Representação no MRE sobre passaportes diplomáticos

A LiHS vem a público informar que protocolamos em 15 de fevereiro do corrente ano (conforme se pode ver abaixo e neste pdf) uma representação no Ministério das Relações Exteriores (MRE) contra a expedição de passaportes diplomáticos para líderes religiosos.
A entidade entende que essa concessão para líderes religiosos fere princípios jurídicos sensíveis em nossa democracia e representa uma afronta à sociedade brasileira e à Constituição de 1988.
Como se sabe, foi noticiado pela mídia a concessão de passaportes diplomáticos ao Apóstolo Valdemiro Santiago de Oliveira, à Bispa Franciléia de Castro Gomes de Oliveira, ao missionário Romildo Ribeiro Soares (mais conhecido como R. R. Soares) e sua cônjuge Maria Magdalena Bezerra Soares, e ao Cardeal Geraldo Majella Agnelo. De acordo com informações do próprio MRE, essa concessão de passaportes se deu em “caráter de excepcionalidade” e para manutenção das atividades de suas igrejas no exterior, sem dar quaisquer outros detalhes.
Nossos argumentos se centram em 03 tópicos, que a seguir apresentaremos de forma resumida:

1) Não foi atendido o critério de “interesses do país”
O Decreto nº 5.978/2006 exige que a concessão excepcional desse tipo de passaporte seja dada em função de interesse do país. No pedido de concessão do passaporte especial, o requerente deve demonstrar que está desempenhando ou irá desempenhar “missão ou atividade continuada de especial interesse do país, para cujo exercício necessite da proteção adicional representada pelo passaporte diplomático”, conforme a Portaria n.º 98 do MRE.
É de conhecimento de todos que as igrejas chefiadas por esses líderes têm inúmeros templos no exterior e, por maiores que sejam os benefícios sociais das atividades religiosas para o bem estar das pessoas, em ações beneficentes em prol dos menos abastados, não se enxerga em quê tais atividades, promovidas por essas igrejas, entrem no conceito de “interesse do país”.
O Estado brasileiro não possui, em absoluto, nenhum interesse em manutenção de atividades de igrejas no território nacional ou fora dele. Os critérios legais não foram atendidos, o que configura desvio de finalidade.
“Ide por todo o mundo, pregai o evangelho” não consta como objetivo da Constituição da República.
Poder-se-ia falar nas atividades sociais desenvolvidas por essas igrejas, importantes sem duvida, contudo quantos milhares de ONGs, institutos, pesquisadores, associações, ligas, também promovem relevantes atividades de emancipação social, de cidadania, de promoção e defesa de Direitos Humanos e, ainda assim, não gozam do benefício do passaporte diplomático? A rigor, levada às últimas consequências, o passaporte diplomático deveria ser concedido aos representantes de todas essas entidades e pessoas elencadas, o que, no plano prático, banalizaria o uso desse documento, o que, por certo, desvirtua sua finalidade.
2) Violação do princípio da igualdade

Todos são iguais perante a lei (igualdade formal), mas pode existir tratamento diferenciado se houver justificativa lógico-racional para tanto (igualdade material).
O passaporte diplomático, em regra, é concedido às autoridades elencadas no Decreto nº 5.978/2006 tais como Presidente da República, Ministros de Estado, funcionários da carreira de Diplomata, parlamentares do Congresso Nacional, dentre outras. Nesses casos, está justificado o uso desse passaporte especial.
Contudo, para esses líderes religiosos a concessão desse ´passaporte é excepcional, daí a pergunta: qual o motivo lógico-racional que justifica esses passaportes para eles se o mesmo não ocorre com relação aos demais cidadãos, religiões, ONGs? Não há, o que também fere a moralidade administrativa.
Nem se fale em “histórica tradição cristã” ou que a maioria do povo brasileiro é cristão (argumentos sempre levantados quando se tomam medidas em prol da laicidade nesse país), mas nem um, nem outro ou os dois justificam, por exemplo, que tais passaportes não sejam concedidos a líderes de outras crenças e até mesmo para figuras ateias, agnósticas e céticas notórias.
Entretanto nem assim a igualdade estaria respeitada, pois o critério é “interesse do país”. Afinal, como já se disse, há inúmeras entidades (ONGs) e pessoas físicas (pesquisadores, profissionais) que também promovem relevantes atividades de emancipação social, de cidadania, de promoção e defesa de Direitos Humanos e que, ainda assim, não têm passaporte diplomático.
3) Violação da laicidade estatal

Pelo que já se expôs até aqui, não fica difícil imaginar que a laicidade também foi desrespeitada, afinal, como sabemos, a maior parte dessas atividades, se não todas, são palcos de pregações religiosas, com realização de cultos etc. para conversão de quem delas participam.
De forma sub-reptícia, o Estado brasileiro está financiando (subvencionando) cultos, celebrações religiosas, o que é expressamente proibido pelo art. 19, inciso I da Constituição de 1988.
Nos pedidos, solicitamos: a) a cassação dos passaportes diplomáticos de líderes religiosos; b) a disponibilização da lista e respectivos pedidos, em curso, deferidos ou indeferidos, de todas as autoridades religiosas solicitando passaporte diplomático; c) a disponibilização de eventual concordata firmada entre a Santa Sé e o Brasil para concessão de passaportes diplomáticos para clérigos católicos (caso em que a concessão estaria justificada, pois a Santa Sé é um Estado).
No atual quadro político de forte influência religiosa da bancada evangélica no Executivo e Legislativo, isso só confirma o risco da instauração de uma teocracia no Brasil, contra a qual a LiHS vem lutando desde sua criação, para que possamos construir uma sociedade livre, justa e fraterna.
Nota oficial do Conselho Jurídico Da LiHS