Greenwald, Moro, presunção de inocência e a mentalidade narrativista: falhamos enquanto democracia?

Alysson Augusto é licenciado e mestrando em filosofia pela PUCRS.
 

O Brasil enfrenta uma conjuntura que nos faz questionar quais são os fatos. Há pouco, o camisa 10 da seleção, Neymar, foi acusado de estupro e a opinião pública se dividiu: muitas pessoas tomaram prontamente o lado da acusadora, e muitas outras tomaram prontamente o lado do acusado. Do lado da acusadora, a compreensão de que ela foi vitimada por Neymar, e que a relativização dessa vitimização seria uma expressão de um machismo estrutural, foi determinante para sua defesa. Do lado do jogador, a compreensão de que muitas denúncias de estupro falsas estão vindo à tona, junto do vazamento de um vídeo que denotaria a má intenção da denunciante, seriam suficientes para definir como crime de extorsão a acusação feita pela mulher. 

Mal a polêmica sobre estupro esfriou, a atenção pública já se voltou à política. A bomba mais recente a cair no colo da opinião pública foi noticiada pela Intercept, do jornalista Glenn Greenwald, mostrando mensagens que comprometem a imagem do super-ministro da justiça Sergio Moro: será que o grande nome brasileiro no combate à corrupção é, também ele, alguém moralmente corrupto? 

Ataques e defesas à imagem do ministro, baseadas na polêmica propagada pela matéria de Greenwald, nos fazem questionar algo aparentemente simples: afinal, com quem está a verdade? Moro realmente comprometeu a isenção necessária para a aplicação da justiça na condução da Lava-Jato, incluindo a condenação de Lula? Estaria a Intercept fazendo mais barulho do que emitindo informações relevantes sobre a atuação do juiz? 

Aliás… Estaria Glenn Greenwald envolvido diretamente na aquisição das informações notificadas? Greenwald pagou um hacker para violar a privacidade do juiz Sergio Moro e do procurador Deltan Dallagnol? A ânsia por descobrir um vilão é visceral, e decorrente dos tempos primitivos da nossa origem evolutiva e tribal. 

Evidentemente, os questionamentos acima estão acirrando a disputa política: por um lado, cidadãos mais à esquerda do espectro político identificam no caso Moro a prova cabal de vínculo maquiavélico entre judiciário e ministério público — ora, quem julga o réu (Moro) não pode fornecer orientações para facilitar que o acusador do réu (Dallagnol) vença a disputa: seria como um juiz de futebol orientar um dos times a praticar certos ilícitos sem que essa ilicitude fosse devidamente punida. Alguns, ainda mais radicais, apostam numa verdadeira conspiração da máquina pública arquitetada contra o ex-presidente Lula. Por outro lado, cidadãos mais à direita entendem que as informações vazadas não são relevantes, ou então que são realmente criminosas, e qualquer um que venha a julgar o caso de Moro não deveria se basear em provas adquiridas por meios ilícitos — a invasão da privacidade do ministro e do procurador compromete a legitimidade das provas, não havendo como, por meios legais, destronar Moro do posto já conquistado. 

Diante do fato de que há um problema latente de direitos humanos em ambas as narrativas (Greenwald está sendo acusado de conluio para hackear a privacidade de Moro, e Moro está sendo acusado de corrupção moral), é preciso resgatar um pouco de filosofia. 

Acusações estão, muitas vezes, pavimentadas em boas intenções. Todos conhecemos a história de Sócrates, nome tornado marco filosófico na Grécia Antiga e que nos acompanha até hoje. Dadas algumas semelhanças, Sócrates tem lembrado Jesus, devido ao martírio que definiu a narrativa histórica de ambas as personagens: compartilham de uma causa, em nome da qual enfrentam a opinião pública; agradam alguns, desagradam outros e, acima de tudo, enfurecem detratores. 

Entretanto, se Jesus tem atualmente a favor de si uma legião de pessoas religiosamente engajadas, Sócrates tinha, em vida, a favor de si alguns amigos, dentre os quais esteve Críton, um moço rico que, após a condenação de Sócrates, propõe ao filósofo a possibilidade de fuga — por princípios, Sócrates recusou a oferta. Condenado por motivações populistas, difamado e caluniado sem que o autor da denúncia precisasse provar o que estava dizendo, e assim imputando a Sócrates o dever de proteger-se das acusações (no Direito e na Filosofia chamamos isso de inversão do ônus da prova), a história de Sócrates nos ensina sobre o valor de princípios imperativos para o ordenamento da sociedade, princípios que, na pólis contemporânea, vêm a ter lugar especial diante do poder político da mentalidade populista, inquisitória e punitivista. 

Platão, mais um grande nome tornado marco da filosofia antiga (há quem rejeite Prozac para tomar Platão como medicamento), teve a perspicácia de mostrar como condenações vagas não podem servir de parâmetro para a justiça, o que lhe fez ter profundo rancor da democracia devido ao seu potencial populista e gerador de imperfeição frente a um mundo onde a justiça é ideal e reproduz a si mesma. Essa idealização da justiça é parte do que Platão toma como “Mundo das Ideias”, em que as formas são fixas, imutáveis e toda a contingência do mundo deriva desse realismo transcendental. Ora, a justiça existe e deve ser buscada, ela está em algum lugar no mundo, ainda que as ações mundanas sejam comumente injustas mesmo no melhor dos sistemas políticos disponíveis (se é a democracia ou não, há quem conteste). A narrativa contemporânea de que tudo são narrativas e, portanto, a justiça é apenas mais uma dentre tantas, não sobrevive ao escrutínio platônico, e ainda que a possibilidade da aplicação da imparcialidade possa ser contestada, ela continua sendo desejada para a sustentabilidade de qualquer sistema no qual imperam conflitos. 

Infelizmente, a mentalidade narrativista — ou seja, essa inclinação a ver os fatos do mundo como nada além da história contada pelos mais fortes — não é exclusividade de alguns autores franceses contemporâneos. Ela está na gênese do conflito democrático: em vista de defender certos interesses, são necessários esforços específicos para a construção da justificação pública desses interesses: você precisa contar a sua mentira mil vezes até que ela se torne verdade. E o modelo a ser preenchido para gerar tal justificação costuma ser simples: 1) há um inimigo, 2) esse inimigo é caricatural e age como o mal encarnado, sendo contrário às melhores aspirações da sociedade civil, 3) “as melhores aspirações da sociedade civil” são aquelas que definimos ser, 4) conhecemos e vamos aplicar a solução para combater tal inimigo e, por óbvio, 5) somos os mocinhos que conhecem a realidade, queremos revelá-la e apenas estamos preocupados com o bem maior. É possível dar exemplos de como esse raciocínio se alastrou na história das civilizações, e como, especialmente no século XX, foi mote para a geração de líderes populistas que destruíram milhões de vidas sencientes, mas isto já ficou suficientemente explícito. 

O ponto a não se perder aqui é o seguinte: a democracia pressupõe interesses e é perfeitamente possível descrever esses interesses numa estrutura narrativa — ora, é exatamente isso que justifica a mentalidade narrativista, em que os conflitos são incessantes e a verdade é definida não pela objetividade do mundo, mas pela imposição do vencedor. Há mesmo aqueles que aceitam a narrativa de que tudo são narrativas e, diante disso, estabelecem critérios morais para discriminar quais narrativas valem ser adotadas, e quais não valem. Em alguns departamentos acadêmicos, o padrão de discriminação de quais narrativas merecem defesa tem sido a justiça social: se tal narrativa favorece a justiça social (seja lá o que isso signifique), ela merece defesa. Jonathan Haidt deixou incrivelmente claro como a priorização da justiça social traz externalidades injustas, e com ele é prudente concordar neste ponto: se tudo são narrativas, nada me impede de estabelecer como critério de defesa não a justiça social, mas a verdade. Ora, o que poderia me refutar diante de tamanho relativismo? Aliás, quem disse que é verdade que tudo são narrativas é verdade? Se há uma verdade absoluta sobre narrativas serem absolutas, então não há verdade absoluta. A coerência é impossível em uma mentalidade narrativista, e quando falamos em coerência estamos falando em lógica e adequação do intelecto à realidade, o que nos faz lembrar não apenas de Platão, como também de medievais como Tomás de Aquino e modernos como Immanuel Kant. 

Aliás, Platão também destacou que a sabedoria é prudente (phrónesis), e a prudência é o que dignifica o julgamento público, moral e jurídico. Nesse sentido, não há mérito em apontar o dedo para destacar culpados sem que tal atitude seja devidamente refletida pelo acusadora sabedoria dispensa aspirações populistas. Então, que prudência há na opinião pública? Como depender do conflito de narrativas, selecionando aquelas que, por nossos critérios (ou seja, por nossos vieses cognitivos), são as mais convenientes? A questão é: há como não delegar à opinião pública e ao eterno conflito de narrativas a determinação da verdade? 

Sim, de fato há. Existem certos parâmetros perfeitamente sensatos e aplicáveis, frutos de nossa razão, que são moralmente normativos para que possamos estabelecer posicionamentos seguros diante de polêmicas. E esses parâmetros estão implícitos ao longo deste texto: Neymar, Moro, Greenwald, Sócrates, Jesus… Todos têm em comum o fato de que foram acusados no tribunal da opinião pública, e a acusação também é um direito às partes que se sentem lesadas. A questão é justamente como lidar com a acusação. Se Neymar precisou vir a público e expor a intimidade compartilhada com a moça que o acusou, é porque ele sabe que estupro é coisa séria, e a opinião pública poderia destruir sua carreira se ele não fizesse algo a respeito (tal como o movimento #MeToo destruiu muitas carreiras, inclusive de mulheres, seja com acusações verdadeiras ou falsas). Da mesma forma, o burburinho das redes sociais, onde somos levados a crer em nossos amigos por mais que estejam defendendo falsidades (e isso é um problema muito maior e anterior à emissão de fake news), e a tendência  a crer em qualquer opinião que fundamente nossos preconceitos e predisposições ideológicas, acirram a necessidade de marketing pessoal: diante de uma acusação pública comprometedora, se você não fizer algo para pintar sua imagem como alguém inabalável pela acusação, você estará em maus lençóis. E assim temos não apenas Neymar se precavendo, como também temos Sócrates subindo ao púlpito e defendendo a si mesmo, bem como temos Moro dizendo que as mensagens reveladas não continham nada demais. Não sei se Greenwald já veio a público pintar a si mesmo como injustiçado, mas sei que o próprio Jesus só tinha doze apóstolos para enfrentar a maré de hebreus que passaram a vê-lo como impostor. 

O fato é que, na condição de meros espectadores que vivenciam todas as mais variadas polêmicas envolvendo personalidades nos noticiários, não devemos depender dos esclarecimentos públicos parciais das partes envolvidas, por mais que elas se prestem a mostrar-se inabaláveis. Devemos, isso sim, amparar nossos julgamentos em nossa própria racionalidade, e seguir princípios caros à construção de sociedades modernas, seculares e humanistas: devemos presumir a inocência dos acusados, devemos dar aos acusados o direito à ampla defesa (especialmente frente à opinião pública, que não usa togas e becas mas bate o martelo sobre a definição de carreiras no mercado), devemos, enfim, compreender que nem tudo são narrativas, que há uma verdade objetiva a ser esclarecida, que essa verdade é alcançável assintoticamente por mais que não consigamos ser perfeitamente imparciais de maneira individual, e que a forma de se aproximar de tal verdade é por meio do comportamento prudencial coletivo. 

Se a forma certa de bater o martelo fosse efetivada, talvez nem Sócrates e nem Jesus tivessem sido executados. Talvez Neymar seja absolvido, talvez Moro seja devidamente punido e, talvez, Glenn Greenwald tenha sua liberdade de imprensa respeitada. As diferentes narrativas enfurecem diante da imparcialidade, pois a parcialidade não sobrevive à constante tentativa racional de buscar a verdade, qualquer que ela seja. E a própria justiça é impossibilitada por uma abordagem narrativista, posto que a narrativa acusatória seria equivalente (e seu valor indistinguível do da) narrativa de defesa. 

 

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