectuais preconceituosamente sublevados contra as sociedades de massas.

            O que a ideologia humanista mobiliza contra os valores da civilização industrial é que é, isso sim, um efeito mórbido da sociedade de massas – o despreparo e a incultura das submassas intelectuais no supermercado universitário. Nele, o ensino das letras e o aprendizado das ciências humanas ao mesmo tempo se imuniza contra a crítica racional e se compraz em agredir irracionalmente a sociedade, a começar pelos seus aspectos historicamente mais progressistas: a ciência e as instituições liberais. A contra-elite “humanista”, cujo amor pelo povo pode ser medido  pelo desdém com que ela julga as massas inteiramente “alienadas”, abandona alegremente o cuidado racional com a objetividade do conhecimento em troca de um profetismo apocalíptico, tão leviano quanto imaturo.

            Marginais burocráticos, rebeldes estatutários, mandarins “heréticos” (mas espantosamente conformistas), esses intelectuais aspirantes a intelligentsia constituem um crescente “clero” leigo, que atraiçoa o pensamento crítico em nome de um radicalismo ritualista. Na aurora da escolástica, a teologia buscou uma aliança com a[2] razão: fides quaerens intellectus.[3] No crepúsculo da consciência “vanguardista”, das seitas radicais em arte e política, é o oposto que se verifica – o intelecto se despede da razão, e lhe prefere as crendices de uma mentalidade apocalíptica transformada em jargão do espírito desempregado: intellectus quaerens fidem. É tempo de lembrar aos funcionários do humanismo de apostila que o único compromisso da inteligência é com a razão, e que o humanismo é algo demasiado valioso para ser confiado ao desvario dos humanistas.


[1]No original há “e” em vez de “a”. Julgamos tratar-se de erro tipográfico.

[2]Inserimos o “a” por julgar que sua ausência é outro erro tipográfico.

[3]Em latim: “A fé que busca o intelecto.” Adiante “o intelecto que busca a fé”.