É hora de se preocupar com o futuro da liberdade de expressão

“Anúncios que perpetuam estereótipos de gênero serão proibidos no Reino Unido, mas não no bom e velho EUA!”, se encontra em uma manchete recente no site Jezebel. Palmas para o “bom e velho” EUA por continuar a valorizar o direito fundamental da livre expressão, você pode dizer. Ou talvez não.

Por que uma feminista – ou qualquer um – comemora a ideia de dar poder aos burocratas para decidir como falamos sobre estereótipos de gênero? Porque, hoje em dia, os valores fundamentais significam cada vez menos para aqueles que acreditam que ouvir algo desagradável é a pior coisa que pode acontecer.

Às vezes você precisa de um censor – diz a escritora do site Jezebel, porque propagandas nefastas como a do “Big Yogurt” têm “atacado mulheres por décadas.” Ela e os britânicos, aparentemente, não acreditam que as mulheres tenham a capacidade de fazer escolhas como consumidoras ou [que tenham] força interior para ignorar os anúncios que vendem iogurtes probióticos.

É por isso que o Comitê de Prática de Publicidade do Reino Unido (e cara, é preciso muita força de vontade para não usar o clichê “orwelliano” para descrever um grupo precisamente com esse tipo de ferocidade) é uma ideia tão inteligente. Isso proibirá, entre outras coisas, comerciais em que os membros da família “criam uma bagunça, enquanto uma mulher é a única responsável por limpá-la”, que sugere que “é uma atividade inadequada para uma garota porque está estereotipicamente associada a meninos, ou vice-versa” e aqueles em que “um homem tenta e falha em executar tarefas domésticas parentais.”

Se você acredita que esse tipo de coisa é responsabilidade do estado, é improvável que você saiba muito sobre Constituição. Eu não estou tentando atacar essa escritora. A aceitação a restrições de discursos é um problema crescente entre millennials e democratas. Para eles, as noções opacas de “justiça” e “tolerância” aumentaram para superar a importância da liberdade de expressão.

Você pode observar isso em personalidades da TV como Chris Cuomo, ex-presidente do Partido Democrata Howard Dean, em prefeitos de grandes cidades, e no Escritório de Marcas e Patentes dos EUA. E, também, na Senadora Dianne Feinstein (D-Calif.) discutindo restringir a liberdade de expressão em sistemas universitários públicos. São os principais candidatos políticos argumentando que o discurso aberto dá “ajuda e conforto” aos nossos inimigos.

Se não é o Big Yogurt, é o Big Oil ou o Big isso-ou-aquilo. Os democratas durante anos fizeram campanhas para revogar a Primeira Emenda e proibir o discurso político por causa da “equidade”. Esta posição e suas justificativas são abastecidas pelo mesmo combustível ideológico. No entanto, acredite ou não, permitir que o estado censure documentários é uma ameaça maior à Primeira Emenda do que os tweets do presidente Donald Trump zombando a CNN.

Tratam-se de autoritários como Laura Beth Nielsen, professora de sociologia da Universidade Northwestern e professora de pesquisa da American Bar Foundation, que defende a censura em um importante jornal como Los Angeles Times. Ela afirma que o discurso de ódio deve ser restrito e que “o discurso de ódio racista tem sido associado ao tabagismo, à hipertensão arterial, à ansiedade, à depressão e ao transtorno de estresse pós-traumático e requer estratégias complexas de enfrentamento”. Quase todo censor na história da humanidade argumentou que a fala deveria ser restringida para equilibrar algumas conseqüências prejudiciais. E quase todo censor na história, mais cedo ou mais tarde, continuou expandindo a definição de prejudicial até que os direitos de seus adversários políticos acabassem.

Você pode ver onde isso está acontecendo ao ver a Europa. Descarte os argumentos de declive escorregadio se quiser, mas na Alemanha, onde o discurso de ódio foi banido, a polícia invadiu casas de 36 pessoas acusadas de publicar “conteúdos ilegais”. Uma lei aprovada no mês passado na Alemanha diz que as empresas de mídia social podem enfrentar multas de milhões de dólares se não removerem discurso de ódio dentro de 24 horas. Quando os debates sobre imigração estão em alta na Alemanha, a ameaça de abuso dessas leis é grande.

Na Inglaterra, um homem foi recentemente condenado a mais de um ano de prisão depois de ter sido culpado por incitar ódio religioso com uma estúpida postagem no Facebook. Há políciais de crimes de ódio que não só buscam cidadãos que dizem coisas consideradas inapropriadas, mas também imploram para informantes denunciarem as palavras vulgares de seus concidadãos.

Quando eu era jovem, os liberais muitas vezes repetiam uma citação erroneamente atribuída a Voltaire: “Eu desaprovo o que você diz, mas vou defender até a morte seu direito de dizê-lo”. Isto era usado tipicamente em defesa de obras de arte que eram ofensivas aos cristãos ou aos burgueses — uma pintura suja de Maria, um álbum de heavy metal ruim, etc.

Você não ouve muito disso hoje. É mais provável que ouça: “Eu desaprovo o que você diz, então cala a boca”. O idealismo não é encontrado nas noções de iluminismo, mas sim em identitarismo e em indignação. E se você não acredita nesta exigência da esquerda em mimar cada noção que exibe perigo à liberdade de expressão, você não tem prestado atenção.

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Por David Harsanyi, em Reason Magazine, 21 de julho de 2017. Tradução de Douglas Ramos para a LiHS.

Associação de pós-graduações em filosofia não publica textos contrários à ideologia dominante

Uma associação de programas de pós-graduação em filosofia deveria ser exemplo de pluralidade de pensamento, e deveria se focar sempre na qualidade dos argumentos, não na identidade de quem os formula. A julgar pelo relato de Bruna Frascolla sobre a não publicação de seu texto crítico (que reproduzimos exclusivamente abaixo), este não está sendo o caso da ANPOF.

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A Associação Nacional da Pós-Graduação em Filosofia, ANPOF, começou na gestão passada a manter uma coluna, à qual podiam enviar textos qualquer professor ou pós-graduando em filosofia. A gestão mudou, e notei haver na coluna uma intenso interesse por crítica ao machismo, capitalismo, racismo etc e pela defesa de “filosofias” novas com viés identitário. No que concernia à discussão do machismo, notei que todos sempre se baseavam num dogma ao tecer críticas. Por isso, resolvi enviar meu próprio texto, a fim de extirpá-lo e sanear a discussão. No entanto, ao questionar sobre o envio, foi-me dito que “presentemente a Coluna Anpof tem publicado textos de autores convidados, de acordo com o planejamento do editor. Textos de autores não convidados podem ser enviados para […] e poderão ser publicados ou não, segundo juízo do editor.” Enviei meu texto, e nunca foi publicado.

Removamos um dogma da discussão sobre mulheres na filosofia

Por Bruna Frascolla Bloise

Doutoranda em filosofia da UFBa

            Uma preocupação atual na filosofia é discutir gênero e criticar a pouca presença feminina na filosofia. É inegável que na história humanidade as mulheres foram oprimidas pelo simples fato de serem mulheres: fisicamente mais fracas, estavam sujeitas à dominação masculina pelo uso da força bruta; sem avanços sociais, eram compulsoriamente lançadas ao papel exclusivo de mães e donas de casa; sem avanços culturais, qualquer desvio desse comportamento de mãe recatada seria imoral. A  hipotética irmã de Shakespeare, pensada por Woolf, tem sua materialização em Marianne Mozart, irmã de Amadeus. Uma mulher tão talentosa quanto Shakespeare, para começo de conversa, sequer seria alfabetizada – e, se alfabetizada, não conviria a uma mocinha meter-se em ambiente devasso como o do palco. O que é inegável, e acerca do que temos de estar todos de acordo, é que as mulheres, ao longo da história da humanidade, não tiveram chances de se desenvolver intelectualmente. Parideiras e rainhas do lar não precisam saber ler, e não devem viver na rua.

            No entanto, dessa desigualdade advinda da falta de oportunidade e da repressão, uma consequência vem sendo tirada precipitadamente: a de que, se houvesse tal igualdade, os resultados seriam todos iguais entre os sexos. Se em filosofia há poucas mulheres (trans ou não) e muitos homens, então isso só poderia significar que estamos fazendo algo de errado, pois deveria haver algo em torno de cinquenta por cento de homens e de mulheres.

            Ora, asserir que igualdade de oportunidade implica igualdade de resultado é asserir um fato. Fatos precisam de comprovação. Comprovação de fatos se dá através da experiência. Assim, antes de dizer que há um problema na comunidade filosófica ou que ela seja machista, é preciso ver o que podemos aprender com os fatos.

            Em primeiro lugar, é de estranhar que a preocupação com o alto percentual de homens na filosofia seja desacompanhada de considerações sobre o alto percentual de mulheres em psicologia. Os psicólogos homens serão oprimidos por alguma espécie de matriarcado? Quem quiser defender que sim, sou toda ouvidos; até lá, considerarei que não. Será que colocar mulheres como psicólogas e homens como filósofos é de alguma forma bom para a sujeição feminina? Duvido muito: ambos podemos seguir carreira universitária (que é a mais prestigiada e remunerada entre nós de filosofia); só eles podem ser psicólogos, e só nós professores de ensino médio – mas psicólogas têm maiores perspectivas de ascensão financeira do que professores de escola. Logo, o que se pode concluir é que há motivos por nós desconhecidos que levam gente de diferentes sexos a escolher diferentes cursos.

            Nisto, a experiência mais uma vez nos ajuda. Peço a quem de fato se interessar pelo tema que pesquise o paradoxo norueguês: no país de maior igualdade entre os sexos, com mulheres galgando altas posições e tendo todas as oportunidades, os engenheiros são em geral homens e os enfermeiros são em geral mulheres. A rede pública da Noruega fez um documentário que se encontra legendado em inglês e disponível aqui.

            Não à toa, a querela se dá entre pesquisadores dos gender studies e cientistas. De um lado, o jeito que fomos tratados em nossos berços determinaria toda a nossa vida futura, inclusive o curso que faremos (mas não sei como, admitindo esse determinismo cultural, explicam a existência de transexuais…); de outro, há diferenças nos cérebros que ajudam a explicar por que certos cursos são preferidos por homens. É estranho supor que sejamos um animal tão único que seu cérebro não se deixe afetar pelo vagalhão de hormônios que recebe. Se as pessoas tiverem tendências inatas, e não estiverem em apuros para ganhar dinheiro, escolherão simplesmente a profissão de que mais gostam. Indianas com problemas financeiros fariam programação; norueguesas, à vontade, seriam psicólogas. É apenas hipótese, naturalmente, como tudo em ciência. Verdades absolutas e imunes à refutação quem tem são os dogmáticos. E é de notar que, do lado dos gender studies, haja a condenação explícita às pesquisas feitas sobre diferenças cerebrais entre homens e mulheres. Posição tão avessa ao Sapere aude deveria disparar alarmes na comunidade filosófica.

            Longe de mim dar a questão por resolvida. Contento-me em deixá-la aberta, uma vez que admitamos que ela existe, a saber: igualdade de oportunidade implica igualdade de resultado? Dizer que implica sem embasar a resposta em fatos é dogmatismo.

            Por fim, como tais assuntos sempre suscitam mal-entendidos, quero deixar claro que, ainda que admitamos que no ambiente da filosofia tenda a haver mais homens, disso não se segue nenhuma inferiorização da mulher que faça filosofia, nem mesmo que não haja machismo no meio acadêmico. Segue-se apenas que não é de admirar que existam mais homens do que mulheres na filosofia, e que tal discrepância não é uma consequência necessária de machismo.

O curioso consenso político contra a imparcialidade

Quem não pratica “fast food” político e intelectual deve ter percebido uma tendência dos últimos anos, que é a adoção da ideia de que a imparcialidade e a neutralidade são inexistentes ou impossíveis. E é curioso que essa pouco articulada tese tenha seduzido pessoas que costumam discordar radicalmente entre si: dos estudiosos de Paulo Freire (geralmente marxistas) ao website Spotniks, de orientação liberal/libertária. Alguns chegam a incluir nesse veto de existência outras marcas de probidade racional de investigações, como a objetividade.

É plausível afirmar que não há jornais e revistas com linhas editoriais e de seleção de pauta que sejam, hoje, neutras e imparciais no sentido acadêmico desses termos. Como a mudança da opinião política de um indivíduo para uma posição mais próxima da verdade dependeria de um enorme volume de informação e de considerações sobre a natureza humana e sobre o papel de instituições complexas, seria improvável que a mudança acontecesse pela análise de uma única peça jornalística. Portanto, faz sentido, do ponto de vista editorial, que jornais e revistas que crêem portar uma posição melhor que as alternativas se comportem como defensores intransigentes de um número limitado de “pressupostos”. Mas essa atitude só é racional se esses pressupostos forem pontos de partida examinados, em vez de dogmas. É natural haver discordância profunda em política, e todos nós respondemos à discordância recorrendo a esses pontos de partida. Virtudes como imparcialidade e neutralidade servem não para fingir pairar sobre-humanamente acima dos conflitos inevitáveis de pressupostos, mas para agir de forma a permanecer aberto a críticas, inclusive às que possam enfraquecer esses pressupostos, e não sair ao mundo em busca apenas de evidências que confirmem o que já acreditamos.

De qualquer forma, a surpreendente concordância sobre a inexistência ou impossibilidade da neutralidade e da imparcialidade no jornalismo e na política pode ter um efeito perigoso: a confusão entre descrição e prescrição, ao tratar como natural esse estado de inexistência prática de imparcialidade, o que pode ser interpretado como desejável e/ou imutável, tendo como consequência a desvalorização dessas virtudes epistêmicas. Se não temos escolha a não ser adotar nossos próprios grupos com base nos pressupostos em torno dos quais esses grupos se organizam, isso não é desculpa para não nos prevenirmos contra o viés da confirmação e o dogmatismo.

Há formas diversas de adotar a tese da inexistência e/ou impossibilidade da imparcialidade e da neutralidade. Algumas distinções são necessárias para dissipar confusões comuns.

1 – O erro de igualar a raridade e a dificuldade à inexistência

A depender do assunto, pode ser mesmo difícil, e raro, que um pensador individual chegue a conclusões neutras e imparciais. Conclusões que são mais fruto de uma avaliação desinteressada dos fatos e argumentos do que de um viés de confirmação de suas preferências e crenças prévias. Mas de algo ser raro ou difícil não se segue que não exista, ou de que é impossível ou muito improvável que passe a existir. A suposta escassez de exemplos de imparcialidade e neutralidade, portanto, não serve para amparar a ideia de que imparcialidade e neutralidade não existem.

2 – O erro de ver imparcialidade e neutralidade como um horizonte utópico que é até recomendável ter como meta, mas que jamais pode ser atingido

Esse erro resulta justamente do respeito à imparcialidade e à neutralidade, mas é um respeito exagerado, que as eudeusa e mistifica. Para dissipar essa mistificação, basta pensar em exemplos banais de investigações e conclusões imparciais, neutras e objetivas. O mundo não é escasso em exemplos de pessoas que mudaram de posição racionalmente, abandonando crenças e pagando um preço por isso. Esse fenômeno é em si uma marca de comprometimento com virtudes epistêmicas (imparcialidade, neutralidade, objetividade) no mundo, especialmente quando fazê-lo não está servindo para favorecimento imediato dos interesses prévios das pessoas. Eis alguns exemplos:

  • Sergio Viula passou muitos anos como pastor que pregava a cura gay. Ele próprio é gay, mas havia se casado com uma mulher e tem filhos. Ao examinar argumentos e evidências de que ser gay não é uma escolha, muito menos uma escolha moral, e de que não faz sentido aplicar um tabu moral sobre o desfrute da vida sexual de gays enquanto se permite que heterossexuais desfrutem da sua, Sergio Viula saiu do armário e denunciou seu trabalho anterior. Isso não teria acontecido se ele não tivesse adotado uma atitude imparcial diante do assunto. Se fosse simplesmente uma mudança de posição parcial em prol de suas tendências sexuais, seria mais cômodo que ele vivesse uma vida dupla e desonesta, com uma esposa e casos extra-conjugais com homens, como fazem muitos. A virtude da imparcialidade, por ser uma escolha também moral, está correlacionada com honestidade em outras áreas da vida, e Viula é um exemplo disso.
  • Dan Barker passou 19 anos como pastor e músico gospel nos Estados Unidos. Um exame neutro e imparcial das crenças religiosas que as enfraquecesse levaria Barker a perder muito do que conquistou em sua vida até ali. Foi o que aconteceu, levando Barker a deixar a fé cristã em 1984, por nada menos que mudança de ideia após analisar as razões para acreditar e concluir que eram insuficientes. Seguir suas novas conclusões foi muito difícil para Dan Barker, ele descreve como jogar a própria mãe pela janela. Mas ter de agir contra seus próprios interesses é um sacrifício necessário para quem deixa a parcialidade para trás.
  • Thomas Sowell é um economista e filósofo político americano que durante a maior parte de sua juventude foi um marxista. Sowell passou por toda a sua graduação sendo um marxista, mas se viu forçado a abandonar as suas ideias após conhecer em primeira mão os efeitos negativos de políticas públicas de cunho igualitarista. Ao trabalhar para o governo federal americano ele descobriu que o aumento do salário mínimo obrigatório entre trabalhadores da indústria açucareira de Porto Rico levou ao aumento do desemprego no mesmo setor, assim piorando a qualidade de vida dos trabalhadores. Sowell se tornou um ardente defensor da liberdade econômica desde então.

Por Eli Vieira, vice-presidente da LiHS.

O delírio irracionalista

Por José Guilherme Merquior

Originalmente publicado em 14 de março de 1981, no Jornal do Brasil.

            A missão “política” da crítica liberal é combater a intolerância ideológica. Sua tarefa epistemológica – sua missão no campo do conhecimento – é restaurar o sentido da objetividade. Um dos maiores vícios da frívola mentalidade “humanística” de nossos dias consiste na tendência a promover a permissividade epistemológica a[1] pretexto de virtuosa tolerância ante a diversidade de opiniões. Mas a verdade é que, enquanto a tolerância frente a multiplicidade de posições e correntes ideológicas é um inestimável valor social, a indulgência indiscriminada em face das teorias e interpretações é uma autêntica abdicação intelectual. Devemos, como Voltaire, defender até o fim o direito dos outros à discordância – mas isso absolutamente não implica que se renuncie ao direito de julgar as ideias conforme critérios rigorosos de observância lógica e veracidade empírica.

            Tal direito, nas mãos de quem quer que professe a pesquisa da realidade, natural ou social, se converte num dever da inteligência. O humanistazinho que vem nos dizer que a obra de Kafka é “polissêmica” e que, “portanto”, cada uma de suas contraditórias interpretações é “tão válida quanto a outra” não é um tolerante simpaticão – é um pobre de espírito ou um medroso mental, alguém incapaz de cumprir uma das mais nobres entre as aspirações humanas: a de procurar a verdade. Ninguém, é certo, pode legitimamente ser considerado “dono da verdade” – exceto a própria realidade, o princípio perfeitamente objetivo do conhecimento do real. Não levar isso em conta é confundir liberdade crítica com licença relativista. A obra de Kafka é sem dúvida polissêmica e até ambígua; mas seus níveis de sentido são suficientemente hierarquizados para que uns valham mais que outros e algumas de suas “leituras” são, simplesmente, falsas – desmentidas pela verdade do texto e do seu contexto cultural. Portanto, todas as interpretações não se equivalem.

            Um dos cavalos de batalha do relativismo humanista é a denúncia do “dogmatismo” da certeza científica. Como se, depois de Popper, ainda coubesse identificar conhecimento objetivo e certeza inconcussa – exatamente o que nega a teoria popperiana da falseabilidade das hipóteses científicas, de resto aprimoradas pelas análises de outro epistemólogo da London School of Economics, Imre Lakatos.

            Outro cavalo de batalha humanista é uma refutação irrefletida da tese da unidade da ciência, também xingada de preconceito “positivista”. Os humanistas contemporâneos são quase todos adeptos de uma concepção culturalista, antinaturalista do saber – de votos de Dilthey na filosofia de ontem, ou de Habermas, na de hoje. No entanto, quando examinamos os argumentos correntes contra a aplicabilidade de critérios científicos às humanidades, deparamos é com uma vasta coleção de equívocos. Mencionemos apenas três. Não é possível – alega-se – analisar de modo científico uma obra de arte, ou um acontecimento histórico, porque sua característica número um é a unicidade; ora, a ciência busca leis, e diante dela é preciso repetir o sábio dito de Goethe: “Individuum est ineffabile”. Infelizmente, para os humanistas, se a ciência recuasse tanto diante do único e do irrepetível, a geologia não seria uma ciência natural… Bom – replica o humanismo epistemológico –, mas e a experimentação? não podemos experimentar com fatos sociais, logo não podemos verificá-los cientificamente. Decerto – só que tampouco se experimenta em astronomia, a própria disciplina que hospedou a formação galileana da ciência moderna… Último argumento: a complexidade das variáveis que entram em jogo nos fenômenos sociais. E todavia, elas não são menos numerosas, nem menos complexas, no terreno da meteorologia. Moral: a menos que esteja disposto a acolher geologia, astronomia e meteorologia nas humanidades, o humanista se acha obrigado a renunciar aos tabus da unicidade, do experimento e da complexidade como álibi para eximir o humano dos critérios de análise científica.

            Notem que não estou propondo desvalorizar nada em favor do científico. Não me passa pela cabeça, por exemplo, requerer a cientifização da moral ou reger a arte, como outrora quis a utopia dos naturalistas à Zola, pelos ditames da ciência. É preciso deixar bem claro que o cientificismo, o imperialismo ideológico da ciência, não é científico. De resto, historicamente, o cientificismo é uma perversão da metafísica, não o produto bastardo de nenhuma ciência.

            Como prova de que nossa defesa da ciência não é imperialista, direi uma palavra acerca de um fenômeno curiosamente ligado a pressupostos cientificistas, e não obstante negligenciado pelo humanismo reinante. Trata-se do modo de educação estética que tende a prevalecer em nossa sociedade. Na sociedade burguesa tradicional, a familiarização do indivíduo com a chamada alta cultura – a alta literatura, a música erudita, as belas artes – se processava primordialmente, senão exclusivamente, fora da universidade. Ninguém ia aprender literatura na faculdade de letras; lá, no máximo – e graças à erudição filológica vigorosamente acumulada desde a era romântica – se podia aprender muito sobre literatura. Hoje, em contraste, tudo se passa como se o aluno chegasse literariamente virgem ao primeiro ano dos cursos de letras. Em outros termos, o futuro especialista é geralmente um inculto, cuja instrução não mais se nutre de uma prévia educação. Pode alguém se admirar de que semelhante idiot savant, surdo à música de um bom verso, insensível a um só tempo à ars e à sofisticação humana dos grandes textos literários, presa da insegurança da sua incidência, mergulhe no fetichismo dos modelinhos pseudo-rigorosos de análise do que ele jamais assimilou? Ouçamos o protesto de Roger Shattuck, corajoso desmistificador do ensino das letras nos Estados Unidos: “Hoje em dia espera-se dos estudantes uma leitura mais extensa e mais cuidadosa de teoria literária e metodologia do que de obras literárias.”

            Imaginem que Shattuck chega a recomendar, como remédio para a institucionalização da barbárie no ensino de letras, que se reviva o hábito de ler, e ler em voz alta, os clássicos antigos e modernos!… Onde iríamos parar se o senso de literatura partir da leitura, da vivência do poema ou do livro?… Como sabemos, em nossa gloriosa civilização universitária, a ingênua palavra “leitura” virou um pedante sinônimo de exegese. Críticos que não sabem ler (e muito menos escrever, o que não os impede de galgar até mesmo a direção de alguns departamentos de letras) perpetram “leituras” e mais “leituras” sobre o que tresleram, para os que não leram… Vivemos sob o império da estranha raça dos hermeneutas apedeutas.

            Max Weber, que ninguém jamais ousou considerar um simplório na matéria, aconselhava a preocupação com o método, em ciências humanas, a fugir da “pestilência metodológica”. O problema é que, na atual situação das humanidades, seu conselho é dificílimo de aplicar. O reino do publish or perish, – da publicação competitiva, da tese pela tese, antítese do verdadeiro estudo, da corrida ao grau e do psitacismo doutoral – encoraja e estimula o pseudoespecialismo, e não há pseudoespecialismo sem idolatria do método e fanatismo do modelo.

            Gerald Graff, um professor da Northwestern University que tem assombrado Berkeley com sua repulsa aos credos críticos em voga, julga que o boom da “desconstrução” dos Derrida e Paul de Man está em conexão estreita com o furor publicandi acadêmico. De fato, o sistema do publish or perish acarreta fatalmente o colapso de padrões rigorosos de avaliação da produção crítica universitária, já que a quantidade de publicações é por si só incompatível com uma qualidade intelectual superior. Nessas condições, porém, uma escola de crítica que ataca como repressiva (e “logocêntrica”) a própria ideia de interpretação correta parece fadada ao triunfo. A anarquia da exegese, o obscuro e monótono ritual da “desconstrução”, confere status filosófico ao triste resultado da inchação universitária.

            Os pseudoespecialismos não são bobos: na maioria dos casos, se apresentam como exemplos de fecundidade “interdisciplinar”. Mas só um inocente não veria que sua verdadeira relação com as outras disciplinas – com a filosofia, a linguística ou as ciências sociais, ou com outras indisciplinas, como a psicanálise – é uma relação de pilhagem e não de intercâmbio ou assimilação. Desde a maré estruturaloide, a crítica saqueia teorias alheias com muito mais arbitrariedade que discernimento. A consequência não é nenhum cruzamento cognitivo digno desse nome, e sim um contágio esclerosante de elucubrações mistificatórias – a farra da teorização irresponsável.

            Todo esse manso delírio irracionalista se vê reforçado pelas premissas irracionais da mentalidade literária identificada, epigonicamente, com o alto modernismo europeu. Graff tem sido um dos críticos da principal dessas premissas: a confusa noção de que a realidade não tem sentido, mas a literatura encarna um conjunto de vagos “valores” de suprema importância na luta contra o curso alienante da história… Em suma: o que venho chamando, desde O Fantasma Romântico, de guerra do modernismo contra a modernidade. Poderíamos considerar a apologia do “método mítico” da literatura moderna, feito por T. S. Eliot em seu célebre artigo em louvor ao Ulisses (1923) de Joyce, como o arquétipo desse posicionamento. Segundo Eliot, a vantagem do método mítico (minimizado por Pound em sua apreciação, também positiva, de Joyce) estava em seu poder de negação “da anarquia e futilidade de nossa época”. Falando claro: o mundo moderno não passa de um lixo…

            À saída do trauma da Grande Guerra, esse tipo de visão niilista da história moderna era pelo menos compreensível. Mas o anátema brandido contra a civilização pelos neomodernistas de plantão, os modernosos arautos da contracultura e das suas rebeliões prêt-à-porter, não tem sequer essa desculpa: já não é mais possível convencer ninguém de que a maneira mais inteligente de  reagir ao processo histórico é o acesso histérico de intelectuais preconceituosamente sublevados contra as sociedades de massas.

            O que a ideologia humanista mobiliza contra os valores da civilização industrial é que é, isso sim, um efeito mórbido da sociedade de massas – o despreparo e a incultura das submassas intelectuais no supermercado universitário. Nele, o ensino das letras e o aprendizado das ciências humanas ao mesmo tempo se imuniza contra a crítica racional e se compraz em agredir irracionalmente a sociedade, a começar pelos seus aspectos historicamente mais progressistas: a ciência e as instituições liberais. A contra-elite “humanista”, cujo amor pelo povo pode ser medido  pelo desdém com que ela julga as massas inteiramente “alienadas”, abandona alegremente o cuidado racional com a objetividade do conhecimento em troca de um profetismo apocalíptico, tão leviano quanto imaturo.

            Marginais burocráticos, rebeldes estatutários, mandarins “heréticos” (mas espantosamente conformistas), esses intelectuais aspirantes a intelligentsia constituem um crescente “clero” leigo, que atraiçoa o pensamento crítico em nome de um radicalismo ritualista. Na aurora da escolástica, a teologia buscou uma aliança com a[2] razão: fides quaerens intellectus.[3] No crepúsculo da consciência “vanguardista”, das seitas radicais em arte e política, é o oposto que se verifica – o intelecto se despede da razão, e lhe prefere as crendices de uma mentalidade apocalíptica transformada em jargão do espírito desempregado: intellectus quaerens fidem. É tempo de lembrar aos funcionários do humanismo de apostila que o único compromisso da inteligência é com a razão, e que o humanismo é algo demasiado valioso para ser confiado ao desvario dos humanistas.


[1]No original há “e” em vez de “a”. Julgamos tratar-se de erro tipográfico.

[2]Inserimos o “a” por julgar que sua ausência é outro erro tipográfico.

[3]Em latim: “A fé que busca o intelecto.” Adiante “o intelecto que busca a fé”.