Engenho da Morte_ 6ª parte do 1º capítulo do nosso Livro Online: Tudo é desacato?
Pedro, caminhando para a sala do delegado, pensando “finalmente fui chamado”. Na sala do delegado havia uma mesa velha de madeira, paredes sem janelas, armários e estantes caindo aos pedaços. Pedro bate na porta e de dentro o delegado gritou que podia entrar. Ao entrar, antes de encostar a porta, fechando-a, ouviu:
_ Está cego? Não viu a placa na porta dizendo que é para entrar sem bater? – Pedro, parado perto da porta permaneceu calado. O delegado logo interrompeu o silêncio dizendo:
_Vamos rapaz, não tenho tempo do mundo, não! Sente-se logo!
Dirigindo-se a cadeira, sentou-se. Não gastava muito de policiais, pois por motivos banais, ou mesmo sem motivos fora agredido em atos políticos que, muitas das vezes, beneficiaria as próprias famílias dos policiais se tais reivindicações fossem atendidas. Ficava irritado por que não entendia o porquê de obedecerem cegamente ordens de seus superiores, haja vista que iam contra seus próprios interesses. Lembrou-se de Liev Tolstói quando o mesmo diz em seu livro “O Reino de Deus está em vós” que na Rússia do Séc. XIX, um militar apenas estaria preparado para exercer seu ofício com arma em punho, quando respondesse a seu superior, quando indagado, que se preciso fosse atiraria na própria mãe, pai ou irmãos. Pedro não suportava violência, nem mesmo se fosse para defender-se.
O delegado, sentado, com um bolo de papéis nas mãos, batia-os delicadamente sobre a mesa para alinhá-los e guardá-los. De dentro da gaveta tirou um clips, prendeu os papéis, ensacou-os em um utensílio de plástico apropriado e os enfiou na gaveta. O cigarro estava no canto da boca como se dali fizesse parte. Colocando os cotovelos sobre a mesa, tragando a fumaça em seus pulmões e expulsando-a de si, infestando a sala, pôs-se a indagar:
_ E aí, rapaz? Pedro seu nome, não é? – Pedro consentiu.
0 me diz: o que você fazia hoje de manhã, na hora do assassinato? – diz como que seguindo um protocolo, demonstrando não estar interessado na morte dos cinco meninos.
_ Quando ouvi os tiros, eu estava em minha varanda lendo.
O delegado continua:
_ Sim, mas viu alguma movimentação? Carros, motos fora da normalidade no que diz respeito a velocidade? Alguém correndo? Nada suspeito para você, meu caro? – O delegado enquanto perguntava, movimentava alguns de seus carros e motos de coleção que ficavam em cima da mesa como enfeites. O que fez com que Pedro se segurasse para não soltar risos.
Pedro com cenho levantado, começou a responder lentamente em um tom irônico também mexendo as mãos na mesa simulando localizações:
_ Sr. Delegado, no fim daquela rua existe uma favela, certo? Passar gente de moto ou com carro em disparada naquela rua, é rotineiro!
_ Tudo bem, tudo bem! – diz o delegado – O Senhor, meu rapaz, Pedro… como quiser: conhecia bem os meninos?
_ Conhecia-os desde bebês, mas não coloco minha mão no fogo por ninguém. Andei trabalhando demasiadamente nos últimos seis meses. Tive muitas palestras e debates, muitos eventos em que eu tinha me comprometido a cumprir. Eventos esses que me dão mais que o dobro do salário que recebo como servidor do Município e do Estado. Fora o tempo que gastei me empenhando no meu mestrado. Portanto, seu delegado, eu ficava sabendo pouco desses meninos. Os via final de semana indo jogar futebol, e às vezes meio de semana indo para a escola._ disse esforçando-se para lembrar-se de algo que pudesse colaborar.
O delegado levantando-se deu a volta sobre a mesa e, na parte da frente, sentando-se sobre a mesma, pôs-se a perguntar olhando com seriedade para Pedro:
_ Seu Pedro, o senhor está se esquivando de tocar no assunto principal?
Pedro assustado e estranhando responde:
_ Que principal? Sobre a morte deles? Estou falando tudo que sei, isto é, que nada sei!- disse em tom irônico, relaxando o corpo sobre a cadeira.
O delegado levantou nervoso, socou a mesa e perguntou:
_Você está de deboche? Quer que eu lhe prenda por desacato? Esta fingindo que não sabe o que esses cinco anjinhos faziam?- pronunciou a palavra anjinho fazendo um sinal de aspas com os dedos.
_ Já conheço esse papo. Tudo é desacato a autoridade, tudo! E o senhor, delegado, está blefando para tentar me arrancar algo. Ah, meu Deus, para vocês qualquer confissão basta, mesmo que seja mentirosa. Assim encerra-se o caso e você fica aí brincando de carrinho! Olha só, o negócio é que realmente o que eu sei, é que nada sei!- Pedro disse tais coisas, sentado ainda mais relaxado, procurando não se assustar nem se aborrecer com o delegado, com os olhos como se estivesse com sono, mas não estava. Fazia isso para mostrar que sabia o roteiro de cor do delegado.
Voltando para trás de sua mesa disse gesticulando:
_ Ô rapaz, você não tem medo de ser preso, não? Aliás- disse o delegado espremendo os olhos e colocando a mão no queixo- O senhor- deu uma pausa para causar suspense, tendo como intenção a de deixar o depoente nervoso – o senhor tem passagem pela polícia?
Mantendo a tranqüilidade, respondeu Pedro:
_ Bom, sobre o medo de ser preso eu respondo o seguinte: de cadeia injusta, de ser preso sem motivo eu não tenho medo não! Amanhã estaria aqui uma centena de partidários do partido que sou membro e de vinculados e aliados, além de muito universitários e membros dos mais distintos movimentos sociais! Já sobre passagem pela polícia? Sim, sim…. Tenho inúmeras!
_ E o senhor tem a audácia de tranquilamente me dizer…
_ Delegado, seja cavalheiro e de me deixa continuar. Sim tive passagens! Mas adivinhe pelo quê? Desacato a autoridade!- disse pausadamente a palavra “autoridade”- Imagina só, seu delegado, que um dia, em uma reintegração de posse, num prédio de quinta categoria, caindo aos pedaços, eu estava negociando com os moradores de rua, catadores. Negociando com pessoas que tiveram suas casas tombadas por ordem do Estado e outras que perderam suas casas por estarem localizadas em área de risco- disse exaltando a voz, agora Pedro torna a dizer, gesticulando com as duas mãos em movimentos simétricos- enfim, imagine que eu fui preso com a alegação de desacato autoridade por entregar uma sacola de pães para dezenas de crianças que estavam lá dentro do prédio? Já não têm onde morar e ainda não podiam comer?
Agora com uma voz mais mansa, recostando-se na cadeira, Pedro volta a falar:
_ Sabe delegado, às vezes me dá a impressão de que o Estado abandona tais pessoas de propósito. E isso para que quando essas pessoas em estado deplorável, morando na rua, tendo sua humanidade roubada pela violência e o repudio que sofrem nas ruas- uma lágrima corre no rosto de Pedro- suas almas execradas pela miséria causada pelos governantes e grandes empresários, pela fome, etc. tendo tudo isso como causa eles cometem crimes pelo ódio que lhes foi implantado. Fazem pequenos furtos, roubam leite, manteiga, coisas para comer. Qual seria a intenção com isso tudo, me perguntaria alguém. Simples, ao invés de combater criminosos armados, ao invés de prender políticos sujos, traficantes, prendem na frente da população os mendigos! Quanta glória não é? Heróis vocês, não? No Complexo do Alemão ano passado, com tudo aquilo de armamento, tanques, helicópteros, os bandidos fugiram. Bandido de verdade não prende! Mais de 400 fugiram, mais de…
O delegado esteve se segurando durante toda a argumentação de Pedro, viu que Pedro não era um professor qualquer. Percebeu que Pedro ligava tudo que aprendeu na faculdade intrinsecamente a realidade em que vivia.
O delegado o interrompeu com um soco na mesa, gritando e apontando o dedo ferozmente:
_ Não se faça de desentendido. Aqueles meninos eram seus vizinhos, você não sabia que eles roubavam, que entregavam droga, que chegaram, pelo que sei poder denúncias, a andar armados e até mesmo matar?_ o delegado recuperou o fôlego, recobrou o raciocínio. Virou-se ficando de costas para Pedro tragando lentamente seu cigarro. Colocou as mãos para trás, segurando o punho, na direção de seu cinto. Ainda de costas começou a dizer:
_ Pedro…
_ Diga. – disse com as pernas cruzadas e com cotovelos na mesa apoiando o queixo nas mãos.
Continua o delegado:
_ Você é professor, correto? _ Pedro consentiu- E… Você já deu aula para algum deles? Já foi professor de algum desses delinquentes?
_ Sim, por um ano. Foi para a turma do Lekin. – revelou Pedro tentando se antecipar em pensamento na tentativa de descobrir qual seria a intenção do delegado, aliás, Pedro havia feitos deboches sérios que feriam a dignidade do Estado e da corporação militar a que o delegado pertencia. Pedro percebeu que o delegado havia mudado a abordagem na interrogação.
Agora o delegado retomando com empolgação a interrogação com ar de superioridade e um sorriso como quem tivesse matado a charada, diz:
– É verdade que senhor patrocinou o trabalho infantil desses garotos e isto, fez com que estivessem mais presentes nas ruas? Cadê seu discursinho professor, sobre abandonados pelo Estado de propósito?- indagou sarcasticamente o delegado e sorrindo ao final.
_ Não senhor delegado!- Pedro dizia cansado e com leveza- O senhor formulou de maneira incorreta seus pensamentos, sua indagação. Eu não patrocinei o trabalho infantil. Em momento de dificuldade que a família de Lekin passava, após a morte do pai, eu peguei um jantar para a família, pois estavam em frangalhos, maltrapilhos e por fim, dei dinheiro para a família. A mãe, cismou que era uma conversa de que era honrada e de que tinha que me pagar, nem que fosse com a própria vida….
O delegado disse:
_ Sim e aí? O que tem a ver os cinco garotos no sinal vendendo coisas?
Pedro continua: _ Se o senhor, delegado, mais uma vez não me interromper eu continuo. – O dele ao ouvir isto fechou a cara.
_ Continuando… Pois bem, eu insisti de modo até meio grosseiro de que não precisavam pagar, mas dias depois me deparei com os meninos no sinal, ao passar de carro, ao que o menino, Lekin, carinhosamente me agradeceu como seu eu lhe tivesse salvado a vida. Os outros meninos o estavam ajudando, inclusive seu irmão mais novo. Agora entendeu?
O telefone, que faltava com algumas teclas, tendo atravessado um esparadrapo para evitar que abra ao meio, tocou.
_ Secretário de segurança? Manda ele ir sabe onde? A merda! Que eu estou tirando o meu da reta!_ disse baixinho, cochichando.
Bom, então Pedro… – o delegado colocou a mão no queixo acariciando-o- você deu aula ao chefe de uma quadrilha de menores, o senhor revê relações próximas com a família ao ponto de jantar e dar dinheiro. Estamos a procura de quem esteja por trás do tal “Bonde do Ponto”, para que nos aproximemos do autor da morte e com isso, venhamos a cumprir nossa missão: descobrir os motivos e prender o culpado!- disse de exaltando na ultima frase. Completou: _ Espero Pedro, que este não seja você. Professor, palestrante, sociólogo, defensor dos direitos humanos. – dizia o delegado dando ênfase as sílabas tônicas das palavras destacando-as pronunciando-as mais alto. Tudo isso de forma debochada.
Pedro por dentro estremecia, gelou. Alguns podem pensar que a toa. Ele sabia da capacidade e eficiência da polícia carioca de jogar falsas provas e incriminar falsos culpados. O delegado agora se sentia por cima, usava do medo para dominar os interrogados, para deixá-los tensos, fazendo com que confessem o que tenham feito e até mesmo o que não tinham feito. Com isso, conseguia fazer com que alguns incautos assumissem a culpa.
_ Professor, agora me diz, eu sei que você mora lá, perto da comunidade. Eu sei que é complicado, mas precisa me dizer: você é o culpado? Tem alguma colaboração com este assassinato? Não ficou frustrado por talvez suas propostas, soluções, teoriazinhas e teses de sociologia não funcionarem e, perdendo a cabeça eliminou os delinqüentes? Ou, não sabendo onde havia se metido, para proteger sua família os eliminou, quem sabe, mandando que alguém os executasse?
Secamente e sem importar-se com os deboches, respondeu Pedro:
_ Não, não foi eu!
Delegado: _ Ou então viu algo de estranho ou alguém? Sabe de algo que fosse colaborar? Tudo estará sob o mais guardado sigilo policial!
Pedro já cansava de ouvir estes clichês policiais, mas sentiu-se ameaçado e resolveu contar algo:
_ Sim… Sim, eu vi sim! Eu vi o Edmar, conhecido como Caveira, correndo com a camisa e as mãos ensangüentadas pela rua. – Pedro sentia-se confuso e com raiva pelo fato de estar contando. Não confiava no tal “sigilo policial”.
O delegado volta a perguntar, induzindo, só que agora mais empolgado:
_ Pode contar professor, o senhor sabe que ele é o culpado, não sabe? Eu vejo em você a vontade de me contar, vejo pelos seus olhos como está contrito por dentro, usando de aparência de que está tranqüilo… Desembucha professor! Me dê dados dessa pessoa.
Pedro percebia, irritado, as induções psicológicas do delegado. Respondeu:
_Como, delegado, posso te dizer o que se passa, mas sem dizer? Entende?
_ Merda- o delegado socou a mesa com tamanha fúria que até afundou um pedaço da madeira. Levantando-se tornou a falar- Você vai voltar co suas frases idiotas?- dizia o delegado encarnando ódio.
_Olha só, meu tempo acabou. Ao sair marque no balcão à direita o dia para depor novamente! Estou de olho em você professor! De olho em você!
Pedro no carro, agora batia no volante, lacrimejando por ter contado aquilo. Querendo se livrar de uma provável enrascada, poderia agora, após este relato meter-se em outra enrascada. Virou a chave e partiu, não sabia para onde iria ainda, queria espairecer. Tinha perdido o jogo naquele. Ah, mas não ia ceder um centímetro sequer a mais em seus depoimentos, também não iria sentir-se mais pressionado com jogadas de prováveis policiais preguiçosos que tentam manipular depoentes, para acabar rápido uma investigação.
Lucas Gonzaga
in Geral