Contra as reformas “quirais” das tribos políticas

Seja considerando em escala global ou nacional, a verdade é que a tal “direita” costuma ser desajeitada e ignorante e a tal “esquerda” está genericamente tendendo ao fanatismo e à auto-ilusão. Enquanto isso, há muita gente que se diz de “centro” buscando meio-termos entre os dois tipos de idiotice. 


Não vivemos em um mundo onde o mainstream dos conservadores é composto por burkeanos ou onde a maioria dos autoproclamados progressistas é composta por pinkerianos. Vivemos em um mundo onde “conservador” dominionista quer prender mulher que levou tiro na barriga alegando que ela cometeu homicídio culposo via aborto e no qual os alegados “anti-fa”, que bem poderiam ser chamados de “proto-fa”, atacam jornalista homossexual de origem asiática que estava cobrindo a “manifestação”. 


Ou seja, vivemos em um mundo onde há intensas disputas entre as tribos políticas e cujas propostas e visão de mundo são ignorantes, abjetas, grotescas: e, numa só palavra, iliberais. Como expressa Pinker, o Humanismo é sinônimo de Liberalismo Clássico e a ele devemos os valores fundamentais que distinguem as sociedades atuais das primitivas: Liberdade de Expressão, isonomia legal, isonomia entre os sexos, defesa dos direitos reprodutivos, liberdades individuais (que incluem liberdades econômicas e tolerância às sexualidades minoritárias), democracia participativa, o Estado de Direito, o Laicismo, etc. 


Obviamente há exceções, algumas até notáveis, de pessoas no cenário político global e nacional, seja qual afiliação possuírem, que não defendem majoritariamente propostas e visões de mundo abjetas. Ainda que haja tais exceções — e talvez até possa haver uma “maioria silenciosa” de agentes políticos pouco relevantes que não seja composta por ignorantes e grotescos — as políticas públicas são pesadamente influenciadas por agentes, noções, ideias e visões de mundo irracionais, falsas e/ou iliberais. 


Neste cenário é relativamente frequente que pessoas muito mais moderadas, mais racionais, dispostas ao diálogo — mas ainda fortemente influenciadas pela febre tribalista — proponham reformas moderadoras à sua facção política preferida. Genericamente é possível parafrasear tais clamores aproximadamente como o que se segue: “é necessário promover uma esquerda/direita mais tolerante, aberta ao diálogo e compromissada com resultados, capaz de incluir e atender os interesses de amplas parcelas da população”. 


Claro que o desejável é que todos os grupos, movimentos, partidos e indivíduos interessados e/ou atuantes em política fossem tolerantes, dialogáveis, compromissados com resultados e pretendessem promover paz e prosperidade à maioria (quiçá toda) da população. E é exatamente este o cerne do presente texto: há elementos desejáveis por si só, independente de sua filiação tribal; e propostas de políticas públicas devem ser avaliadas por seu próprio mérito, notadamente incluindo muitas destes elementos supramencionados, independentemente de sua origem tribal. 


Para haver uma melhora significativa do cenário político global e nacional é preciso superar o tribalismo reinante e seu infinito ciclo de reides e vendettas de cada grupelho contra seus rivais e adversários. E isso se consegue justamente ao abandonar alianças pétreas com grupos, partidos e indivíduos e rejeitar fidelidade tribal, mantendo ao invés disso uma abordagem crítica e analítica a respeito das propostas e suas consequências em potencial, independentemente da procedência das propostas e de quais grupos as apoiam. 


Ou a tolerância deixa de ser interessante se provier de um partido de direita/esquerda? Por acaso a disponibilidade ao diálogo deixa de ser desejável para a esquerda/direita? A tão atacada Liberdade de Expressão tem mesmo de ser negada a grupos de esquerda/direita? Compromisso com empiria e objetividade, foco nos resultados e em sua eficiência são fundamentalmente desinteressantes à esquerda/direita? Resumindo: importam mais as tribos ou as características das propostas e seus resultados? 


Então a forma de promover e fortalecer racionalidade, eficiência, moderação e diálogo no cenário político não é propondo “reformar” grupos tribais já muito agressivos e aguerridos, mas rejeitar toda e qualquer proposta ou visão de mundo que for irracional, obscurantista, iliberal, sectária e apoiar toda e qualquer proposta que seja racional, compromissada com objetividade e empiria, Humanista e que promova direitos individuais — independentemente de qual for a origem das propostas e de quais grupos ou indivíduos as apoiarem. E, sobretudo, analisar e criticar propostas práticas e ações, não meros discursos: em especial os discursos focados em inflamar uma tribo contra a outra, mas que não se traduzem em uma proposta clara e aplicável. 


Também é importante insistir na objetividade das análises e que elas incidam sobre os elementos das propostas e projetos, não sobre alegadas intenções. É muito frequente que pessoas tolas, ignorantes ou auto-iludidas causem males não por perfídia, mas justamente por não saberem, saberem errado ou acreditarem em bobeiras: mas justamente por causa de suas boas intenções militam fervorosamente em favor do que é, no mínimo, idiota e chega a ser até mesmo revoltante ou atroz. 


Um exemplo fácil: há muitos proponentes da besteria anti-vacinação. A enorme maioria dos militantes desta estupidez não é de gente pérfida que voluntariamente e conscientemente quer promover doenças, sofrimento e morte, mas de gente ignorante ou crente em falsidades: no entanto, a maioria é de gente bem intencionada e que nutre desejo sincero de proteger as pessoas e a comunidade do que erroneamente identifica como uma séria e urgente ameaça. 


Análogos aos anti-vaxxers são os bocós de direita/esquerda “anti-globalismo” (ou anti-globalização), os desenvolvimentistas, os defensores de ideologias comprometidas com o Totalitarismo e frequentemente genocida, os anti-GMOs, o ativismo anti-nuclear, os “tábua-rasistas”, os proponentes da supressão da Liberdade de Expressão, os teocratas ou dominionistas, entre muitos outros. Todas estas propostas/grupos/movimentos são danosos aos indivíduos, às comunidades ou até ao meio-ambiente, se contrapõem à promoção de paz e prosperidade ao maior número de pessoas (e em especial às que já tem menos destas coisas), mas geralmente seus defensores são pessoas com boas intenções. 


O que se faz necessário para superar o tribalismo no cenário político, que promove o populismo e o autoritarismo, o sectarismo e erode as Instituições, é a promoção de uma abordagem racional e analítica, comprometida com objetividade, empiria e eficiência de resultados, para a avaliação de propostas de políticas públicas. Em um ambiente no qual prepondere agentes com tal abordagem e eleitores que tendem a esta abordagem, os extremistas e sectários são eliminados por “seleção natural”, já que suas propostas divisivas, populistas, autoritárias ou danosas são identificadas e rejeitadas. 


A maioria dos elementos que permitem às sociedades atuais superar a mortalidade infantil, a violência endêmica, as epidemias evitáveis, a fome e a miséria é bem conhecida. É por isso que, hoje, mesmo as nações mais pobres e violentas do planeta se assemelham cada vez mais à rica Europa do início do século XX, com a prosperidade e a paz sendo promovidas a passos largos nos locais anteriormente mais miseráveis da Terra. Entretanto este estado de coisas não é, necessariamente, permanente, e depende da promoção e manutenção de valores Humanistas, de Instituições saudáveis, de diálogo e liberdade entre as pessoas e nações.


Quando visões de mundo equivocadas promovem propostas sectárias, excludentes, obscurantistas, iliberais, os elementos promotores de paz e prosperidade são ameaçados e, por vezes, erodidos. É desta forma que se chega a Maduros, Trumps, Bolsonaros, Kim Jong-Uns, Putins, etc e às medidas idiotas ou até mesmo obviamente danosas promovidas por eles e por seus partidários e também por seus adversários inconsequentes. O tribalismo só pode ser superado por um esforço consciente, metódico e racional para pensar “além da tribo”, não em seu benefício. E não são tribos que promovem prosperidade e paz, mas o reconhecimento das características universais humanas e o uso sistemático e voluntário da razão, mediante objetividade e empiria, em um esforço contínuo de cooperação para a consecução do maior bem-estar à maioria das pessoas do mundo. 

Greenwald, Moro, presunção de inocência e a mentalidade narrativista: falhamos enquanto democracia?

Alysson Augusto é licenciado e mestrando em filosofia pela PUCRS.
 

O Brasil enfrenta uma conjuntura que nos faz questionar quais são os fatos. Há pouco, o camisa 10 da seleção, Neymar, foi acusado de estupro e a opinião pública se dividiu: muitas pessoas tomaram prontamente o lado da acusadora, e muitas outras tomaram prontamente o lado do acusado. Do lado da acusadora, a compreensão de que ela foi vitimada por Neymar, e que a relativização dessa vitimização seria uma expressão de um machismo estrutural, foi determinante para sua defesa. Do lado do jogador, a compreensão de que muitas denúncias de estupro falsas estão vindo à tona, junto do vazamento de um vídeo que denotaria a má intenção da denunciante, seriam suficientes para definir como crime de extorsão a acusação feita pela mulher. 

Mal a polêmica sobre estupro esfriou, a atenção pública já se voltou à política. A bomba mais recente a cair no colo da opinião pública foi noticiada pela Intercept, do jornalista Glenn Greenwald, mostrando mensagens que comprometem a imagem do super-ministro da justiça Sergio Moro: será que o grande nome brasileiro no combate à corrupção é, também ele, alguém moralmente corrupto? 

Ataques e defesas à imagem do ministro, baseadas na polêmica propagada pela matéria de Greenwald, nos fazem questionar algo aparentemente simples: afinal, com quem está a verdade? Moro realmente comprometeu a isenção necessária para a aplicação da justiça na condução da Lava-Jato, incluindo a condenação de Lula? Estaria a Intercept fazendo mais barulho do que emitindo informações relevantes sobre a atuação do juiz? 

Aliás… Estaria Glenn Greenwald envolvido diretamente na aquisição das informações notificadas? Greenwald pagou um hacker para violar a privacidade do juiz Sergio Moro e do procurador Deltan Dallagnol? A ânsia por descobrir um vilão é visceral, e decorrente dos tempos primitivos da nossa origem evolutiva e tribal. 

Evidentemente, os questionamentos acima estão acirrando a disputa política: por um lado, cidadãos mais à esquerda do espectro político identificam no caso Moro a prova cabal de vínculo maquiavélico entre judiciário e ministério público — ora, quem julga o réu (Moro) não pode fornecer orientações para facilitar que o acusador do réu (Dallagnol) vença a disputa: seria como um juiz de futebol orientar um dos times a praticar certos ilícitos sem que essa ilicitude fosse devidamente punida. Alguns, ainda mais radicais, apostam numa verdadeira conspiração da máquina pública arquitetada contra o ex-presidente Lula. Por outro lado, cidadãos mais à direita entendem que as informações vazadas não são relevantes, ou então que são realmente criminosas, e qualquer um que venha a julgar o caso de Moro não deveria se basear em provas adquiridas por meios ilícitos — a invasão da privacidade do ministro e do procurador compromete a legitimidade das provas, não havendo como, por meios legais, destronar Moro do posto já conquistado. 

Diante do fato de que há um problema latente de direitos humanos em ambas as narrativas (Greenwald está sendo acusado de conluio para hackear a privacidade de Moro, e Moro está sendo acusado de corrupção moral), é preciso resgatar um pouco de filosofia. 

Acusações estão, muitas vezes, pavimentadas em boas intenções. Todos conhecemos a história de Sócrates, nome tornado marco filosófico na Grécia Antiga e que nos acompanha até hoje. Dadas algumas semelhanças, Sócrates tem lembrado Jesus, devido ao martírio que definiu a narrativa histórica de ambas as personagens: compartilham de uma causa, em nome da qual enfrentam a opinião pública; agradam alguns, desagradam outros e, acima de tudo, enfurecem detratores. 

Entretanto, se Jesus tem atualmente a favor de si uma legião de pessoas religiosamente engajadas, Sócrates tinha, em vida, a favor de si alguns amigos, dentre os quais esteve Críton, um moço rico que, após a condenação de Sócrates, propõe ao filósofo a possibilidade de fuga — por princípios, Sócrates recusou a oferta. Condenado por motivações populistas, difamado e caluniado sem que o autor da denúncia precisasse provar o que estava dizendo, e assim imputando a Sócrates o dever de proteger-se das acusações (no Direito e na Filosofia chamamos isso de inversão do ônus da prova), a história de Sócrates nos ensina sobre o valor de princípios imperativos para o ordenamento da sociedade, princípios que, na pólis contemporânea, vêm a ter lugar especial diante do poder político da mentalidade populista, inquisitória e punitivista. 

Platão, mais um grande nome tornado marco da filosofia antiga (há quem rejeite Prozac para tomar Platão como medicamento), teve a perspicácia de mostrar como condenações vagas não podem servir de parâmetro para a justiça, o que lhe fez ter profundo rancor da democracia devido ao seu potencial populista e gerador de imperfeição frente a um mundo onde a justiça é ideal e reproduz a si mesma. Essa idealização da justiça é parte do que Platão toma como “Mundo das Ideias”, em que as formas são fixas, imutáveis e toda a contingência do mundo deriva desse realismo transcendental. Ora, a justiça existe e deve ser buscada, ela está em algum lugar no mundo, ainda que as ações mundanas sejam comumente injustas mesmo no melhor dos sistemas políticos disponíveis (se é a democracia ou não, há quem conteste). A narrativa contemporânea de que tudo são narrativas e, portanto, a justiça é apenas mais uma dentre tantas, não sobrevive ao escrutínio platônico, e ainda que a possibilidade da aplicação da imparcialidade possa ser contestada, ela continua sendo desejada para a sustentabilidade de qualquer sistema no qual imperam conflitos. 

Infelizmente, a mentalidade narrativista — ou seja, essa inclinação a ver os fatos do mundo como nada além da história contada pelos mais fortes — não é exclusividade de alguns autores franceses contemporâneos. Ela está na gênese do conflito democrático: em vista de defender certos interesses, são necessários esforços específicos para a construção da justificação pública desses interesses: você precisa contar a sua mentira mil vezes até que ela se torne verdade. E o modelo a ser preenchido para gerar tal justificação costuma ser simples: 1) há um inimigo, 2) esse inimigo é caricatural e age como o mal encarnado, sendo contrário às melhores aspirações da sociedade civil, 3) “as melhores aspirações da sociedade civil” são aquelas que definimos ser, 4) conhecemos e vamos aplicar a solução para combater tal inimigo e, por óbvio, 5) somos os mocinhos que conhecem a realidade, queremos revelá-la e apenas estamos preocupados com o bem maior. É possível dar exemplos de como esse raciocínio se alastrou na história das civilizações, e como, especialmente no século XX, foi mote para a geração de líderes populistas que destruíram milhões de vidas sencientes, mas isto já ficou suficientemente explícito. 

O ponto a não se perder aqui é o seguinte: a democracia pressupõe interesses e é perfeitamente possível descrever esses interesses numa estrutura narrativa — ora, é exatamente isso que justifica a mentalidade narrativista, em que os conflitos são incessantes e a verdade é definida não pela objetividade do mundo, mas pela imposição do vencedor. Há mesmo aqueles que aceitam a narrativa de que tudo são narrativas e, diante disso, estabelecem critérios morais para discriminar quais narrativas valem ser adotadas, e quais não valem. Em alguns departamentos acadêmicos, o padrão de discriminação de quais narrativas merecem defesa tem sido a justiça social: se tal narrativa favorece a justiça social (seja lá o que isso signifique), ela merece defesa. Jonathan Haidt deixou incrivelmente claro como a priorização da justiça social traz externalidades injustas, e com ele é prudente concordar neste ponto: se tudo são narrativas, nada me impede de estabelecer como critério de defesa não a justiça social, mas a verdade. Ora, o que poderia me refutar diante de tamanho relativismo? Aliás, quem disse que é verdade que tudo são narrativas é verdade? Se há uma verdade absoluta sobre narrativas serem absolutas, então não há verdade absoluta. A coerência é impossível em uma mentalidade narrativista, e quando falamos em coerência estamos falando em lógica e adequação do intelecto à realidade, o que nos faz lembrar não apenas de Platão, como também de medievais como Tomás de Aquino e modernos como Immanuel Kant. 

Aliás, Platão também destacou que a sabedoria é prudente (phrónesis), e a prudência é o que dignifica o julgamento público, moral e jurídico. Nesse sentido, não há mérito em apontar o dedo para destacar culpados sem que tal atitude seja devidamente refletida pelo acusadora sabedoria dispensa aspirações populistas. Então, que prudência há na opinião pública? Como depender do conflito de narrativas, selecionando aquelas que, por nossos critérios (ou seja, por nossos vieses cognitivos), são as mais convenientes? A questão é: há como não delegar à opinião pública e ao eterno conflito de narrativas a determinação da verdade? 

Sim, de fato há. Existem certos parâmetros perfeitamente sensatos e aplicáveis, frutos de nossa razão, que são moralmente normativos para que possamos estabelecer posicionamentos seguros diante de polêmicas. E esses parâmetros estão implícitos ao longo deste texto: Neymar, Moro, Greenwald, Sócrates, Jesus… Todos têm em comum o fato de que foram acusados no tribunal da opinião pública, e a acusação também é um direito às partes que se sentem lesadas. A questão é justamente como lidar com a acusação. Se Neymar precisou vir a público e expor a intimidade compartilhada com a moça que o acusou, é porque ele sabe que estupro é coisa séria, e a opinião pública poderia destruir sua carreira se ele não fizesse algo a respeito (tal como o movimento #MeToo destruiu muitas carreiras, inclusive de mulheres, seja com acusações verdadeiras ou falsas). Da mesma forma, o burburinho das redes sociais, onde somos levados a crer em nossos amigos por mais que estejam defendendo falsidades (e isso é um problema muito maior e anterior à emissão de fake news), e a tendência  a crer em qualquer opinião que fundamente nossos preconceitos e predisposições ideológicas, acirram a necessidade de marketing pessoal: diante de uma acusação pública comprometedora, se você não fizer algo para pintar sua imagem como alguém inabalável pela acusação, você estará em maus lençóis. E assim temos não apenas Neymar se precavendo, como também temos Sócrates subindo ao púlpito e defendendo a si mesmo, bem como temos Moro dizendo que as mensagens reveladas não continham nada demais. Não sei se Greenwald já veio a público pintar a si mesmo como injustiçado, mas sei que o próprio Jesus só tinha doze apóstolos para enfrentar a maré de hebreus que passaram a vê-lo como impostor. 

O fato é que, na condição de meros espectadores que vivenciam todas as mais variadas polêmicas envolvendo personalidades nos noticiários, não devemos depender dos esclarecimentos públicos parciais das partes envolvidas, por mais que elas se prestem a mostrar-se inabaláveis. Devemos, isso sim, amparar nossos julgamentos em nossa própria racionalidade, e seguir princípios caros à construção de sociedades modernas, seculares e humanistas: devemos presumir a inocência dos acusados, devemos dar aos acusados o direito à ampla defesa (especialmente frente à opinião pública, que não usa togas e becas mas bate o martelo sobre a definição de carreiras no mercado), devemos, enfim, compreender que nem tudo são narrativas, que há uma verdade objetiva a ser esclarecida, que essa verdade é alcançável assintoticamente por mais que não consigamos ser perfeitamente imparciais de maneira individual, e que a forma de se aproximar de tal verdade é por meio do comportamento prudencial coletivo. 

Se a forma certa de bater o martelo fosse efetivada, talvez nem Sócrates e nem Jesus tivessem sido executados. Talvez Neymar seja absolvido, talvez Moro seja devidamente punido e, talvez, Glenn Greenwald tenha sua liberdade de imprensa respeitada. As diferentes narrativas enfurecem diante da imparcialidade, pois a parcialidade não sobrevive à constante tentativa racional de buscar a verdade, qualquer que ela seja. E a própria justiça é impossibilitada por uma abordagem narrativista, posto que a narrativa acusatória seria equivalente (e seu valor indistinguível do da) narrativa de defesa. 

 

Defesas da censura no Brasil que não fazem sentido (usadas inclusive no STF)

Duas objeções péssimas à liberdade de expressão:

1) “Você é livre para se expressar, mas não é livre das consequências de se expressar.”

Por que está errada: pode ser usada para defender qualquer tipo de censura. Afinal, todo tipo de censura injusta pode ser descrita como mera “consequência” da expressão. Defensores clássicos da liberdade de expressão já distinguem entre consequências legítimas e ilegítimas, a depender da expressão. Se a expressão não é difamação objetiva ou calúnia, incitação direta e inequívoca à violência (incluindo ameaças credíveis) ou ao pânico, nenhuma “consequência” que envolva o uso da força e da censura está justificada. Somente expressões contrárias devem ser as “consequências” de qualquer expressão fora dessas categorias. Nunca o autoritarismo de causar perdas materiais, de calar à força, ou de ameaçar a integridade física ou a liberdade de quem se expressou.

2) “Censura prévia é que é o problema.”

Esta objeção é tão popular no Brasil que já foi usada até pelo Dias Toffoli, presidente do STF. Por que está errada: a distinção entre censura prévia ou censura pós-fato é irrelevante. As categorias de expressão que devem ser limitadas pela força já estão estabelecidas (como discutido anteriormente). O autoritarismo contra expressões fora dessas categorias sempre busca uma desculpa para poder se impor, especialmente quando ele já dispõe da força para fazê-lo e busca apenas argumentos para se justificar. Alegar que o autoritarismo não foi aplicado antes da expressão se tornar pública, só depois, nada faz para justifica-lo de fato. De qualquer forma, a única censura verdadeiramente prévia é a autocensura, feita na intimidade dos próprios pensamentos do indivíduo. Todo o resto é censura praticada por outrem no mundo, variando só a quantidade de pessoas que a expressão atingiu. Existem diversas tentações para o autoritarismo: a expressão não agrada, a expressão expõe alguma coisa embaraçosa sobre alguém, a expressão expõe crimes praticados por alguém, a expressão ameaça tradições ou crenças que têm o afeto de pessoas e grupos poderosos, etc. Sociedades livres resistem a essas tentações. Indivíduos esclarecidos resistem a essas tentações. Sociedades e indivíduos autoritários se engajam nelas.

Finalmente, talvez por saberem intuitivamente os limites clássicos da expressão, algumas pessoas que querem expandir a censura usam de truques semânticos, como expandir o que quer dizer uma incitação à violência. É o caso dos defensores do “discurso de ódio” como novo limite à expressão. O truque, aqui, é chamar todo tipo de objeção preconceituosa (real ou percebida) a grupos discriminados de incitação à violência, quando com frequência isso não é verdade. O entendedor honesto da língua presume que quem tem ódio tem uma predisposição a agir violentamente com base nesse ódio. Chamar todo tipo de piada ou comentário preconceituoso de “ódio” e “discurso de ódio” é um apelo espúrio a essa intuição. O problema é que essa interpretação é com frequência falsa e não há nenhuma incitação real à violência por trás das expressões preconceituosas. Há outros motivos para deixá-las livres. Um motivo é que qualquer autoridade aplicadora da censura pode errar, somos todos falíveis, então criminalizar expressão preconceituosa é abrir espaço para pessoas inocentes do preconceito serem caladas à força. Outro motivo é que não saberemos o tamanho do problema do preconceito se as pessoas preconceituosas não são livres para se expressar. Além disso, impedir as pessoas alvo do preconceito de ouvir expressões preconceituosas é incentivar nelas uma psicologia de fragilidade, em vez de uma psicologia de resiliência.

We still reject your panic mode: Bolsonaro and Brazil so far

We at the Secular Humanist League of Brazil (LiHS) have a great deal of sympathy for Spiked Magazine’s “radical humanism” and the work of its editor Brendan O’Neill. We tend to concur with them that resistance to humanism is not only at the right-wing, as it’s normal to assume for almost every not-so-young humanist today after many decades of threats coming from the so-called “religious right”, in the context of the global conversation about human rights, science and progress.

Spiked and O’Neill have been at the forefront of criticism against the identitarian, post-modern-influenced “New Left”. They understand a “radical humanism” means defending freedoms and reason no matter where and no matter against whom. A radical humanist is prepared to lose friends defending humanism. Maybe that’s the “radical” part, even though we wouldn’t normally jump on any bandwagon praising any kind of “radicalism”. Radical ideas are often radically implausible.

The English-speaking world of Spiked and O’Neill’s is not identical, of course, to our Brazilian context. However, the sources that they often criticise are now the same international sources that are panic-mongers about president Jair Bolsonaro, who took office five days ago. As we told the German outlet Humanistisch International, Bolsonaro is no friend of humanism. The idea of humanism is clearly alien to him. However, reason demands not only that we disapprove of him for his ideas and words, but also that we make an accurate evaluation of his actions, not falling prey to panic, which would be both irrational and counter-productive. Unfortunately, this latter response is exactly what many humanists are doing, led by a dispirited radical left that is both among them and among our friends. A radical left that is in many ways anti-freedom and therefore anti-humanism by definition. Anti-freedom, for instance, when making up innovations on the limits of free speech that are not warranted by our received understanding of free speech.

English-speaking people in many ways are accustomed to freedom. It comes naturally to many of them. They wouldn’t imagine that every single social problem can only be solved by government intervention. It might be changing (as it seems to be the case with the outrageous law against ‘offensive’ pornography in Britain), but ever since John Locke and John Stuart Mill, British people don’t often see a lot of difference between liberalism and humanism, for how could we live well as individuals if forces more powerful than us prevent us from doing whatever it is that we want to do as jobs or in our bedrooms? Brazilians are often not like that. Saying some problem must be solved by government intervention is almost a knee-jerk reaction for many. For historical reasons, Brazilians are more prone to see government intervention as normal, no matter the costs to liberty. If you want to pay minimum wage to a single employee, government intervention makes you the “bargain” of one employee for the price of three. If you want to provide services on your own, it’s not uncommon that you’d be obliged by law to pay a third of what you make in taxes. As a result, millions of Brazilians are unemployed or “informally employed”, living on the edges, and suffering.

If a (radical) humanism is pro-freedom, what are we to make of Brazil’s enormous, oppressive, anti-free enterprise government? What are we to make of the many parts of the left-wing who approve of this state of affairs and cry out in anger at every attempt at lessening the heavy presence of the State in the individuals’ lives? English-speaking people on the left must understand that they are often not the same species as Latin American leftists. While socialism has only recently begun to be presented as not so evil as the received wisdom portrays it in the US, it’s never been fully discredited in Latin America, so the element of authoritarianism is always present on both sides of the traditional political divide. To give you a practical example: recently we’ve seen a legitimate, serious Stalinist organisation spreading their word on southern university campuses in Brazil, praising Stalin as the father of the people. Meanwhile, we’ve also seen swastikas drawn in various places during the presidential campaigns, but most if not all of them were the creations of Bolsonaro’s opposition trying to discredit him with false flags. There is, therefore, a double standard here, in which the authoritarian errors of the far right are recognised, but not those on the far left. Yes, we have the full spectrum of being on the left, with non-authoritarians defending nothing but an achievable welfare state, for instance. But with Latin America you never know the full extent of authoritarian elements being eschewed from acceptable, mainstream parties and discourse. Equally wrong is how Bolsonaro’s supporters seem to see every left-wing thing as full Communist.

Bolsonaro has partnered with liberal economists like minister Paulo Guedes, who want less government and more individual autonomy. It’s something very, very new in Brazil. In doing so, Bolsonaro is denying a long past he had as an interventionist member of parliament. If humanism means accepting freedom as a whole, including in the economic area, then there’s reason to be hopeful about Brazil. Of course, this hope needs to be balanced out with Bolsonaro’s conspiracy theories about communists and many social freedoms behind a humanist’s support and concern for minorities and women. But still, we insist that he be judged more on actions than on words, like in fact everyone should be.

But panic-mongering is fashionable. Take The Independent, for instance, in a piece they’ve published about Bolsonaro’s first acts as president. It wrongly claims that food was “seized” from reporters perceived as ideological opponents by Bolsonaro on his inauguration day. It claims Bolsonaro is targeting LGBT people, and all evidence they have of that is his government’s choice of words for an institution that decided that “LGBT” is within “human rights” and therefore need not be mentioned. It might be a step towards persecution, but it’s not sufficient to claim what The Independent has claimed.

Also, so far no lands from natives or quilombolas were expropriated by the government (and expropriation would be more ideologically resonant with the Venezuelan government, fiercely opposed by Bolsonaro, then with his government who claims to respect private property). But yes, the institutions responsible for the demarcation of these lands were changed in a worrisome direction. This piece by the Independent is an exercise on spin, not a level-headed evaluation of what’s happening in our country. It’s shameful, therefore, and it would be rightly criticised by Spiked and O’Neill if they knew what we know.

To summarise:

  • Bolsonaro has yet to do anything extreme. He has not done anything extreme to date, and it’s too early to claim he has.
  • Most of his most extreme words are old, he’s toned down his discourse even though he’s still in the adversarial mode he espoused while running for president.
  • Brazil has serious institutions and there are no legal avenues for Bolsonaro to pursue anything resembling fascism.
  • The left-wing Worker’s Party, who has governed Brazil from 2003 to 2016, has the larger numbers of seats at both chambers of parliament.
  • The Federal Supreme Court is also an independent alternative to curb anything extreme done by Bolsonaro as president.

We at LiHS refuse to fall prey to panic. We will not be pressured by often anti-humanist panic-mongers to see an imaginary Armageddon. To us, Bolsonaro is a continuity in the difficulties we’ve witnessed in the 9 years since we started our work. Difficulties whose source were never restricted to one single political tribe. You can be sure we will not let slide any major actions he could take against our values. But we are not an organisation that serves vacuous political tribalism. Our one and only commitment lies with humanism. Irrational fears are not humanist.

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Eli Vieira is the president of the Secular Humanist League of Brazil.