Verdades que nos convém…

Ultimamente tenho parado para analisar o quanto nós, seres humanos, estamos preparados a aceitar apenas aquelas verdades que nos convém, por mais absurdo e ilógico que seja.


Por diversas vezes, percebo que algumas das pessoas que se autodenominam ‘crentes’, usam alguma parte da ciência para provar que ‘X’ é algo bom, ou que é necessário para a vida dos seres humanos. E mais, usam apenas fragmentos fora do contexto para provar, e até mesmo ratificar alguma de suas tradições ou crenças. E para piorar a situação, essas pessoas realmente se aferram a essas idéias mirabolantes, e, o que inicialmente era algo irracional, e até mesmo uma inverdade para a própria pessoa, acaba por se tornar uma verdade na vida deste indivíduo.

 

Simplesmente não consigo entender.

Imortalidade

Quem quer viver para sempre?

Ser imortal é uma das maiores preocupações do ser humano. Gastamos tanta energia com essa ansiedade que esquecemos de viver a vida que temos.

A quantidade de eventos necessários para que cada um de nós pudesse estar vivo é absurdamente imensa. Tomando apenas o momento da concepção, dentre os milhões de espermatozóides, caso o do lado vencesse a corrida, haveria outra pessoa em meu lugar. Eu só existo porque exatamente aquele espermatozóide e aquele óvulo acabaram se encontrando naquele específico momento. Muito doido pensar nisso. Isso vale para cada pessoa no mundo. Se somarmos o fato de que, dentre todas as oportunidades de concepção entre meus pais, justamente aquela foi bem sucedida, o quadro torna-se ainda mais dramático. E se eles nunca houvessem se conhecido? E se no momento da concepção que os gerou, outro espermatozóide tivesse sido mais rápido? Agora acrescentemos todos os ancestrais…

Quando formamos na mente uma vaga noção da cadeia de eventos naturais que gerou cada pessoa do mundo, passamos a encarar a vida sob uma perspectiva diferente. Foi preciso haver uma ridiculamente enorme sequência de encontros para que se apresentasse a chance de cada um de nós existir. Só tivemos essa única chance, e a aproveitamos.

É difícil aceitar a ideia da morte como fim da consciência, como término da oportunidade de experimentar o mundo. A finitude da vida pode ser confortada, porém, pela consciência de que a probabilidade de nunca haver existido é infinitamente superior à de existir. Mesmo assim estamos aqui. Por que temer então a morte? Melhor fazer a vida valer a pena.

A fé religiosa nos tem feito acreditar que a vida que temos é apenas um estágio supervisionado, ou pior que isso, um estágio probatório. Nada disso! Somos autônomos. Devemos fazer o bem não por causa de um relatório a prestar no final, mas simplesmente porque isso torna a vida melhor, a minha e a de todos os que tiveram a oportunidade ao mesmo tempo que eu.

A imortalidade não está no paraíso, mas nas melhorias que proporcionamos ao mundo, pois ele vai continuar existindo depois que nos formos, e outras pessoas com a mesma sorte poderão usufruir daquilo que deixarmos como herança. Ser imortal é permanecer no mundo, na saudade do mundo. Enquanto isso não acontece, sejamos apenas felizes mortais.

Ateísmo

Não acredito em deus. Sou ateu.

Quer saber o porquê?

Acredito que todos os deuses, antigos ou atuais, são criações humanas, pois simplesmente não conseguimos aceitar a ideia da morte. Gandhi disse: “viver seria um passatempo absurdo se tudo acabasse com a morte”. A ideia da presença de um deus é tão forte culturalmente que acaba por (de)limitar a visão de mundo, quase sem questionamentos. Se você tivesse nascido árabe, provavelmente acreditaria em Alah. Se tivesse nascido tupi-guarani rezaria para Nhanderuvuçu ou Tupã, seu mensageiro-trovão. Se fosse um egípcio há três mil anos, teria mais de uma dezena de deuses para lhe explicar o mundo. Somos nascidos no ocidente, na América, e devemos ser, culturalmente falando, cristãos. Todos os outros deuses tendem a parecer ridículos e fantasiosos, menos o nosso. E são milhares deles!

Mitos. É o que são todos os deuses, independentemente da época ou cultura. Personificações mitológicas para confortar nossa finitude e imperfeição e para fornecer respostas prontas a nossas inquietações. Em meu modo de pensar, a humanidade ainda se libertará de deus e poderá atingir seu verdadeiro potencial. Deixaremos de acreditar no divino e passaremos a cuidar mais do humano. Deixaremos de lamentar passivamente nossa frágil condição e passaremos a construir o verdadeiro bem-comum. Aí sim teremos paz, igualdade e fraternidade. Como dizia John Lennon: “imagine there’s no heaven… and no religion too”.

Sou ateu por acreditar que a fé religiosa e a noção de deus nos limitam, nos segregam e nos impõem um temor constante da própria vida. Sou ateu por acreditar que toda essa história cristã, por mais tocante que seja, é uma grande e elaborada mentira. Sou ateu e não estou sozinho. As pessoas estão perdendo o medo de pensar por si próprias.

Pensar assim não significa deixar de aproveitar o que de bom ensinam as religiões. Pensar assim não significa jogar fora as virtudes, o bom senso, a responsabilidade e a moral. Exercer tudo isso sem a noção de um juiz observador pode ter mais valor do que fazê-lo apenas pelo temor do julgamento e da punição do sofrimento eterno. Mesmo sem estar engajado em algum programa voluntário, minha espiritualidade chama-se altruísmo, seja como mera esperança, concepção de mundo ou ideologia de humanista secular.

Se essa leitura puder proporcionar uma nova perspectiva a considerar, já terá valido a pena.

Ciência não é ateísmo

Publicado anteriormente com o título “A ciência é ateia?” no Bule Voador.

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Já vi ateus dizendo que a ciência é ateia. Este tipo de afirmação costuma ser errado por motivos complicados. Em primeiro lugar, de quem é a responsabilidade de dizer o que é ciência ou não é? Esta tarefa, em última instância, acima dos rótulos governamentais e burocráticos, é uma tarefa dos filósofos da ciência. Fiz três cursos de filosofia da ciência / epistemologia na graduação e na pós-graduação, e jamais, em material algum, encontrei a negação da existência de seres sobrenaturais como premissa no critério de demarcação de qualquer filósofo da ciência. E mesmo se houvesse, isso seria bizarro, pois seria encontrar na definição de uma área uma referência descabida a outro campo, como por exemplo uma receita de bolo que dissesse nos ingredientes “não acrescente tungstênio”.

Dizer que cachorro é o que não é gato, coelho ou cavalo não costuma ser uma boa forma de definir cachorro. Chamar seu pai de “você-que-não-é-a-mamãe” no mínimo não tem o mesmo poder de fazer ele responder a seu chamado. A ciência vive muito bem sem a qualificação de “sistema-em-que-não-se-acredita-em-deuses” porque o ateísmo é a crença de um grupo de pessoas sobre a crença de outro grupo de pessoas, discordando do que estas últimas acreditam, e não uma doutrina delimitada e propositiva. Em contraste, todas as ciências precisam ser propositivas sobre seus objetos de estudo. (E antes que me incomodem dizendo que ateísmo é só ausência de crença, recomendo que dêem uma olhada nas pesquisas de Sam Harris e nos argumentos de Desidério Murcho sobre o que é crença e crença justificada – esta última também chamada de conhecimento.)

Alguém pode acreditar, como eu acredito, que a ciência é útil para os argumentos dos ateus. Mas, quando alega que a ciência é ateia, ou quando sinonimiza ciência a ateísmo, está apenas sendo ignorante em filosofia e história da ciência. Foi para “a maior glória de Deus” que Lineu criou o sistema de classificação que os biólogos usam até hoje. Newton acreditava que era Deus quem mantinha os planetas em suas órbitas, foi preciso o trabalho posterior de Laplace para que ficasse claro que Deus não era premissa da mecânica de Newton.

Jean-Baptiste de Lamarck, que trabalhou para explicar a origem das espécies pela transformação progressiva do uso e desuso (sendo o item do progresso o único citado aqui em que Darwin discordaria dele), também trabalhou para explicar o clima e as entidades geológicas, sempre em termos naturalistas. Jamais declarou ser ateu ou duvidar das doutrinas fundamentais do cristianismo.

Se a ciência fosse ateia, os cientistas teístas se sentiriam constrangidos em declarar que acreditam em algum deus, ou saberiam estar trabalhando pela derrocada de suas próprias crenças, o que não parece ser o caso.

Mas entendo por que alguns colegas de descrença tentam botar o rótulo do ateísmo na ciência: é uma tentativa de se aliar a ela apenas por sua autoridade. É a velha figura do puxa-saco que fica sempre pertinho da autoridade esperando que enquanto ela anda algumas gotinhas de suas virtudes espirrem sobre ele.

Evidentemente, só precisamos de correção lógica para notar que esse velado apelo à autoridade é uma falácia como qualquer outra, por mais que a(s) ciência(s) seja(m), de fato, autoridade(s) em questão de conhecimento.

Se o indivíduo quer afirmar que a ciência ajudou o ateísmo, precisa argumentar e mostrar isso. Eu argumentei em outro texto que as explicações científicas para o surgimento da mente, hoje, desnudam a contingência da mente diante do universo, e que portanto tomar a mente humana como análoga ou idêntica a outra alegada entidade existente no mundo externo não é diferente de tomar a cauda do pavão ou a tromba do elefante. A mente humana, a cauda do pavão e a tromba do elefante estão em igualdade de condições quanto ao status de necessidade no universo (mundo externo ou realidade). Ou seja, há tantos motivos para dizer que o universo foi planejado/criado quanto para dizer que ele foi “ramificado” (como a cauda do pavão) ou trazido à existência pela força muscular de um análogo cósmico da tromba do elefante.

Esta argumentação não é tão simples, e tem várias premissas que poderão ser julgadas problemáticas (e eu direi que este julgamento terá sido desinformado). De qualquer forma, debater a existência de fantasmas amorfos usando ciência como premissa não é fazer ciência, é fazer filosofia. As atividades que costumamos chamar de ciência pouco se importam ou se afetam por este debate.

Pergunte à física se existem elétrons, e ela ficará muda. Tudo o que ela dirá é que, se você pretende fazer coisas como computadores, usar o conceito de elétron como instrumento é uma boa pedida.

Se a própria ciência não pode estabelecer que seus conceitos dizem mesmo respeito a entidades que existem no mundo real, deixando este assunto para uma certa área da filosofia chamada metafísica, que dirá sobre existirem ou deixarem de existir entidades sobrenaturais das quais tanto se fala mas tão pouco se evidencia nas religiões?

A ciência não é ateia porque ela também não é teísta. Ela não é um conjunto de opiniões, mas um conjunto de práticas, macetes, técnicas, métodos, conceitos e teorias. Você pode dizer que ela é o martelo, que ela é o prego, ou até que ela é o ato transitório de bater o martelo no prego. Mas dizer que ela depende do ato de não acreditar em marceneiros não apenas carece de fontes, como também de bons argumentos.

Ninguém precisa dizer que ciência é ateia para dar força ao ateísmo. Basta investigar cientificamente as alegações da Bíblia: o resultado dirá “inconclusivo”, e não há nada mais satisfatório para um ateu do que um “inconclusivo” em contraste com o “inerrante” que certos crentes tentam nos empurrar goela abaixo.

Basta apontar as notáveis semelhanças entre os deuses favoritos da modernidade e os bichos-papões da imaginação das crianças (e em termos mais sofisticados, notar a semelhança psicológica entre a tendência infantil de personificar a natureza e a tendência religiosa de personificar a parte inacessível da natureza).

E basta notar que, numa notável semelhança com as mais importantes descobertas científicas, o ateísmo foi descoberto várias vezes na história contra diferentes fundos culturais: há registros milenares de ateus entre gregos, indianos e chineses. Enquanto isso, as religiões, escravas de contingências culturais, nunca conseguiram concordar entre si sobre que deuses existem, quantos são, que planos têm e quais são suas propriedades.

Divergência ou convergência, em qual dos dois processos há mais racionalidade? No encaixe instável que é a tentativa do ser humano de compreender o mundo aparente que o cerca, a convergência de conclusões independentes tem valor intrínseco de verdade, especialmente em ambientes culturais diferentes, nos quais “nada se cria, tudo se copia”.

Não incomodemos a falível e incompleta ciência enfiando nela nossas opiniões. Diamante é chamado de material mais duro porque risca qualquer outro material, não porque é inquebrável. E o diamante afiado da ciência se quebra facilmente ao primeiro sinal de contaminação ideológica.